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A jurisprudência do STJ acerca da legitimidade ativa para a repetição do indébito de tributos indiretos

Com o advento da Constituição Federal de 1988, criou-se o STJ, última instância para a interpretação das leis infraconstitucionais, tanto no âmbito da Justiça Federal como no da Estadual. Até então, existiam o Tribunal Federal de Recursos, segunda instância da Justiça Federal, e o STF, que acumulava as funções hoje atribuídas ao STJ.

Diante da jurisprudência já consolidada pelo Supremo a respeito da legitimidade ativa do “contribuinte de direito”, o STJ ocupou-se precipuamente da interpretação do art. 166 do CTN a fim de determinar que tributos comportariam “por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”87, bem como da análise da

legitimidade ativa do “contribuinte de fato” para pleitear a repetição.

Em face da construção jurisprudencial segundo a qual o “contribuinte de direito” não é parte legítima na ação de repetição do indébito nos casos em que não produz a prova negativa da repercussão ou não coleta a autorização do “contribuinte de fato”, naturalmente surgiram demandas ajuizadas por estes. Ora, se se denega o direito àquele porque quem “verdadeiramente” arca com o ônus tributário é este, a consequência lógica é que o “contribuinte de fato” é quem seria a parte legítima. Do contrário, o direito à restituição de tributos indiretos seria simplesmente aniquilado do nosso sistema jurídico.

E foi exatamente nesse sentido que, num primeiro momento, a jurisprudência do STJ posicionou-se. Veja-se:

TRIBUTÁRIO - REPERCUSSÃO - CONTRIBUINTE DE FATO - RESTITUIÇÃO - LEGITIMIDADE - CTN ART. 166.

O contribuinte de fato está legitimado para reclamar a devolução do tributo indevidamente recolhido pelo contribuinte de direito. Assim dispõe, a contrário senso, o Art. 166 do CTN.88

87 Conforme já analisado, o STF considera indiretos o IPI, o ICMS e o ISS não fixo.

88 STJ. REsp 276.469/SP, Primeira Turma, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ 01/10/2001,

Da mesma forma:

PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - ERRO MATERIAL - ICMS - ENERGIA ELÉTRICA - REPETIÇÃO DE INDÉBITO - EGITIMIDADE DOCONTRIBUINTE DE FATO.

1. Erro material no julgamento do recurso especial, no qual se discutiu a legitimidade do substituto tributário e não a do contribuinte de fato.

2. O consumidor de fato que assume o ônus econômico do ICMS incidente sobre o consumo de energia elétrica está legitimado a pleitear a repetição do indébito da exação que lhe desfalcou o patrimônio (precedentes do STJ). 3. Embargos de declaração acolhidos para rejulgar o recurso especial e negar- lhe provimento.89

Todavia, posteriormente, sob a égide da sistemática dos recursos repetitivos, o STJ, no bojo do REsp 903.394/AL90, reviu esse posicionamento. Passou-se a entender que o “contribuinte de fato” não detém legitimidade ad causam para pleitear a restituição do indébito relativo a tributos indiretos por não integrar a relação jurídica tributária pertinente. Isso porque, nos termos do voto do relator,

o condicionamento do exercício do direito subjetivo do contribuinte que pagou tributo indevido (contribuinte de direito) à comprovação de que não procedera à repercussão econômica do tributo ou à apresentação de autorização do “contribuinte de fato” (pessoa que sofreu a incidência econômica do tributo), à luz do disposto no artigo 166, do CTN, não possui o condão de transformar sujeito alheio à relação jurídica tributária em parte legítima na ação de restituição de indébito.

Para tanto, o STJ fundamentou seu entendimento na doutrina, dentre outros, de Gilberto de Ulhôa Canto, para quem:

[...] se é certo que a relação jurídica tributária se estabelece entre a pessoa que a lei define como contribuinte e o Estado, é óbvio que a qualquer terceiro que tenha efetivamente suportado o encargo econômico faltará legitimidade para pleitear a sua restituição, dado que a Fazenda não o conhece, com ele não teve relacionamento algum.91

Todavia, ao adotar a premissa proposta pelo novel doutrinador, furtou-se o STJ de compatibilizá-la com o conjunto de sua obra. Isso porque, para o autor, conquanto o “contribuinte de fato” não seja parte legítima para a restituição do indébito, o “contribuinte de direito” o é sem reservas, ou seja, sem a necessidade de produzir

89 STJ. EDcl no REsp 209.485/SP, Segunda Turma, Relator(a) Ministro(a) Eliana Calmon, DJ

01/09/2003, p. 243.

