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Capítulo 1 – A infância na narrativa literária

3.1 José Lins do Rego: infância e memória

Considerado por estudiosos e críticos um dos mais importantes romancistas brasileiros do século XX, José Lins do Rego (1901-1957) integrou o grupo de autores regionalistas nordestinos que despontaram no período de maturação do Modernismo, a partir dos anos 1930149.

148 Trecho do prefácio do autor à primeira edição do romance autobiográfico Meus verdes anos, (REGO, 1956, p. 5).

149 De acordo com Candido & Castello, “a ficção regionalista nordestina, cujas raízes sobem a Franklin Távora, passando por Rodolfo Teófilo e Domingos Olímpio, entra numa fase nova em 1928 com A

bagaceira, de José Américo de Almeida [...]. Em 1930 aparece e tem grande êxito O Quinze, de Rachel de

Queiroz. Ambos possuíam cunho regional e social, voltando-se para problemas como a condição e os costumes do trabalhador rural, a seca, a miséria. Na mesma linha, surgem [...] Os Corumbas, de Amando Fontes, e Cacau, de Jorge Amado [...], Menino de Engenho, de José Lins do Rego, e Caetés, de Graciliano Ramos. E estava lançada uma das correntes mais poderosas da nossa literatura, que chamamos de regionalista para simplificar e nos conformamos ao uso, mas que em muitos dos seus produtos se desprende completamente dos elementos pitorescos, do dado concreto, da vivência social e telúrica da

A epígrafe que abre este capítulo, retirada do prefácio da sua última obra, Meus

verdes anos (1956), publicada um ano antes de sua morte, facilmente poderia ser

atribuída a Menino de engenho (1932), seu romance de estreia, tal a consonância entre a infância do autor, revisitada em seu livro de memórias150, e a do personagem Carlinhos, protagonista e narrador do seu livro inaugural.

Acerca dessa correspondência, Ivan Junqueira151, em estudo crítico sobre a vida e obra do romancista paraibano, ratifica essa percepção, alertando o leitor, contudo, que não tome a afirmação de modo literal, “ao pé da letra”:

Já se disse – e não sem alguma razão – que Lins do Rego teria escrito “duas vezes” o mesmo livro, a cuja primeira versão deu ele o título de Menino de engenho, batizando a segunda de Meus verdes anos. É claro que o leitor não deverá jamais tomar esta afirmação ao pé da letra, tanto assim que tivemos o cuidado de aspeá-la. Mas o fato é que os dois livros se tangenciam intimamente enquanto florações quase contíguas de uma única e mesma matriz memorialística, induzindo-nos à suposição de que o escritor agenciou aqui um curioso processo de desdobramento da reminiscência, entretecendo como que duas formas de discurso confessional: uma que parte do registro da memória e cria, liricamente, todo um universo ficcional, alongando assim “o passado no presente”; e outra que se elabora ao nível de uma decodificação operada a partir de texto anterior cuja matéria-prima lhe é comum (JUNQUEIRA, 1981, p. 424).

Entretanto, apesar da existência de um consciente diálogo aberto entre

Menino de engenho e Meus verdes anos, o crítico chama a atenção para a diferença na

intencionalidade de cada obra: a primeira, um romance ficcional, que emprega a memória “a serviço da imaginação”, e a segunda, “uma memória que se pretende apenas enquanto testemunha ocular da história, de uma história que ela apenas registra, mas não reinventa” (JUNQUEIRA, 1981, p. 424):

região. Na maioria dos livros, porém, esta existe como enquadramento expressivo, dando um peso de realidade e um elemento de convicção”. CANDIDO & CASTELLO, 1968, p. 28.

150 O próprio autor coloca entre parênteses o subtítulo “Memórias”, após o título “Meus verdes anos”. 151 Ivan Junqueira (1934-2014). Jornalista, poeta, ensaísta e crítico literário.

se é verdade que Lins do Rego escreveu “duas vezes” o mesmo livro, também o é a circunstância de que os haja escrito com intenções inteiramente distintas. A Meus verdes anos falta por completo qualquer indício de autêntica urdidura ficcional, ao passo que, no Menino de engenho, se o ponto de partida é a memória, decerto não será ela o ponto de chegada (JUNQUEIRA, 1981, p. 424).

Também na análise de Luciano Trigo152, José Lins conta, “a partir de uma matéria-prima comum, duas vezes a mesma história” (TRIGO, 2002, p. 33). Para ele, “Meus verdes anos é prova cabal de que os três primeiros romances do açúcar153 constituem uma autobiografia disfarçada do autor” (p. 32):

há trechos inteiros que são quase uma repetição de Menino de engenho, e certamente os dois livros são movidos pelo mesmo ímpeto de passar a limpo a infância e a adolescência, fazendo um resgate proustiano do passado (TRIGO, 2002, p. 32).

