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O Judiciário e sua função sociopolítica: configurações de um campo em

2. UM OLHAR SOBRE A(S) ADOLESCÊNCIA(S) E A HISTÓRIA SÓCIOJURÍDICA

3.1 O Judiciário e sua função sociopolítica: configurações de um campo em

a Justiça Juvenil na compreensão de habitus e racionalidades como expressão do Poder Simbólico. Por fim, analiso as nuances que permeiam a aplicação das medidas socioeducativas, sob a ótica do magistrado e equipe multidisciplinar da 2ª Vara da Infância e da Juventude (2ªVIJ) no município de São Luís-MA.

3.1 O Judiciário e sua função sociopolítica: configurações de um campo em permanentes disputas

Desde a primeira Constituição brasileira promulgada no ano de 1891 foi estabelecido o sistema presidencialista e três poderes independentes, sendo que tal estrutura foi mantida nas seis Constituições republicanas seguintes, inclusive na atual, promulgada em 1988. No Brasil tem-se uma tripartição de poderes, a saber: o Poder Judiciário, o Poder Executivo e o Poder Legislativo. São poderes do Estado, que dele participam e se legitimam. Cada um possui uma função definida, são autônomos. Tal tripartição de poderes visa limitar poderes e garantir os direitos e interesses de diversos segmentos da população. É, pois, uma tentativa de evitar a concentração do exercício do poder político nas mãos de poucos.

Farias (2001) explana a respeito de uma possível “ineficiência” da Justiça brasileira no desempenho de suas funções, que em parte se daria por conta da incompatibilidade entre a sua arquitetura e a realidade socioeconômica sobre e a partir da qual precisa atuar, haja vista que desde a época do Brasil Colonial o Judiciário foi organizado em torno de um sistema burocratizado de procedimentos escritos, prazos, instâncias e recursos, e com feições inquisitórias.

Assim, o poder judiciário foi concebido inicialmente para exercer as funções instrumentais, políticas e simbólicas, no âmbito de uma sociedade vista como sendo estável e razoavelmente equitativa em termos de distribuição de renda. Ancorava-se num sistema legal integrado por normas padronizadas, unívocas e hierarquizadas. E

os conflitos jurídicos seriam fruto de interesses unitários encarados de maneira diversa pelas partes, e a intervenção jurídica só aconteceria após a violação de um direito e sua iniciativa ficaria a cargo dos lesados, isto é, a justiça agiria apenas quando fosse devidamente provocada. Sendo assim, a justiça versaria sempre sobre eventos passados, e o alcance do julgamento ficaria restringido apenas às partes envolvidas no processo (FARIAS, 2001, p.32).

Conforme determina a Constituição Federal de 1988, o poder Judiciário integra os três poderes do Estado e sendo parte do Estado. É chamado a intervir frente aos conflitos e contradições da sociedade. Trata-se de uma instância normatizadora das situações cotidianas de indivíduos, grupos ou classes sociais, e dessa forma, busca enquadrar através das leis, determinados comportamentos ou situações para o restabelecimento da ordem, faz isso de forma coercitiva ou repressiva, por isso se diz que o Poder Judiciário comporta características disciplinadoras.

Sua função normatizadora e disciplinadora não anula sua dimensão política, já que o poder judiciário também pode ser caracterizado como uma instância formuladora e legitimadora das Leis. Podendo ser acionado e, contraditoriamente, possibilitar a abertura de “canais legais” que possam dar garantias de direitos, principalmente se ativado pelas lutas e pressões dos movimentos sociais, os quais devem exercer esse papel o que realizaram com mais ênfase e visibilidade nos finais dos anos 1970 e na década de 1980.

Como bem coloca Pereira (2006, p. 98-99):

Passa-se a entender que a Justiça tem um duplo caráter: jurídica e material ou substantiva. De um lado, ela se identifica com a justiça jurídica, a qual ao mesmo tempo em que zela pelos direitos do cidadão, deve punir os que desrespeitam esses direitos, incluindo o próprio Estado. É nesse sentido que se diz que a justiça amparada na lei, está acima do próprio Estado e funciona como um mecanismo de controle democrático. O Estado, por sua vez, é o guardião da lei, por delegação da sociedade, mas, no exercício dessa delegação, deve agir nos limites da lei, que deverá expressar a vontade da maioria e ser por esta controlada.

Rocha (2002), ao analisar a noção do “Judiciário como instância mediadora”, resgata conceituações encontradas em FOUCAULT(1992), que ao examinar a origem do “aparelho de Estado judiciário”, no século XIV, o compreende com uma instância (campo jurídico), de caráter árbitro neutro e autoritário para resolver conflitos e garantir a ordem pública. O tribunal é a forma burocrática da justiça:

Quem diz tribunal, diz que a luta entre as forças em presença está, quer queiram quer não, suspensa; que, em todo caso, a decisão tomado não será

o resultado deste combate, mas o da intervenção de um poder que lhes será, a uns e aos outros estranho e superior; que este poder está em posição de neutralidade entre elas e, por conseguinte, pode, ou em todo caso deveria reconhecer, na própria causa, de que lado está a justiça”. (FOUCAULT, 1992, p. 60 apud ROCHA, 2000).

