• Nenhum resultado encontrado

José Geraldo, só me fala uma coisa aqui você falou que a sua letra José Geraldo: Não, a minha letra antes

5 CONSTRUÇÕES DE IDENTIDADES NAS PRÁTICAS SOCIAIS DE LEITURA

P: José Geraldo, só me fala uma coisa aqui você falou que a sua letra José Geraldo: Não, a minha letra antes

P: Mudou?

José Geraldo: Antes... Mudou... agora eu escrevo mais bonito, a letra correta, né? A letra bonita... a letra bem feita, né? Porque antes... antes não... eu escrevia um garrancho. A minha identidade mesmo... a letra... a assinatura tá um garrancho. Hoje não... Hoje por isso que eu quero tirar minha identidade pra poder pegar e... Aí eu já sei que eu to escreveno, né? Meu nome tá... eu sei que eu to escreveno meu nome certo, né... e a letra é mais bonita tamém, né? Dá inté vergonha de mostrar minha identidade pros outro, né?

Para José Geraldo, ser analfabeto é não saber ler, é ser ignorante. Desde que veio morar em Belo Horizonte, ele optou por trabalhar como vendedor ambulante por conta própria. Esse trabalho parece que lhe garantiu a sobrevivência, a criação de seus filhos e o anonimato como analfabeto, pois para exercê-la não houve muita necessidade de usar a língua

escrita e nem da ajuda de outras pessoas. Só agora, que já lê muitas coisas, ele conta para as pessoas que não sabia ler porque antes, segundo ele: “[...] eu não falava nada com eles, né?

Ficava mais é na minha...[...]”

Aprender a ler e a escrever proporcionou transformações na autopercepção de José Geraldo que desencadearam mudanças em sua vida. Segundo ele, ao ler uma palavra ele sabe se está falando errado ou certo. Hoje, não se considera mais como ignorante, pois agora já sabe ler. Ele mesmo reconhece os seus avanços: “[...]Hoje eu primeiro eu me esforço em

falar as palavra certa...[...]”;”[...]agora eu escrevo mais bonito, a letra correta, né?[...]; “[...]uma peça que eu vender eu anoto ela... porque é pra poder ter controle, né?[...]”; “[...]eu sei que eu to escreveno meu nome certo, né...[...]”. Quando olha a sua carteira de identidade José Geraldo já não se reconhece mais e anuncia: “[...] eu quero tirar minha identidade[...]”.

5.1.4 - “Eu acho bonito o jeito que eu sou...”

Luiz Carlos sempre se mostrou interessado em participar da pesquisa, pois achava que as atividades e as intervenções o ajudavam a se desenvolver mais. Ele era casado e tinha 45 anos, naquela época. A esposa nunca estudou, mas sabe ler e escrever. Durante a entrevista, ficou em dúvida em relação à idade e escolaridade dos dez filhos. Afirma que todos estudaram, alguns não completaram o Ensino Fundamental. Dois filhos também estudam na EJA da EMHR nas turmas mais avançadas.

Ele revelou que a primeira vez que entrou numa escola para estudar foi em 2008, na EMHR. Desde 2007 estava aguardando uma vaga porque queria aprender a ler a literatura dos Alcoólicos Anônimos (AA), grupo que frequenta há 18 anos. Luiz Carlos alega que nunca teve vontade de estudar, apesar do incentivo de várias pessoas. Esse desejo só surgiu agora, depois de adulto, e ele garante que não quer parar mais. Hoje, tem o incentivo da esposa, dos filhos e dos companheiros do AA. Futuramente, ele pretende tirar a carteira de habilitação e fazer curso de Direito.

Ao falar de sua infância, Luiz Carlos lembra que ficava o tempo todo na rua: “[...]

a gente ficou ao Deus dará, por aí, né? Meu pai trabalhava em Monlevade... e nós aqui dentro de Belo Horizonte. Então, eu acho que eu fiquei zanzando aí... não deu certo, né?”A

sabia ler e escrever. Numa família de 12 filhos, Luiz Carlos conta que foi o único que não estudou. Ele foi criado pelas irmãs mais velhas que brincavam de escolinha com ele e lhe contavam a história dos Três Porquinhos. Foi assim que ele aprendeu a escrever o próprio nome.

No decorrer dos anos, foi tentando aprender algumas letras com as irmãs, mais tarde com os filhos, que já estudavam, e também tentando ler as placas e os jornais. Dentre as marcas deixadas pela condição de analfabeto, Luiz Carlos relembra:

Aconteceu que eu já tomei um cano numa firma, por causa disso aí... Eu não sabia o quê que era o quinto dia útil... Então o meu patrão me pagava assim... negócio assim... Então na hora do acerto, né... Eu assinei um papel lá sem... sem ler o papel... eu assinei. Quando eu fui ver o rumo das coisa, o acerto tava errado. Então isso aí que é o perigo... Mas por causa de quê? Por causa que viu minha capaci... minha... capacidade, que eu não sabia, né, .... não tinha leitura.... e aproveitou da situação, né, ... deu no que deu.

