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Capítulo 1 – Formação administrativa e jurídica no início do Setecentos

1.2. O povoamento de Minas

“A emigração intensa, composta, evidentemente, em sua maioria, de aventureiros de ânimo forte e ambição maior, dificilmente seria controlável por normas de moral ou direito, enquanto não se estabelecesse os fundamentos sociais e a boa ordem administrativa e judiciária.”

Silvio de Vasconcellos. Vila Rica.

Sabe-se que, desde a descoberta do ouro nos últimos anos do século XVII, as Minas Gerais foram marcadas por inúmeros conflitos e por relações instáveis entre súditos, magistrados e autoridades régias. 60 O ouro que reluzia aos olhos portugueses e a expectativa de ganhos maiores para a Coroa fizeram com que

57 SOUZA, Laura de Mello. op. cit., 2004. p. 161.

58 RUSSEL-WOOD, A.J.R. O governo local na América portuguesa: um estudo de divergência cultural . Revista de História- USP, ano 25, v. 55. 1977. p. 50.

59 SALGADO, Graça (cord.). Fiscais e Meirinhos: A administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2ª ed. 1985. p. 73.

60 Sobre governadores Cf. SOUZA, Laura de Mello. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

mudanças políticas começassem a ser realizadas na Colônia, principalmente no começo do Setecentos. Com o tempo, foram adotadas medidas atinentes à subtração das autonomias locais, ao controle dos magistrados régios, à tributação sobre as rendas coloniais, à tentativa de controle sobre as possíveis invasões de outras potências. Nesse contexto, como afirma Luciano Figueiredo, “velhas queixas de falta de atenção às demandas dos súditos, às opressões e vexações da justiça e à pobreza formam um ambiente de forte instabilidade interna”. 61

As autoridades presentes no território da futura Capitania de Minas Gerais, criada em 1720, desempenharam um papel importante na tentativa de suavizar ou conter essa instabilidade. Exemplo disso é o episódio em que o potentado Manuel Nunes Viana, criador de gados no sertão, começou a se engajar na mineração e no contrabando. Não é intenção descrever os fatos sobre a chamada Guerra dos Emboabas, mas sim remeter a alguns detalhes que envolveram os participantes, principalmente os governadores. Afinal,

a guerra dos Emboabas foi exemplo deste momento particular da história mineira: por detrás dos embates de paulistas, baianos e portugueses, colocava-se o problema do controle do território e do papel adequado do Estado na ordem social que se formava. 62

Convidado pelos emboabas, Viana entrou em cena para resolver uma contenda envolvendo forasteiros e paulistas; mudou-se, então, para o Arraial Velho do Caeté (futura Vila Nova da Rainha) e emergiu como líder. Nessa ocasião, quando os emboabas decidiram escolher “governador que os governasse”, 63 Viana foi o indicado. Tal escolha, a rigor, insultava a prerrogativa real, já que os governadores eram escolhidos pelo rei. Depois de feito governador, Manuel Nunes Viana encontrou-se nas Minas com o governador do Rio de Janeiro, d. Fernando Martins de Mascarenhas. Mascarenhas, como autoridade

61 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O império em apuros: Notas para o estudo das alterações Ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial Português, séculos XVII e XVIII. In.: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. p. 234.

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SILVEIRA, Marco Antônio. O Universo do Indistinto. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 25. 63

“Relação do princípio descoberto destas Minas Gerais e os sucessos de algumas coisas mais memoráveis que sucederam de seu princípio até o tempo que as veio governar o Excelentíssimo Senhor d. Brás da Silveira.” Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor- geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários papéis. FIGUEIREDO, Luciano Raposo; CAMPOS, Maria Verônica. (coord.). Belo Horizonte: Sistema Estadual de Planejamento, Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais. 1999. Vol. 1. Doc. 3. p. 198.

régia, transferira à gente de São Paulo e Rio alguns dos postos que haviam sido conferidos anteriormente por Viana. Sendo avisado de que os povos de Minas não estavam dispostos a deixar o governador entrar por aqueles territórios, d. Fernando retirou-se em dois dias. 64

Alguns anos mais tarde, em 1709, o governador Antônio de Albuquerque chegou ao Arraial Velho de forma discreta. Albuquerque comunicou a Manuel Nunes Viana “que convinha ao serviço de Sua Majestade que dentro em três dias despejasse as Minas e fosse para as suas fazendas do sertão, o que assim o fez (...)”. 65 Apesar da ameaça de retaliação paulista, Albuquerque fundou municípios como Vila Rica, Vila do Carmo e Sabará em 1711. Russel-Wood afirma que Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho foi o primeiro governador a percorrer grandes extensões nas Minas e a tratar diretamente com a população. Garantiu o estatuto de vila aos principais arraiais mineradores e ouviu as demandas da população local sobre as vexações pelas quais passava. 66 Além disso, segundo Maria Verônica Campos, Albuquerque procurou executar da melhor forma as ordens recebidas da Coroa no sentido de apaziguar os conflitos entre forasteiros e paulistas que habitavam a região. Em uma “combinação de importantes medidas”, de acordo com a autora, distribuiu sesmarias, efetuou o provimento de cargos civis e militares, criou vilas, instituições e órgãos do governo. 67

