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IV. ESTILO DO AUTOR REFLECTIDO EM THE PRIME MINISTER

4.7. Judeu errante

Tal como o autor afirma, a maioria das mulheres que se tornaram freiras foi contra a vontade delas. Em «The Jew‟s Revenge»138, um folhetim do nosso romancista, deparamos igualmente com uma jovem, Beatrice de Rio Santo, que se vê forçada por sua mãe a entrar para um convento, pois esta descobriu a sua relação amorosa com D. Ramiro, o assassino de seu irmão. Para tornar esta paixão ainda mais impossível e inconcretizável, outro mistério será desvendado, ou seja, D. Ramiro é o primogénito do conde de Rio Santo, que todos julgavam morto, sendo irmão de Beatrice. Toda esta desgraça que envolve esta família se deve à vingança do Judeu Salomon, que perdeu todos os seus bens e viu toda a sua família perecer às mãos do conde de Rio Santo. O interesse de referir esta história aquando da análise do romance The Prime Minister, deve-se não só aos temas das paixões impossíveis e dos conventos, mas ao facto de terem também em comum a alusão à figura mítica do Judeu Errante.

No nosso romance, apesar de já ser tão rico na contemplação de diferentes temas e mitos literários, Kingston não descurou mais este assunto, que desde a Idade Média, passando pelos seus tempos e continuando pelos nossos, serviu de tema aos mais

138 Folhetim publicado, tal como The Prime Minister, em 1845, em The Lusitanian, uma revista literária

inglesa do Porto, onde o escritor era colaborador e eventualmente o próprio editor da publicação. A publicação deste texto fez-se segundo a seguinte ordem temporal e textual: Porto, Tipografia da Revista, nº 4, March 1845, pp. 107-118; nº 5, April 1845, pp. 219-229; nº 6, June 1845, pp. 273-281.

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diversos géneros literários139. Nesta narrativa de cariz histórico, o escritor ficcionou um judeu, que similarmente a Solomon de «The Jew‟s Revenge» vagueia misteriosamente na sombra da noite. Contudo, as duas personagens diferem quanto aos objectivos que as movem. Enquanto Solomon deseja a vingança pelo mal infligido à sua família e ao seu povo, António, disfarçado de sapateiro, através dos préstimos do seu suposto ofício, move-se por entre todas as camadas sociais, tentando descobrir conspirações contra o rei e o seu ministro. As informações que colhe, entrega-as ao primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho, no intuito de conseguir a abolição do epíteto Cristãos- Novos e consequentes discriminações:

“Friend, you have well won any reward you may please to ask, - the treasury shall supply you -”

“Stay, your Excellency,” interrupted Antonio. “I before said, I serve you not for money. I am, as you well know, of the race of Abraham; but I am not, therefore, of necessity, mercenary. Think you that any gold you can bestow could repay me for all I have endured to serve you, - for the degradation, the toil, the dangers I have undergone, - the deceit, the disguises, the watchfulness I have practised, for many years past, because you assured me you could find no other to do the work you required, in whom you could confide? Think you that it was for gold I abandoned my home and my kindred, to mingle with the most base and vile on earth, to curb their passions, and to guide them according to your will? - that for this I introduced myself into the palaces of the rich and powerful, to learn their secrets, and to act as a spy on their actions? No! your Excellency has known me long, and knows me better. What I ask, you have power to grant. I demand freedom for my people! We have in all things conformed to the customs of those among whom we dwell; to their religion, in every outward-observance, which is all you can require; we pay tithes to your priests; we give alms to the poor; our manners, our language, have become the same; we obey the King and the law; and yet have we not been allowed to enjoy the rights of citizenship in the land which we enrich by our industry and our

139 João Paula Ascenso Pereira da Silva, «Transforma-se o Perseguidor na Coisa Perseguida: A “Vingança

do Judeu” Segundo William Henry Giles Kingston», in Actas do I Congresso Internacional de Estudos

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commerce. A mark has been set upon us; and wherever we move, still is the stigma of being New Christians attached to us. I demand, then, as my reward, that you should abolish that invidious distinction, and that, from henceforth, if we conform to the worship of your Church, we may likewise enjoy all the privileges of the other subjects of his Majesty.” (Vol. III, pp. 197-198)

Através deste discurso, podemos constatar que António é uma versão moral e respeitável de Solomon. As duas personagens são representações de valor e sinal oposto da figura do judeu. Embora ambas tenham por base das suas acções o mal infligido ao seu povo, a de «The Jew‟s Revenge» é movida apenas pelo ódio e vingança140, enquanto a de The Prime Minister tem como motivação obter benefícios para os judeus em Portugal. Por outro lado, este tipo de argumentação pode estar relacionado com a emancipação dos católicos e dos judeus recentemente ocorrida em Inglaterra. Na primeira metade do século XIX, os judeus e os católicos passaram a ter os mesmos direitos sociais e políticos que os restantes ingleses, podendo ser eleitos membros do Parlamento, como o próprio Benjamin Disraeli, primeiro-ministro da Era Vitoriana.141

