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2.2. Os ministros de vara branca em Vila do Carmo

2.2.2. Os juízes e a população local

Não somente dos negócios da Câmara e da justiça o juiz de fora se ocupava. Muitas vezes se via envolvido em problemas com poderosos e na resolução de contendas locais. Em documento enviado ao Conselho Ultramarino,

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um advogado de Vila Rica, Antônio de Almeida Vieira, solicitou ao rei que se passasse uma provisão ao juiz de fora de Ribeirão do Carmo para que ele tirasse uma devassa contra Nicolau Carvalho de Azevedo. Segundo Antônio de Almeida, seu irmão havia sido assassinado pelo dito Nicolau Carvalho, morador na Freguesia de Ouro Branco. No entanto, em uma devassa que se tirou no Rio das Mortes, o assassino não foi culpado pelo crime, “(…) nem as mais pessoas que para ele concorreram, pelo muito respeito e valimento que tinha com o governador e ministros (...)”. 364 Nicolau Azevedo havia atuado como juiz ordinário em Vila Rica, no ano de 1729, e mesmo diante de todas as queixas que constavam contra ele, fora premiado com o cargo de capitão-mor. Como o rei já havia passado uma provisão a d. Lourenço de Almeida para apurar o caso, e o governador nada fizera, pedia Antônio de Almeida que a averiguação fosse realizada pelo juiz de fora ou por outro ministro, excetuado o ouvidor que atuava no período. O Conselho mostrou-se favorável à solicitação de Vieira, sugerindo que o juiz de fora executasse a devassa, mesmo se já houvesse terminado de servir o seu lugar.

Em um outro caso datado de 1745, o tabelião de Mariana certifica que o juiz de fora José Caetano Galvão de Andrada recebeu a notícia de que “(...) pessoa particular tinha feito em nome do povo desta cidade umas petições contra os ministros destas Minas (...)”. 365 O acusador dizia que os ministros levavam mais

363 AHU. Minas Gerais, cx. 26, doc. 01 REQUERIMENTO de António de Almeida Vieira, ad- vogado nos Auditórios de Vila Rica, pedindo provisão dirigida ao juiz de fora do Ribeirão do Carmo para que proceda a uma exata devassa contra Nicolau Carvalho de Azevedo, de diversos delitos por este cometidos. 8 jan. 1734 e AHU. Minas Gerais, cx. 25, doc. 09. REQUERIMENTO de António de Almeida Vieira, advogado dos Auditórios de Vila Rica, solicitando a D. João V a mercê de mandar passar provisão, com particular recomendação ao juiz de fora ou a outro qualquer ministro que esteja servindo em Vila Rica, para se proceder a uma exata devassa contra Nicolau Carvalho de Azevedo, devido ao contencioso que tinha com Domingos de Almeida Vieira, irmão do requerente. 17 set. 1733.

364 AHU. Minas Gerais, cx. 26. doc. 01. REQUERIMENTO de António de Almeida Vieira, ad- vogado nos Auditórios de Vila Rica, pedindo provisão dirigida ao juiz de fora do Ribeirão do Carmo para que proceda a uma exata devassa contra Nicolau Carvalho de Azevedo, de diversos delitos por este cometidos. 8 jan. 1734

365 AHU. Minas Gerais, cx. 50, doc. 50. CERTIDÃO passada por Tomé Soares de Brito, tabelião do Público Judicial e Notas de Mariana, declarando ter em seu poder uma devassa mandada tirar

salários do que os taxados no regimento. Galvão Andrada mandou tirar uma devassa sobre o assunto sob o argumento de que requerimentos desse tipo

(...) temerariamente feitos podem inquietar ao povo em cujo nome se fazem, e se não queixam, que quando se queixassem a mim e à Câmara desta cidade, a cujo cargo está pelo regimento o dar providência que em tal caso mandam as leis, bem assim como os corregedores das comarcas na forma de seus regimentos, e não a pessoa particular que é perturbador e inquietador do povo sem haver queixa nem causa alguma que me tenha vindo a notícia (...). 366

Francisco Soares Bernardes e Manoel Soares Bernardes, autores da petição, considerados culpados pela devassa, interpuseram ao Juízo da Ouvidoria, mas não obtiveram provimento. Agravaram, então, para a Relação da Bahia e conseguiram o provimento em que ficava estipulado que não se procederia contra eles. Pediram ainda a mercê de receberem as certidões que comprovassem que o bando de 9 de junho de 1736 condenava os ministros que levassem mais salários do que os taxados pelos regimentos. Trata-se do bando passado pelo governador interino Martinho de Mendonça de Pina e Proença, no qual se consta que “(...) os ministros que levarão às partes mais salários que os taxados nos seus regimentos fiquem obrigados à restituição (...)”. 367 A contenda revela algo sobre a relação da população local com os magistrados.

O fato não passou despercebido ao governador Gomes Freire de Andrada. Em carta de 20 de março de 1749, escreveria ao rei dando seu parecer sobre a queixa apresentada pelos moradores da Cidade de Mariana contra o ouvidor José Antônio de Oliveira Machado e o juiz de fora José Caetano Galvão de Andrada. Recheada de informações e frases em latim, a missiva de Gomes Freire de Andrada começa falando sobre a justiça no universo colonial. Segundo o governador, sem a justiça a República “virá a ser uma confusão babilônica de muitas vontades, como aquela de muitas incógnitas línguas”. 368 O problema da

pelo juiz de fora, respeitante a umas queixas contra os ministros da dita cidade. Mariana, 1 ago. 1747.

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AHU. Minas Gerais, cx. 50, doc. 50. CERTIDÃO passada por Tomé Soares de Brito, tabelião do Público Judicial e Notas de Mariana, declarando ter em seu poder uma devassa mandada tirar pelo juiz de fora, respeitante a umas queixas contra os ministros da dita cidade. Mariana, 1 ago. 1747.

367 Ibidem. Certidão passada em 05/11/1745, relativa a um bando passado pelo Governador Martinho de Mendonça Pina e Proença de 09/07/1736. AHU. Minas Gerais, cx.50, doc.50. 368 AHU. Minas Gerais, cx. 53, doc. 51. CARTA de Gomes Freire de Andrade, governador de Minas Gerais, para D. João V, dando o seu parecer sobre uma queixa apresentada pelos moradores

vexação dos povos por interesse ou roubo de ministros foi também mencionada por Gomes Freire. Em sua Instrução e norma, diz:

A primeira base é amar a justiça; isto é, dar a cada um o que é seu, sem outro interesse que a utilidade (...) não há coisa mais feia que ter o pobre da sua parte a razão, e haver sem razão para não o atender, levado o juiz do respeito ou das dádivas do poderoso, ou talvez por paixões impudicas. 369

E ainda acrescenta:

E como Vossa Real Majestade é o verdadeiro legislador pelos ditos ministros, não puderam os recorrentes alcançar o que de justiça lhes era devido. Sem dúvida que, confiados na Real Grandeza de Vossa Majestade, como humildes vassalos esperarão ver executando com justiça o que se lhes tem negado por utilidade, interesse e roubo dos próprios ministros. 370

Gomes Freire evidencia que os dois oficiais estavam levando mais emolumentos de que o regimento estipulava, considerando-os transgressores da lei e responsáveis por ofuscar a justiça. De acordo com o governador, o ouvidor desprezava as ordens régias e culpava pessoas que demandavam certidões a seu respeito e do juiz de fora. Nesse caso, Gomes Freire estava se referindo ao episódio que envolvia Francisco Soares Bernardes e Manoel Soares Bernardes. Ambos os ministros, segundo o governador, “[intimidavam] todos os moradores para não [usarem] do seu direito e defesa (...)”. 371 Dessa forma, o governador pedia ao rei que todas as ordens que mandasse expedir fossem publicadas pelas ruas, casas e lugares públicos, a fim de que todos tivessem “notícia de todas as mercês que Vossa Majestade costuma fazer aos seus vassalos, para que em todo o tempo não aleguem os ministros a ignorância, levando mais ao povo, o que lhes não devem (...)”. 372 Gomes Freire acusou ainda o juiz de fora da Cidade de Mariana de não se lembrar do regimento e das leis, “vexando os povos com injustiças, mandando [açoitar] mulatos [e] forros ao pelourinho”. 373 E destaca, principalmente, a necessidade de prover o cargo de juiz de órfãos separado do de

da cidade de Mariana contra o ouvidor José António de Oliveira Machado e o juiz de fora José Caetano Galvão. 20 mar. 1749.

