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Capítulo 1 – A infância na narrativa literária

3.5 Menino de engenho e a jornada do herói

Apesar da tragédia que mudou radicalmente sua vida, ao menino Carlinhos a infância não lhe fora subtraída ou simplesmente “negada”, como ocorre com a personagem Negrinha, analisada no capítulo anterior. Após a chegada ao engenho do avô, o protagonista de José Lins do Rego tem a oportunidade de desfrutar de momentos de prazer e alegria, com o carinho de sua tia Maria, com as brincadeiras com os meninos no pomar e no rio. Porém a melancolia que aos poucos toma conta de seu coração, os pensamentos que o levam para divagações insalubres, sua doença respiratória e sua vida desregrada no engenho fazem com que ele mesmo se considere uma criança “perdida”, sem referências, sem sossego.

Como ocorre em vários contos de fadas e contos populares, a orfandade tornou-se para Carlinhos o seu “chamado para a aventura”191. A viagem de trem transforma o menino em “herói”, transportando-o da sua “zona de conforto” para o lugar onde ele precisará passar por provas para sobreviver.

Ao chegar ao engenho, com apenas quatro anos de idade, o protagonista é logo levado para um “batismo”, um ritual de iniciação: “Você precisa ficar matuto!” (REGO, 2013, p. 32). Em sua nova vida, o menino tem a proteção da “fada boa” – a tia Maria – e a perseguição da “fada má” – a tia Sinhazinha. Passa por provações, como seu isolamento e seu “puxado”. Vive intensamente um amor, com sua prima, Maria Clara. Pratica atos de heroísmo, quando, por exemplo, consegue salvar o trem repleto de passageiros de uma iminente colisão com uma pedra192. Trafega por terrenos desconhecidos, como as florestas e campos da imaginação em que habitam zumbis e lobisomens. Como Pinóquio, é levado por “maus elementos” a experimentar os “prazeres” da vida, mas em vez de ganhar orelhas e rabo de burro193, é punido com sua “doença de mundo”. Ao final de sua

190 Um estudo mais aprofundado sobre a ‘Jornada do Herói’ e suas relações com a orfandade representada na literatura pode se depreender da leitura de minha dissertação de mestrado intitulada “Percurso do órfão na literatura infantil/juvenil, da oralidade à era digital: a trajetória do herói solitário” (CARDOSO, 2006).

191 Para Joseph Campbell, o “chamado para a aventura” significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida. (CAMPBELL, J. O herói de mil faces, 7. ed., São Paulo, Cultrix, 2002, p. 66).

192 Capítulo 19, p. 66-67.

193 Na história de Collodi, Pinóquio é levado por más influências ao País das diversões (“Paese dei

balocchi”), um lugar de divertimento só para crianças de oito a catorze anos, onde, depois de um tempo,

saga, despede-se do menino, para então pegar o trem de volta, que o levará para uma nova aventura, desta vez no colégio interno194. A jornada do herói se completa: partida, iniciação, retorno195.

Muitas leituras podem ser depreendidas de Menino de Engenho. O romance inaugural de José Lins do Rego traz elementos sociais importantes, como o iminente declínio dos engenhos de cana-de-açúcar, o papel e lugar dos negros após a abolição da escravatura, o poder autoritário e patriarcal do “senhor do engenho”, o convívio entre as crianças da casa grande e os “moleques da bagaceira”, o cangaço, o relacionamento entre as “negras da senzala” e os trabalhadores do eito, entre outros. Nesta análise, porém, procuramos desvelar a representação da infância por meio do sentimento de perda, do “menino perdido”, da infância perdida.

No romance, o equilíbrio entre humanismo e crítica social, associado à saga de uma criança órfã que desde muito cedo precisa enfrentar a dureza do mundo, podem ter sido os elementos responsáveis pela ampla divulgação e aceitação do livro196, não apenas no auge do movimento modernista, mas em todo o período que se sucedeu. Dessa forma Menino de engenho tornou-se uma referência do romance regionalista no século XX197, e Carlinhos, “menino perdido”, anti-herói solitário, o protagonista que “Zé Lins inscreveu para sempre na galeria de personagens inesquecíveis da literatura brasileira”198.

194 A história de Carlinhos continua no romance Doidinho (1933), em que são relatados seus anos de internato.

195 Para Joseph Campbell, a jornada do herói completa-se com três fases: partida, iniciação e retorno. (CAMPBELL, 2002, p. 57-249).

196 De acordo com o jornalista Marcos de Castro, Tristão de Ataíde teria dito, certa vez que as obras de José Lins do Rego seriam “as mais lidas de nossas letras modernas” (“A emoção e a glória de um escritor” in: REGO, J.L. Menino de engenho. 105ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 2013)

197 O livro está em sua 105ª edição (Cia. das Letras, 2013).

“Esqueceram de tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel”.

Capítulo 4

Capítulo 4

Entre meninos e homens: infância e sociedade em Capitães da Areia

“A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. [...] É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

Estatuto da Criança e do Adolescente199 (1990)

“[…] children in the English sense do not exist in Brazil. The smallest girls had bangles and bracelets, and boys at eight have their cigarettes. I came across a batch of boys returning from school one afternoon. One little fellow, apparently about seven years of age, turned out of his pockets a collection of sweets, oranges, and cigarettes, in which he indulged by turns. No one seemed to express the slightest disapproval of so small a boy smoking. The language some of these little boys use is appalling, though I must admit I consider that […] they are for the most part unconscious that they are using bad language at all. Games seem to be unknown to them. The only sort of play they ever take part in is leap-frog, and in this but occasionally”.

E. R. Pearce Edgcumbe200 (1887)

199 Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal Nº 8.069, de 13 de julho de 1990, Art. 7º, Capítulo 1 e Art. 4º, Título 1. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos.

200 EDGCUMBE, E. R. P. Zephyrus: A holiday in Brazil and on the River Plate. London, Chatto & Windus, Piccadilly, 1887, p. 49-50. “[…] Crianças, no sentido literal da palavra, não existem no Brasil. Meninas bem novas usam pulseiras e braceletes e meninos de oito anos já fumam. Uma tarde, passei por um grupo de rapazinhos voltando da escola. Um garoto de aparentemente sete anos de idade tirou do bolso uma porção de coisas: doces, laranjas e cigarros, regalando-se sucessivamente. Ninguém demonstrou qualquer sinal de desaprovação pelo fato de um menino tão novo estar fumando. A linguagem de alguns desses meninos é deplorável, embora eu deva admitir que [...] eles talvez não se deem conta de que estão usando expressões chulas. Brincadeiras ou jogos não lhes são familiares. O único tipo de brincadeira que parecem conhecer é “pular sela” (também conhecida como “pular carniça”), e, mesmo assim, brincam apenas esporadicamente”.