Tal como tem sido referido ao longo destas reflexões, todo o enredo ficcional criado por Kingston está ao serviço da narração dos factos históricos que marcaram o Período Pombalino. Esta história do judeu António tem igualmente como objectivo servir de ilustração à exposição da História deste povo. Uma vez que esta narrativa constitui um “historical romance”, o autor considera adequado fazer um resumo dos momentos que marcaram a perseguição dos cristãos-novos em território lusitano. Esta síntese desenrola-se da página 7 à 12 do segundo volume, começando no reinado de D. João I, altura em que os judeus viviam em plena comunhão com os portugueses, até à

140 «O Judeu está, neste caso, longe de ser apresentado como um ser passivo, vítima do fanatismo e da ira

dos cristãos, assumindo precisamente o papel oposto, de ser activo e vingador, que retribui plenamente (e em total concordância com a tradição bíblica) as injúrias de que fora vítima, às mãos dos seus perseguidores.», in idem, p. 283.

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chegada do Liberalismo, quando as distinções foram extintas, passando pelos diferentes reinados e respectivas leis aplicadas a este assunto.

Dado que o Marquês de Pombal foi um dos governantes que marcou a diáspora deste povo142, Kingston, mesclando os dados ficcionais com a realidade, dá a entender ao leitor que a acção do ministro serviu para compensar os serviços de António. Ficcionalmente, esta é mais uma versão do que poderia ter acontecido:

The Marquis of Pombal, with that liberal policy which marked many of his actions, finally abolished all such distinctions. […] On the death of Joseph, and the banishment of his Minister, when bigotry and priestcraft reigned their supremacy, the New Christians were again subject to persecutions, and it is only under the present free constitution that all difference has been finally, and, we trust, for ever, abolished. (Vol. II, pp. 11-12)

Deste pequeno excerto é de salientar o adjectivo “liberal” para caracterizar a política do ministro, pois é representativo da forma como Kingston concebe Pombal e o representa. Tendo em conta que é peremptório em afirmar que muitas das suas acções foram liberais, ou seja, não todas, poderá revelar que em alguns aspectos considera que Sebastião José de Carvalho e Melo antecipou o Liberalismo, imagem do estadista que os liberais e os republicanos portugueses fizeram questão em difundir. Por outro lado, este adjectivo pode ser apenas sinónimo de que as medidas do Marquês foram avançadas para a sua época. Para interpretar a sua concepção deste mito que o levou a escrever um romance, não nos podemos esquecer dos diferentes elogios que o autor- narrador vai tecendo na narrativa a algumas medidas postas em prática, tais como a reconstrução da cidade num momento de crise nacional, a expulsão dos jesuítas e o

142 «No século XVIII, porventura o menos anti-semita da história, na frase de Cabral de Moncada, o

problema dos cristãos-novos foi encarado pelo racionalismo histórico em todos os seus ângulos. […] D. José I fez publicar, a 25 de Maio de 1773, uma “piissima Ley” a acabar de vez com a “sediciosa distinção”, restituindo as habilitações de família aos acusados em matéria de fé.», in Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., pp. 132-133.

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respectivo encerramento dos seus conventos. Contudo, para uma análise imparcial e mais plausível, é imprescindível que não se ignorem as severas críticas que faz à criação da Companhia dos Vinhos, ao modo como actuou no motim do Porto, e à condenação dos Távora. Perante tais observações, William Kingston poderá ter interpretado a acção do ministro como algo contraditória, uma vez que nuns aspectos se revelava liberalizadora e noutros autoritária e repressiva. Por outro lado, se o Marquês era um homem avançado, lúcido e pragmático, como demonstrou nas medidas que lhe mereceram elogios, era-o também por influência da Cultura Inglesa e da sua estada em Inglaterra, onde absorveu muito do modelo político britânico, sentido por Pombal, e obviamente pelo próprio Kingston, como superior ao português.

Esta confusão entre ficção e realidade histórica, isto é, o sapateiro enquanto personagem fictícia e as medidas de Pombal como pertencentes à historiografia, é gerada intencionalmente pelo próprio autor, pois tenta conferir veracidade ao que narra, justificando a existência de António através da referência a manuscritos que consultou:

It has just occurred to us, that we have never given our cobber‟s name. By diligent search through the vast pile of manuscripts before us, we have discovered the important piece of information that he was called Antonio, generally with O Remendão, or the Mender, added thereto. (Vol. II, pp. 15-16)

Esta técnica analisada, a que damos o nome de encenação da historicidade, é uma das especificidades do género literário que temos estado a estudar. Ao longo dos três volumes, o leitor vai-se deparar constantemente com um narrador a declarar que o que está a contar são informações provenientes de manuscritos e outros documentos que consultou.

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No documento H EL EN A C RIS TIN A VIA NA DO S SA NTO S (páginas 113-118)

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