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Instrucção e Norma. op. cit. 1899, p. 727.

370 AHU. Minas Gerais, cx. 53, doc. 51. CARTA de Gomes Freire de Andrade, governador de Minas Gerais, para D. João V, dando o seu parecer sobre uma queixa apresentada pelos moradores da cidade de Mariana contra o ouvidor José António de Oliveira Machado e o juiz de fora José Caetano Galvão. 20 mar. 1749.

371 Ibidem. AHU. Minas Gerais, cx. 53, doc. 51. 372 Ibidem. AHU. Minas Gerais, cx. 53, doc. 51. 373

juiz de fora. De acordo com o governador, a fusão de ambos os postos causava muita dependência na cidade e comarca. Por isso, estavam os órfãos com muito prejuízo e dano, visto que o juiz nunca ia fazer os inventários e que somente ia o escrivão, levando consigo partidores; ficavam, dessa forma, os órfãos com grandes gastos, devido às despesas de caminho dos avaliadores que o escrivão levava consigo. Gomes Freire, por fim, mencionou os “inexplicáveis inconvenientes” que resultam da permanência de ministros nas Minas depois de acabarem seus cargos.

Em 2 de março de 1749, alguns dias antes da referida carta de Gomes Freire, o juiz de fora Francisco Ângelo Leitão deu conta das informações que colhera a respeito da representação dos moradores que se queixaram da administração da justiça em Mariana. Segundo o magistrado, os principais moradores que haviam interposto a queixa, isto é, Francisco Soares Bernardes e Manoel Soares Bernardes, eram “(...) homens de baixa esfera, irmãos, e ambos cegos, mas prontos para jurarem de vista toda a matéria, e os maiores enredadores que aqui se conhecem, e previstos para toda a inquietação, ódios, e inimizades (...)”. 374 Sobre o capítulo do documento em que os moradores se referiam às injustiças cometidas pelo juiz de fora, em especial aos açoites a mulatos e forros, Leitão disse que o seu antecessor, José Caetano Galvão, assim procedeu para que houvesse o “(...) abatimento da insolente soberba [e] perturbação”; e completou: “(...) muitas vezes é lícito ao juiz [afastar-se] das solenidades e meios ordinários de direito para temor dos delinqüentes e tranqüilidade da República”. 375 É de fato importante constatar que o juiz de fora de Mariana considerava necessário afastar- se dos meios ordinários de direito para manter a ordem. Diante disso, as palavras de Gomes Freire ganham consistência.

Os capítulos traziam ainda a proposta de desvinculação entre os cargos de juiz de fora e juiz dos órfãos. Francisco Ângelo Leitão, entretanto, dizia que era prometido “por direito poderem os juízes dar comissão para estas diligências; e isto mesmo praticam os juízes de órfãos desta Corte, (...) nem os supostos capitulantes poderão mostrar os prejuízos que quimericamente consideram,

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AHU. Minas Gerais, cx. 53, doc. 37. CARTA de Francisco Ângelo Leitão, juiz de fora de Mariana, para D. João V, dando conta das informações que colhera, a respeito da representação dos moradores que se queixavam da administração da justiça que se executava em Mariana. Mariana, 2 mar. 1749.

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porque na verdade os não há (...)”. 376 A incongruência entre as informações prestadas pelo juiz de fora e pelo governador não indicam apenas tensões típicas dos conflitos jurisdicionais. O caso do requerimento dos irmãos Bernardes fornecem pistas significativas sobre a atuação dos ministros régios, sugerindo que as condições coloniais estimulavam a prática de excessos.

Seja como for, a atuação dos ministros não pode ser desprezada, pois eram muitos os assuntos com que lidavam. Além das muitas funções aqui descritas, os juízes de fora sempre prestavam contas ao rei sobre os diversos problemas que ocorriam nas Minas, especialmente em Ribeirão do Carmo. Em carta de 1732, Ozório explicava ao rei os prejuízos causados aos mineiros devido à venda de águas ardentes, cachaças, fumos, bolos e outros produtos aos negros do Morro de Mata Cavalos, termo da Vila do Carmo. De acordo com o juiz, muitos dos negros abandonavam o trabalho e se entregavam ao consumo desses gêneros; por isso, perdiam o juízo e, por vezes, caíam nos buracos das minas, ficavam aleijados ou mesmo morriam. Alguns mineiros recorreram ao governador para que este mandasse publicar um bando que proibisse a venda de tais produtos, mas isso não foi suficiente. 377 Segundo Ozório, a falta de negros para minerar acarretaria danos aos reais quintos. Moacir Rodrigo de Castro Maia comenta esse mesmo episódio. Segundo o autor, a época de maior crescimento das vilas e dos povoados, com a conseqüente expansão do trabalho escravo nas minas, principalmente nos morros, é justamente aquela em que o estabelecimento de vendas e vendeiros sofre perseguição das autoridades, “(...) preocupadas principalmente com as possíveis perdas da Real Fazenda e dos senhores escravistas”, 378 e complementa: “as medidas tomadas enfrentavam fortes resistências dos povos e especialmente de grupos de potentados locais – que passavam a ter interesse nestes

376 AHU. Minas Gerais, cx.53, doc. 37. CARTA de Francisco Ângelo Leitão, juiz de fora de Mariana, para D. João V, dando conta das informações que colhera, a respeito da representação dos moradores que se queixavam da administração da justiça que se executava em Mariana. Mariana, 2 mar. 1749.

377 Pena de prisão e de cem oitavas de ouro pagas à cadeia, “aplicando 60 para a Fazenda Real, 20 para as obras do Senado, e as outras 20 para aferidor como fiscal”. AHU. Minas Gerais, cx. 22, doc. 15. CARTA de António Freire de Afonso Osório, juiz de fora da Vila do Ribeirão do Carmo, informando a D. João V sobre o que se tem obrado no Morro de Matacavalos no que diz respeito aos prejuízos causados pela venda de aguardente aos negros dos mineiros. Vila do Carmo, 27 set. 1732.

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MAIA, Moacir Rodrigo de Castro. As Vendas de Secos e Molhados: O abastecimento dos moradores da Leal Vila do Carmo na primeira metade do século XVIII. In.: CHAVES, Maria das Graças; PIRES, Maria do Carmo; MAGALHÃES, Sônia Maria de. (org.). Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de história da Câmara Municipal. Ouro Preto, MG: Universidade Federal de Ouro Preto, 2008. p. 106 e 107.

estabelecimentos”. 379 Não por acaso, em consulta ao Conselho Ultramarino de 13 de maio de 1733, o mesmo assunto seria tratado. Ao que parece, os mineiros voltaram a recorrer ao governador no intuito de resolver a questão. Ficou estipulado que uma devassa seria efetuada pelo juiz de fora, e que por meio dela se executaria a pena do referido bando.

Em 1739, outro assunto de relevância envolvia o juiz de fora: o estabelecimento de um médico e de um cirurgião na Vila do Carmo. Segundo os membros da Câmara – aí incluído o juiz de fora José Pereira de Moura – , ambos eram indispensáveis para cuidar de “pobres presos e enfermos e mais pessoas necessitadas, pela falta de sua assistência nas suas enfermidades, por não terem com que remunerar o seu trabalho, nem haver nesta vila irmandade da Misericórdia a que pudessem recorrer (...)”. 380 Em seu parecer, o ouvidor Fernando Leite Lobo dizia que o médico nomeado pelo juiz de fora não era capaz, pois se deixava alienar pela bebida, e dessa forma eram raras as pessoas que iam se curar com ele. Para a boa administração da justiça e assistência aos presos enfermos, Lobo sugeria que ficasse apenas o cirurgião, com rendimento de 100 mil réis.