A infância é, de fato, fase de grande importância na vida e na carreira do homem e do escritor José Lins do Rego. Não por acaso seu primeiro romance aborda essa temática, narrando a história de um menino que – assim como ocorrera com o próprio autor – foi levado a viver no engenho do avô após a morte da mãe.

Para José Aderaldo Castello, em um de seus mais completos estudos sobre a vida e obra de José Lins do Rego154, avaliando o fato de o romancista ter sido criado pelo avô materno – um “senhor de engenho” – e pela tia Maria, “que lhe substituiu a afeição da mãe perdida muito cedo”, é “nessas condições que se fixam”, durante a fase da infância do autor

152 Luciano Trigo. Escritor, crítico literário, jornalista, tradutor e editor. Venceu o prêmio José Lins do Rego da Academia Brasileira de Letras em 2002.

153 O autor refere-se a Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933) e Banguê (1934). 154 CASTELLO, J. A. José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo. São Paulo, Edart, 1961.

os elementos e valores fundamentais que dão origem à sua obra de ficção. [...] Podemos afirmar [...], em generalização inicial, que a fonte do conteúdo psicológico de sua obra é a experiência acumulada nos seus “tristes verdes anos”, na condição peculiar em que se encontrou junto aos avós e tios maternos, com o regime de vida que lhe foi imposto em virtude da asma, que o atormentava frequentemente, e com as antecipações sexuais, dolorosas (CASTELLO, 1961, p. 71-72).

Para o crítico, o citado prefácio de Meus verdes anos, apesar das restrições que a afirmação requer, “vale como o mais franco reconhecimento, pelo próprio autor, da origem indicada de sua obra de ficção”. Desse modo, embora a “matéria humana de

Menino de Engenho” já fornecesse, inicialmente, “uma visão panorâmica da experiência

fundamental do romancista”, ela se amplia “com detalhes por ele fixados em páginas de crônicas [...] como a atestar uma presença avassaladora na memória, forçando-o, sem cessar, a idas e vindas”, o que justificaria “as repetições frequentes na obra que escreveu” (CASTELLO, 1961, p. 72-74).

Porém, além dos aspectos memorialísticos que emanam de Menino de engenho e de outros romances do autor155, Castello também atribui como um marco diferencial em suas obras e em sua carreira a intensa amizade que ele desenvolve desde muito jovem com o sociólogo Gilberto Freyre, e as consequentes e inevitáveis influências literárias e políticas que dele recebe.

De acordo com Castello, bem antes de se tornar romancista, é por meio de Freyre que José Lins “redescobre as cidades do Recife e Olinda, seus arredores, o que havia de mais expressivo e característico em sua paisagem [...]. Com ele vai à capital da Paraíba [...] e daí seguem em passeio pelos engenhos e banguês de parentes” (CASTELLO, 1961, p. 88-89). Com o novo amigo, José Lins estuda a língua inglesa “ao mesmo tempo

155 Aspectos memorialísticos são encontrados não apenas em Menino de engenho, mas em todos os romances que compõem o “Ciclo da cana-de-açúcar” (CASTELLO, 1961). De acordo com Candido & Castello, fazem parte desse ciclo os romances Menino de engenho (1932); Doidinho (1933); Banguê (1934), Usina (1936) e Fogo morto (1943). Alguns autores – como Bosi e o próprio Castello – incluem no ciclo também a obra O Moleque Ricardo (1935).

que é iniciado no conhecimento mais aprofundado da literatura correspondente” (p. 89):

as experiências da infância e da adolescência, os estudos no Recife e os contatos com Gilberto Freyre e seu grupo, além dos reencontros posteriores com a região de origem, são os fatores decisivos na formação do romancista e explicam, em termos de memória e regionalismo, a obra que escreveu (CASTELLO, 1961, p. 95).

Em análise referente a Menino de engenho e aos romances que integram o “ciclo da cana-de-açúcar”, Castello enaltece a influência de Freyre:

Com Menino de engenho, perfeitamente dentro da orientação de Gilberto Freyre, José Lins do Rego lançava os fundamentos de outros romances que formariam o que o próprio autor denominou “Ciclo da Cana-de-Açúcar” (CASTELLO, 1961, p. 92).

Desse modo, antes de evoluirmos nosso estudo para a análise da infância representada em Menino de engenho, vale a pena explorar um pouco mais essa amizade que viria a influenciar mutuamente os dois escritores, e avaliar como Gilberto Freyre nos apresenta esse “menino” do ponto de vista sociológico, antes de o encontrarmos representado e imortalizado na literatura de José Lins.

3.2 Gilberto e José: um encontro de “meninos de engenho” em uma