A reflexão aqui proposta é sobre as práticas e discursos legitimados no “campo jurídico’, compreendendo que esses discursos são construídos a partir de relações sociais, historicamente produzidas. O seu caráter impositivo depende das correlações de forças, das formas de organização política, da força de tradições culturais, das disputas ideológicas que se travam em torno dos interesses e decisões em questão (BORGIANI, 2012).

O judiciário é, portanto, um campo de disputas permanentes (tanto pela sua positivação em lei), mas, sobretudo, pela sua efetivação no cotidiano social. E é por isso, “por ser necessariamente atravessado por mediações contraditórias, que as instituições ‘sociojurídicas’ também o são” (BORGIANI, 2012, p.17). Assim, a lei e/ou a norma é uma mediação histórica. Portanto, o Poder Judiciário não é neutro e não existe isoladamente: compõe um conjunto de instituições sociais que se constituem a partir de demandas e relações sociais legitimadas. Está imerso no conjunto de interesses políticos e de ideologias (BORGIANI, 2012).

Compreender, então, que o direito encorpa o ‘campo jurídico’, requer analisar como este é constituído por seus “operadores [que] concorrem pelo monopólio do direito de dizer o direito” (BOURDIEU, 2010). Neste campo situam-se os agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social (BOURDIEU, 2010). Entender o campo jurídico, para o autor, passa por entender os conflitos internos que o constituem, pois ele é um reflexo direto das relações de força existentes em seu interior. A leitura do texto jurídico é uma forma de apropriar-se, pessoalmente, da força simbólica contida na lei e no campo jurídico. Válido ressaltar que, embora o direito esteja legitimado no ‘campo jurídico’, não quer dizer que estes sejam sinônimos. Isso porque, para Borgianni (2012), é a partir do momento em que se entende que direito e ‘jurídico’ não são sinônimos, que compreendemos o direito que se torna lei como o direito positivado. Mas o direito é mais amplo do que as leis. Neste sentido:

Ele é produto de necessidades humanas, que se constituem nas relações sociais concretas. Relações que são dialéticas e contraditórias. Portanto, as

formas de sua positivação na lei dependem dos interesses em disputa, das correlações de forças, dos níveis de organização e mobilização das classes e segmentos de classes sociais. Ao ser positivado em lei, o direito ganha status de norma a ser seguida, e protegida pelo Estado. Portanto, o ‘jurídico’ é “antes de tudo, o lócus de resolução dos conflitos pela impositividade do Estado” (BORGIANNI, 2012, p. 14).

Para Fávero (1999), as demandas que aparecem como ‘jurídicas’, ou como ‘normativas’, são fetichizadas e ideologizadas no campo do direito, pois elas são essencialmente sociais. Elas se convertem em demandas ‘jurídicas’ ou de ‘preservação da paz e da ordem’ pela necessidade de controle e manipulação da realidade, de disciplinamento ou normalização de condutas sociais, segundo os interesses dominantes em determinado momento histórico.

Em se tratando da situação de adolescentes envolvidos em atos infracionais, cuja demanda requer a intervenção do judiciário (não só como instância mediadora, mas como instância normatizadora das relações sociais), estudos desenvolvidos por Fressato (2007), apontam que o Judiciário na intervenção com adolescentes em conflito com a lei, em muitas situações, aplica medidas que reforçam o caráter punitivo de uma cultura “menorista”.

Ainda segundo Fressato (2007), a legitimidade enquanto instância normatizadora, reitera a prática de muitos juízes que se “apropriam” indevidamente dos centros de internação, subtraindo a autonomia, ditam-lhes as regras, chegando a determinar qual a estratégia pedagógica a ser adotada em face de cada interno. Por outro lado, dados do Conselho Nacional de Justiça, expressam que é também comum deparar-se com um Judiciário omisso quanto às violações de direito das unidades, indiferente à sua corresponsabilidade no problema da superlotação e alheio à necessidade de alinhar seus critérios de liberação dos adolescentes aos critérios de reavaliação da medida eleitos pelo programa.

A compreensão das funções sociopolíticas do judiciário no campo do direito normativo da justiça juvenil nos leva a refletir como o atual sistema de responsabilização dos adolescentes foi construído para atender dupla finalidade: sancionadora/punitiva e educativa/ressocializadora. A seguir, situo como o judiciário, no âmbito da justiça juvenil, expressa e legitima seus habitus, racionalidades como expressão do poder simbólico na aplicação das medidas socioeducativas.

3.2 O Judiciário e a Justiça Juvenil: habitus e racionalidades como expressão