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O Judiciário e a Justiça Juvenil: habitus e racionalidades como expressão do Poder

2. UM OLHAR SOBRE A(S) ADOLESCÊNCIA(S) E A HISTÓRIA SÓCIOJURÍDICA

3.2 O Judiciário e a Justiça Juvenil: habitus e racionalidades como expressão do Poder

Para a análise aqui pretendida sobre habitus e racionalidades do judiciário na aplicação das medidas socioeducativas, parto do entendimento que os conceitos ou noções são caracterizados não por definições estáticas, mas pelos seus usos e interligações no processo em que agentes ou instituições acionam (BOURDIEU,2010). Assim, as estratégias surgem como ações práticas inspiradas pelos estímulos de uma determinada situação histórica. São inconscientes, pois tendem a se ajustar como um sentido prático às necessidades impostas por uma configuração social específica (BOURDIEU, 2010).

Segundo o autor cada agente do campo é caracterizado por sua trajetória social, seu habitus e sua posição no campo. As lutas que nele ocorrem tem uma lógica interna, mas o seu resultado nas lutas externas ao campo, pesa fortemente sobre a questão das relações de forças internas. Neste sentido, a maior parte das ações dos agentes sociais é produto de um encontro entre um habitus e um campo (conjuntura). As agências sociais se configuram, portanto, num determinado campo, em que as práticas dos agentes sociais são mediadas por estratégias que visam legitimar a posição ocupada. O habitus vem a ser um princípio operador entre dois sistemas de relações: as estruturas objetivas e as práticas (BOURDIEU, 2010).

O habitus completa o movimento de interiorização de estruturas exteriores, ao passo que as práticas dos agentes exteriorizam os sistemas de disposições incorporadas, cujos sujeitos envolvidos na pesquisa tornam-se agentes geradores e organizadores de representações e de classificações do mundo social, em que a percepção individual, orientada pela representação coletiva, influencia nas preferências, nos valores, nas atitudes e nos comportamentos adotados por esses indivíduos, enquanto grupo social, que por sua vez, são traduzidos e incorporados por eles em modos de agir (BOURDIEU, 2010).

No que se refere à atuação do judiciário no âmbito da justiça juvenil, vemos que as práticas judiciárias históricas dominantes (legitimadas por seus habitus e racionalidades) na aplicação das medidas socioeducativas, aparentemente não passam de “imposição de penas disfarçadas, indicando fortes indícios de que a argumentação jurídica está sendo usada pelo aplicador da lei nos moldes do antigo

paradigma” (VALENTE, 2015, p. 2), constituindo-se uma expressão de violência simbólica. Segundo a autora,

A violência simbólica11 (oculta, dissimulada) é exercida pelo Judiciário na

escolha da medida socioeducativa, de forma tão genuína, que é reproduzida culturalmente pelos aplicadores da lei nas decisões judiciais atuais. Nessa linha de raciocínio, a indagação que se faz é a seguinte: como o Judiciário, entidade dominante, pode empreender maior racionalidade na aplicação da medida socioeducativa de internação, na perspectiva da proteção integral, a fim de garantir os direitos fundamentais dos adolescentes, especialmente a efetividade do direito fundamental à individualização e excepcionalidade da medida socioeducativa, levando em consideração que se tratam de seres em desenvolvimento? (VALENTE, 2015, p. 3-4)

Trata-se, portanto, de um conjunto de habitus e racionalidades que historicamente vêm legitimando a intervenção do judiciário na área da justiça juvenil. Intervenção esta que configura, nas palavras de Bourdieu (1989), ‘o poder simbólico’. Pois segundo o autor:

[...]este é um poder de construção da realidade [...] Os sistemas simbólicos distinguem-se fundamentalmente conforme são produzidos e, ao mesmo tempo, apropriados pelo conjunto do grupo ou, pelo contrário, produzidos por um corpo de especialistas e, mais precisamente, por um campo de produção e de circulação relativamente autônomo (BOURDIEU, 1989, p. 9).

Para o autor, então, o poder simbólico se define como poder de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar é uma forma transformada, irreconhecível, transfigurada e legitimada das outras formas de poder. Desta forma,

Esse poder simbólico do campo jurídico, e portanto, do Estado, está inserido dentro da teorização que Bourdieu faz do Estado enquanto processo de concentração, celebrizada em sua obra Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. O Estado possui o que o autor define como “metacapital”, pois exerce a concentração de diversos tipos de capital. O capital da força física legítima (com a polícia e o exército), o capital econômico (como regulador/interventor nos mercados), o capital da informação, e, essêncial, o capital simbólico. O capital simbólico representa o uso da violência simbólica pelo campo jurídico. O direito, como campo regulador da sociedade, tem o poder de constituir a própria sociedade e seus campos de atuação, ou seja, um poder primário, constituidor, sobre os outros tipos de poder (CARLOMAGNO, 2011, p. 245).

Assim, o Judiciário exerce um poder simbólico, pois é um poder estruturado e exercido por um corpo de especialistas, exerce o poder de transformação da realidade dos sujeitos jurisdicionados, assim como nos campos

11O termo “violência simbólica” é utilizado como categoria de Bourdieu, isto é, aquela exercida por uma

entidade dominante (aqui simbolizada pelo Judiciário), a partir de um poder simbólico, em face dos dominados (representados pelos adolescentes). Na visão de Bourdieu, os dominados estão condenados a suportar a violência simbólica exercida por parte daqueles que têm condições reais de usar o direito que impõe a representação da normalidade em relação à qual todas as práticas diferentes tendem a aparecer como desviantes, anônimas, anormais, patológicas (BOURDIEU apud VALENTE, 2015 p.5).

político, social e econômico, a partir da fundamentação de suas decisões, produzindo efeitos diretos na vida em sociedade (BOURDIEU,1989).

Nesta mesma linha de análise, Valente (2015), considera que o Judiciário é instituição dominante e tradicional no corpo da organização política e jurídica de um povo, que exerce sua força por meio da linguagem técnica, da palavra estruturada no seio das decisões judiciais, interferindo na construção da realidade através do conteúdo jurídico, na busca da justiça e da paz social. Neste sentido:

O Judiciário, por meio de suas decisões, transforma a realidade dos adolescentes em conflito com a lei por meio da utilização de conceitos e argumentos jurídicos que interferem direta e indiretamente no campo social, político e econômico, a exemplo da escolha da medida socioeducativa que afeta o futuro dos adolescentes (VALENTE, 2015, p.11)

Neste contexto, o exercício de força do Judiciário, se manifesta em decisões judiciais que, ao eleger as medidas socioeducativas aos adolescentes em conflito com a lei, legitimam-se sempre e não são contestadas, pois são decisões tidas como, reconhecidamente, legalizadas. Assim, vê-se que a escolha pelas medidas socioeducativas se configura como continuidade de uma intervenção sociojurídica que historicamente se constituiu como instância de tomada de decisão e poder simbólico. Ainda sobre os estudos desenvolvidos por Valente (2015), a autora analisa que embora a história aponte um avanço de paradigma (do modelo da situação irregular ao modelo da proteção integral), da legislação sobre o sistema de responsabilização manejado pelo Judiciário (dominante), a situação dos adolescentes em conflito com a lei permanece estigmatizada, no sentido de buscar, na aplicação da legislação especial, mera pedagogia corretiva (VALENTE, 2015, p.14).

3.2 Tecendo os fios e achados da pesquisa: uma análise sobre a aplicação das