Adriana Romeiro explica que a grande preocupação do Conselho Ultramarino no início dos Setecentos era, sobretudo, “(...) o fato de a região permanecer uma terra de ninguém, um verdadeiro enclave apartado do domínio da Coroa, que não havia criado ali um governo civil e militar capaz de sujeitar os seus moradores”. 68 A autora destaca o governador d. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre como um dos poucos a chamar atenção para o levante

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Adriana Romeiro destaca um trecho sobre as narrativas que envolvem esse encontro de d. Fernando com Nunes Viana. Cf.: ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas: Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 285- 288.

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Códice Costa Matoso. op. cit. 1999. Vol. 1. Doc. 3. p. 200. 66

RUSSELL-WOOD. A. J. R. Identidade, etnia e autoridade nas Minas Gerais do século XVIII. Leituras do Códice Costa Matoso. Varia Historia. Número especial Códice Costa Matoso. Departamento de História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais. nº. 1. Belo Horizonte: 1999. p. 110.

67 CAMPOS, Maria Verônica. Governo de Mineiros: De como meter as minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado 1693 a 1737. Universidade de São Paulo: USP, FFLCH, 2002. (Tese de doutoramento). 2002. p.113-114.

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emboaba. Lencastre avisaria sobre a conduta de Nunes Viana e os prejuízos que poderiam ser causados à Real Fazenda caso fosse deflagrado o conflito. Entretanto, como foi dito anteriormente, a conduta de tal governador não logrou êxito. Somente com d. Antônio de Albuquerque pareceu resolvida a imprudência cometida por Nunes Viana, mas a ameaça paulista ainda estava presente. Por fim, Romeiro destaca que a chegada de Albuquerque “(...) e a imposição de uma série de medidas administrativas, a exemplo da criação das vilas, figurariam aí como o divisor de águas, a marcar a introdução do governo político, em oposição à chamada era dos potentados.” 69

Mais do que desnudar a história entre paulistas e emboabas, o objetivo aqui é entender justamente as questões que envolviam o início do povoamento em Minas, e, especialmente, embora de forma preliminar, compreender algumas medidas tomadas pelo Reino de Portugal na tentativa de institucionalizar seu domínio na Capitania. Sendo visto como um dos principais acontecimentos da “infância das Minas”, 70 o cenário em que ocorreu o levante emboaba deve ser visto também como um momento em que o que estava em xeque era justamente a tentativa de imposição do Estado, ou melhor, os primórdios da institucionalização mineira.

O povoado de Ribeirão do Carmo foi o primeiro a levantar o pelourinho. A Câmara constituía um importante legado de Portugal, representando lealdade ao rei e ao Reino. Russel-Wood afirma que Albuquerque, através da “asseveração da autoridade real; [do] reconhecimento das realizações de tais comunidades; [da] investidura de autoridade local legítima nos senados da câmara (...) assegurou que a presença real fosse sentida em Minas”. 71 As primeiras vilas pareciam ter a função de conclamar aos súditos distantes de seu soberano que “não se deixassem cegar de ideias de República Absoluta (...)”. 72

Um fator decisivo característico da Colônia era a existência dos potentados. Na América portuguesa, desde o início da colonização, a Metrópole enfrentava dificuldades para manter o seu território e financiar despesas militares;

69 Ibidem. p. 315. 70 Ibidem. p.315. 71

RUSSELL-WOOD. A. J. R. op. cit., 1999. p. 110

72 Motins do Sertão. E outras ocorrências em Minas Gerais durante o governo interino de Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, conforme a correspondência deste com o governo da metrópole. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto. Imprensa Oficial de Minas Gerais. Ano 1, Fascículo 4º. out.- dez. De 1896. p. 655.

dessa forma, parte expressiva dos custos dessa natureza era transferida aos próprios colonos. Os súditos ajudavam na defesa do território e, fomentando a lealdade e a subordinação, o rei buscava fundamentar as relações políticas mantidas com seus vassalos. A esse respeito, Arno Wehling, referindo-se às ilhas atlânticas, diz que as condições da colonização “determinaram a delegação do poder real a senhores”, o que promoveu “uma fraqueza da administração real”. 73 Em áreas ocupadas por potentados e por uma população formada majoritariamente por analfabetos e pobres, sem domínio da escrita e conhecimento das leis – em que a justiça oficial, letrada e formal chegava com dificuldade – tendiam a vigorar o direito oral e uma justiça distribuída pelos poderosos.

Dirigindo motins e resistências, os potentados conseguiam muitas vezes o apoio das Câmaras, que, por sua vez, investiam homens da própria comunidade nos cargos de governo. Luciano Raposo Figueiredo destaca que esses motins, apesar da ferocidade e da grande violência, desejavam “comover os sentimentos do Rei em busca de melhores condições de barganha (...). Do soberano continuavam a esperar honras e distinções, mercês e hábitos, gêneros valorizados de modo especial por súditos que habitavam as fímbrias das conquistas ultramarinas”. 74 É importante ressaltar, contudo, que a existência de rebeliões deteriorava a confiança do monarca em seus vassalos. Alvo frequente de crítica das autoridades régias, o julgamento dos súditos foi sendo alterado. Em outras palavras, o esvaziamento na crença da fidelidade natural dos vassalos fez enrijecer a política metropolitana.

Laura de Mello e Souza discute o papel dos potentados e oligarcas em Minas. Para ela, os potentados reagiam quando se viam onerados pelos custos do fisco e afastados de seus privilégios e das estruturas de poder. Eram utilizados pela Coroa na arrecadação para a Real Fazenda, na defesa do território e na eliminação de motins e revoltas, mas deixados em segundo plano quando necessário. Grosso modo, “repentinamente, o elemento oneroso de véspera podia se metamorfosear no sertanista corajoso e atrevido, bom para povoar lugares longínquos infestados de índios”; “assim, quando o ônus se fazia sentir mais

73 WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. A Justiça Colonial: Fundamentos e Formas. op. cit. 2004. p. 34.

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intensamente, a resposta era a repressão pura e simples (...)”. 75 Dessa forma, segundo a autora, o agro e o doce, o bater e o soprar, definições propostas, respectivamente, pelo governador conde de Bobadela e pelo historiador Sylvio Vasconcellos, 76 demonstram a estratégia metropolitana na tentativa de controlar os súditos. As ações deveriam ser cautelosas, pois a harmonia assegurada por um bom governo era fator fundamental para a estabilidade da colonização na América Portuguesa.

A criação dos postos de Ordenança parece ter aumentado durante a década de 1720. Este período foi marcado pelo crescimento populacional em Minas Gerais; a todo o momento, chegavam pessoas que queriam se aventurar na captura do ouro, ou mesmo mineradores que andavam minerando em matos. Esse grande aumento populacional acabou por levar ao surgimento de muitos núcleos de povoamento, tais como pequenos arraiais e vilarejos. A figura dos oficiais da Ordenança foi vista por d. Lourenço como capaz de governar os mineradores. 77 Referindo-se também aos sertões, local de desordens, inquietações e falta de justiça, d. Lourenço manda criar oficiais de Ordenanças, definindo-os como os “(...) executores das ordens, e os que também dão à execução aos mandatos da justiça”. 78 D. Lourenço criou cargos de capitães-mores e sargentos-mores. Os ocupantes dos postos de Ordenança tinham que ser pessoas de inteira nobreza e capacidade. 79 Essa exigência foi também elucidada em carta do rei, em que ele avisava e explicava ao governador que muitos desses oficiais “(...) por ficarem com o desvanecimento honorífico que trazem consigo as ditas nomeações

75 SOUZA, Laura de Mello. op. cit., 2004. p.202. 76 Ibidem. p.139.

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Códice 23. 2ª parte. Sobre a necessidade que houve para a criação de vários postos da ordenança. Vila Rica, 6 de agosto de 1724. op. cit , 1980. p. 190-191.

78 Códice 23. 2ª parte. Vila Rica, 23 de maio de 1729. op cit , 1980. p. 217.

79 Em ordem de 16 de novembro de 1720, o rei dá conta sobre a quantidade de oficiais da Ordenança que foram criados no tempo dos governadores Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho e d. Braz Baltazar da Silveira - “e que isto não foi formar nem regular em dia, mas desordenai-as, passando patentes a tantos, para satisfazer a vaidade dos pretendentes. E que se devia reduzir toda a milícia a formar das Ordenanças do Brasil, criando em cada Comarca um Regimento e escolhendo-se para todos os posto dos Oficiais que estiverem providos, os mais capazes (...)”. Coleção Sumária. Ordem de 16 de novembro de 1720. Título 6º, § 1º, nº 4. op. cit , 1911. p. 387. Sobre o assunto Cf. Coleção Sumária. Ordem de 31 de janeiro de 1715. . Título 6º, § 1º, nº 2. p. 387. Coleção Sumária. Ordem de 15 de abril de 1738. . Título 6º, § 1º, nº 14. op. cit , 1911. p. 389.

[causam] grande dano da República (...)”. 80 Daí a importância de serem homens de inteira nobreza e capacidade.