Num desabafo, Luiz Carlos diz que antigamente também bebia muito e não pensava em nada: “[...] Na época eu bebia, né,... gostava de.... de farra, né? Então eu achava

que o estudo naquela época não era pra mim. E agora que eu to veno que faz falta. Ele avalia

que tudo isso contribuiu para fazê-lo acreditar que não conseguiria estudar, mesmo com o incentivo de vários parentes e amigos. Ele conta que antes de aprender a ler ficava tão angustiado quando via alguém lendo chegando, inclusive, a sair de perto porque achava que não seria capaz de um dia fazer o mesmo.

Hoje, Luiz Carlos trabalha em uma prestadora de serviços como fiscal de loja em um supermercado e também ajuda a conferir o estoque, verificando uma listagem das mercadorias. Em casa, sempre lê revistinhas e o jornal Super Notícias. Ele conta que lê esse jornal porque gosta de saber das notícias e porque a professora Salete orientou todos os estudantes a sempre lerem um jornal.

No grupo dos AA, ele atua como tesoureiro e na coordenação das reuniões, dando depoimentos e explicando como funciona a instituição. Quando tem poucas pessoas no encontro ele se arrisca a ler trechos da literatura. Seu maior sonho é ler e escrever a ata da reunião, mas ainda está inseguro.

Depois que entrou para a escola e aprendeu a ler não quer parar mais, pois antes era uma pessoa fechada e complicada. Agora Luiz Carlos acredita que melhorou bastante e afirma: “Ah, eu sou um camarada alegre, né... né (risos) um cara assim... que vivo, né,... do

jeito que eu to viveno aí... eu acho bom, eu acho bonito o jeito que eu sou”. Essa percepção

de si parece ter sido construída na relação com outras pessoas, como ele mesmo disse: “[...]

Eu... assim... depois de ler... o pessoal aí... o povão aí... conversa com um... conversa com outro....então a gente vai desempenhano mais, né? Então eu acho que mudou sim. Acho não, mudou sim bastante”. Essa declaração torna evidente que é na relação com os outros que nos

constituímos como sujeitos e construímos nossa identidade, premissas já postuladas por Vygotsky (2000) e Hall (2000). Agora ele afirma que até já sabe o quer: “[...] em relação ao

estudo eu pretendo estudar até... até Deus ver onde que... né, até ele ver até onde que eu posso chegar. [...] eu tenho vontade de ser um... um advogado [...]”

5.1.5 - “Eu tenho que coisar muita coisa pra chegar onde que eu quero chegar ainda!”

Silvana, que tem 31 anos, é branca, casada e mãe de três filhos. Ela sempre trabalhou como empregada doméstica. Atualmente não está trabalhando. Essa foi a condição colocada pelo marido para que ela pudesse estudar, pois a necessidade de trabalhar sempre foi privilegiada devido às condições socioeconômicas da família. Quando criança estudou apenas dos oito aos nove anos de idade porque havia muitas dificuldades de acesso à escola na zona rural onde vivia. Desde que retornou aos estudos em 2007, na EMHR, ela participa da presente pesquisa por meio de filmagens em sala de aula, rodas de leitura e entrevistas.

Durante as três entrevistas realizadas com essa estudante, percebe-se uma mudança de postura com relação ao seu processo de escolarização. Inicialmente, ela apontou a condição socioeconômica como um impeditivo ao ingresso à escola. Relatou que só retornou aos estudos por incentivo do marido: “só que meu marido tava insistindo... “cê tem que voltar

a estudar”, aquele negócio todo... entendeu? Aí graças a Deus agora eu pus na cabeça... né, ele mesmo veio aqui, fez minha matrícula, aquele negócio todo, ele me empurrou pra eu ir pro colégio!” E assume: “Pra mim assim... da minha vontade eu não tinha vindo. Porque acaba aquele negócio “ah, tô muito cansada... né, eu vou pra escola e ficar lá até dez horas da noite?”Posteriormente, reposiciona-se como sujeito de desejo, de saber e de direito ao

anunciar: “Eu não quero parar de estudar, se Deus quiser! Quero ver inté aonde que eu

consigo ir”.

Silvana relata as práticas sociais de leitura que hoje realiza: lê e ajuda os filhos a fazerem os deveres da escola, lê e distribui as correspondências para as pessoas que moram no

mesmo lote dela. Além disso, faz leitura das cartas e bilhetes que os filhos e a escola lhe mandam, das bulas e dos horários dos remédios receitados pelos médicos, placas de ruas, folhetos da missa. Suas leituras preferidas são as revistas de novela, o jornal Super Notícia e livros de histórias infantis, como ela declara:

Ah, eu gosto muito de ler livros de historinha, né... igual meus menino leva muito livro de historinha, eu adoro. [...] Eu toda vida eu gostei muito de historinha... entendeu? Eu não sei se é porque eu não sei pegar um livro, né, de... Livro de... né... tem poema, esses negócio... Eu não sei ler direito ainda... então eu acho que mais é por conta disso.

Agora, Silvana faz a lista do supermercado e copia as receitas da sogra e as que passam na televisão. Com o marido aprendeu a usar o celular e já consegue consultar a agenda de nomes e ler mensagens, além de fazer e receber ligações.

Para melhor compreender as transformações identitárias dessa estudante, será analisado o trecho do final da terceira e última entrevista realizada na escola, precisamente, no dia 30/03/2009 entre a pesquisadora e Silvana: