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A nona cena no espetáculo também teve como parte de sua criação, um procedimento muito interessante, que contribuiu para aprofundar as questões tanto da dramaturgia da peça, quanto de debate interno do grupo. Depois de levantarem algumas ideias para as cenas, Ademir de Almeida reuniu esse material em um roteiro. No dia de apresentação dessa proposta ao restante do grupo, ele foi orientado pelo diretor a chegar atrasado ao ensaio, vestindo-se como um produtor da Indústria Cultural, disposto a contratar os atores da Brava para encenarem seu roteiro. O diretor também orientou outro ator – ciente do procedimento escolhido aquele dia – que “defendesse os interesses do grupo” e que argumentasse até o fim para que o coletivo não vendesse seu trabalho para a Indústria:

Eu falei pro Ademir “Mas daí você chega, na porta lá na frente, buzina, entra de carro e você é um produtor, cara! E você vai apresentar esse roteiro como um produto mercadoria e você vai fazer a gente aceitar. Você vai convencer a gente que a gente tem que aceitar. Beleza? Vai ter uma pessoa que vai contrapor o seu discurso.”. Daí eu chamei o Sérgio, disse “Sérgio, vai acontecer isso. Quando acontecer, você vai ser o responsável de contrapor”. Até então não tinha quem ia fazer. Eu falei “Oh, você é o Judas, tá?”. (...) Falei “você é o Judas, cara. Tem que defender a gente aí”. Daí veio o Ademir. Quem era o Ademir? Também está na peça esse personagem. O produtor com a mercadoria. (...) Daí ele [Ademir] falou “Meu, já li as coisas que vocês escrevem, quero fazer uma proposta pra vocês. Tenho aqui um roteiro - fiquei sabendo que vocês estão pesquisando a história de Jesus - tenho aqui um roteiro que queria muito que vocês lessem”. Daí, a gente leu. E aí? Todo mundo falou: “Pô, que legal, vamos jogar”. Era um roteiro de jogo. (...) E aí o Ademir apresentou. Qual foi a proposta de

apresentação do roteiro do Ademir? Ele era um produtor, se não me engano da Petrobrás e a proposta que ele fez pra gente foi a seguinte: Depois que a gente leu o roteiro, gostou, tal… ele falou assim: Olha gente, é o seguinte, a empresa que eu represento está expandindo, e ela está chegando em alguns lugares que está tendo conflito com a própria empresa. Assim, de desapropriação, tal… A gente quer que vocês circulem por essas cidades aqui do Brasil, nos lugares onde está tendo conflito. Fazendo essa peça aí. Por que a gente entende que a cultura é uma maneira de desviar o foco dessa tensão. Mas é pra fazer essa peça.” (...) “O que vocês quiserem”. Cara, é muita coisa… Aí o Sergião tentava contra argumentar. E todo argumento nosso já era uma linha mestra que a gente tinha de argumento, que passava assim ó “O nosso protesto coincide com a nossa sobrevivência”; “as relações de produção capitalista, elas afetam o nosso trabalho artístico”; ”o trabalho artístico não está pairando no ar, ele está inserido dentro de uma roda” - por mais que a gente queira inverter a roda, ele está inserido no meio da roda . Então tudo isso o Ademir foi falando, nesse jogo. E a gente entra no jogo e vai até o fim Fica ali no jogo, jogando por bastante tempo. O Sérgio tentando contra argumentar, falando… uma das coisas, eu lembro que Ademir falou assim “cara, mas peraí, vocês vivem de quê? Vocês não trabalham? Todo mundo não trabalha?”. (...) Mas daí, uma coisa que me organizou, eu falei assim “é, mas o moralismo não dá”. Então um dos argumentos ali, de contra argumento foi “Ah, mas um pedreiro que foi contratado pra fazer uma prisão, não executa o mesmo trabalho quando ele vai fazer um hospital? Qual é a preocupação dele? Ele não é… se ele vai ser pago pelo trabalho que ele fez? O que vocês estão…? Qual o problema de vocês? Vocês podem falar o que vocês quiserem. Vocês são livres e pode cobrar o que vocês quiserem. Vocês não querem apresentar aí na quebrada? Pega essa grana e apresenta na quebrada. Qual é o problema?” (...) - Essa era um pouco a conversa - “É moralismo assim? Vocês estão achando que estão superiores ao trabalhador normal? Estou oferecendo pra vocês. Não é essa peça que vocês querem fazer? Não é essa? Tá aqui ó… cena… Ventríloquo… Não é isso que vocês querem fazer? Então, façam! E a gente está pagando, vocês vão circular nesses lugares. Vocês não querem falar com essas pessoas? Então falem Fala que a Petrobrás é um lixo. Pode ir lá falar.”

Meu, foi muito cruel. E o Ademir ganhou de lavada… Ele ganhou de lavada. (Fabio Resende em entrevista concedida para essa pesquisa)

O diretor trouxe, de maneira lúdica, a proposta de improvisação, na qual todos os integrantes da Brava poderiam se colocar na própria situação que, no espetáculo, é vivida por Judas, Madalena e JC: frente a uma oferta de contratação que contraria as ideologias do grupo, mas possibilita melhores condições materiais de trabalho, aceitar ou não? O jogo se estabeleceu entre o

grupo e um agente da Petrobrás que oferece uma boa quantia de dinheiro para a Brava criar e apresentar o espetáculo que quiser, com a intenção de amenizar conflitos com os moradores de áreas onde a empresa atua.

Com esse procedimento, o grupo se muniu de argumentos e de material poético para a encenação da cena, na qual JC revela que assinou um contrato com a produtora iniciando um debate de ideias entre ele e Judas – que não concorda com a parceria:

JUDAS (Nervoso) - Então é isso? Você quer transformar a gente numa mercadoria dentro da Indústria Cultural?

JC - Que seja! Mas, assim, vamos conseguir levar nossa mensagem revolucionária pra muito mais gente!

JUDAS - Quanto mais dentro da indústria, mais longe das pessoas.

JC - Nossa arte é diferente! É de resistência!

JUDAS - Dentro do mercado nada é diferente, tudo é mercadoria. Não dá pra resistir de dentro. O que não mata o sistema, engorda o sistema.

JC - Eu discordo de você!

JUDAS - Claro que você discorda! Em tom irônico. Você é livre! Todos aqui são livres pra não pensar como eu penso. Mas, de agora em diante, eu me torno um estrangeiro entre vocês. E eu abdico do espetáculo. (Judas se despe).Toma! (Atirando as

roupas na direção de JC) Este é o meu corpo. E eu o destruo... (Saindo do personagem e falando como ator).

ATOR QUE INTERPRETA JUDAS - E antes de deixar o espetáculo, Judas diz suas últimas palavras: reivindico que de agora em diante, o pensamento viva pela ação.

A cena apresenta uma síntese da argumentação e dos pensamentos da Brava a respeito de um conflito ainda não solucionado. No espetáculo, Judas desiste da banda e do espetáculo; JC segue e cumpre seu contrato o que, no final das contas, significa vender a sua arte e perder sua liberdade de criação. Na última cena, JC conversa com o Deus Mercado, em busca de solucionar a relação da Arte com o Mercado, sem sucesso, obviamente.

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