90 STJ. REsp 903.394/AL, Primeira Seção, Relator Ministro Luiz Fux, DJE 26/04/2010.

91 CANTO, Gilberto de Ulhôa. Repetição do indébito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. Caderno de

prova do não repasse ou de obter autorização do “contribuinte de fato. Tanto é que na continuação do trecho citado pelo Ministro Luiz Fux em seu voto, Gilberto de Ulhôa Canto dispõe que:

Se à Fazenda, que pode, sem dúvida, recusar a restituição do contribuinte econômico pelo fato de com ele não ter tido vínculo jurídico também se permitir recusar a devolução ao contribuinte de direito, com a alegação de que ele transferiu a terceiro o encargo financeiro, é certo que se perpetuará a ilegalidade consistente no próprio pagamento indevido, o que não pode, evidentemente, ser o objetivo do intérprete ou do aplicador da lei.92

Ademais, na redação do art. 177 do Anteprojeto de Lei Orgânica do Processo Tributário, de 1964, Gilberto de Ulhôa Canto propôs o seguinte teor:

Art. 177. É parte legítima para pleitear a repetição o sujeito passivo da obrigação tributária ou o infrator que tiver pago penalidade, ainda que o efetivo encargo financeiro tenha sido transferido a outrem. Quem provar a transferência, disporá de ação de regresso contra o sujeito passivo reembolsado, ou poderá integrar a lide como assistente e requerer ao juiz que a restituição lhe seja feita.93

Em seu voto, o relator cita, ainda, passagem da doutrina de Eduardo Domingos Botallo, verbis:

[...] somente o contribuinte chamado ‘de jure’ é parte da relação jurídica tributária; consequentemente, somente a ele é atribuível o título jurídico; somente a ele cabe o direito de repetição do tributo indevido e nenhuma condição adicional se lhe pode ser imposta para o exercício desse direito'.

Da mesma forma, o autor em cuja doutrina o STJ fundamenta seu posicionamento sustenta não possuir o “contribuinte de fato” legitimidade ativa para propor a demanda repetitória por ausência de relação jurídica com o Fisco; todavia, coerentemente, compreende não ser válido impor condições adicionais para o exercício desse direito pelo contribuinte de jure.

Do exposto, percebe-se que o STJ, no que se refere à legitimidade ativa do “contribuinte de fato”, abraça a doutrina de autores de renome e entende que, para efeitos de restituição do indébito, sua figura deve ser desconsiderada, tendo em vista a ausência de relação jurídica com o Fisco. Todavia, no que concerne à legitimidade ativa do “contribuinte de direito”, ignora completamente a lição desses mesmos autores e

92 CANTO, 1983, p. 6.

entende como juridicamente relevante a figura do “contribuinte de fato”, impondo àquele a comprovação do não repasse do ônus econômico ou a autorização deste. O próprio STJ consignou essa incongruência no RMS 24.532/AM, verbis:

[...] 2. A caracterização do chamado contribuinte de fato presta-se unicamente para impor uma condição à repetição de indébito pleiteada pelo contribuinte de direito, que repassa o ônus financeiro do tributo cujo fato gerador tenha realizado (art. 166 do CTN), mas não concede legitimidade ad causam para os consumidores ingressarem em juízo com vistas a discutir determinada relação jurídica da qual não façam parte. [...]94

O que se pode concluir do entendimento adotado pelo STJ é que, ao negar- se a legitimidade ativa ora ao “contribuinte de direito” em razão da repercussão econômica do tributo, ora ao “contribuinte de fato” por conta da ausência de relação jurídica com o Fisco, o direito à restituição, constitucionalmente garantido, simplesmente desaparece do ordenamento jurídico, perpetuando-se a invalidade da cobrança da obrigação tributária. Nos dizeres de Hugo de Brito Machado Segundo,

essa forma de pensamento, além de contraditória, viola clara e diretamente a garantia fundamental à tutela jurisdicional (CF/88, art. 5.º, XXXV), pois deixa uma lesão ao direito do contribuinte, causada pela cobrança de um tributo indevido, inteiramente imune à apreciação judicial.95

Paralela a essa questão, o STJ enfrentou ainda a peculiar situação dos consumidores de energia elétrica. Com efeito, o serviço de energia elétrica é explorado mediante sistema de concessão e o valor cobrado por sua prestação é fixado através de regime tarifário, que já remunera todos os custos do concessionário. Nesse contexto, “o imposto é juridicamente cobrado como um plus”96, ou seja, “a lei apenas conferiu ao

concessionário o dever jurídico de recolher o ICMS, mas atribuiu-lhe também o direito de exigir do consumidor o reembolso respectivo”97, num típico caso de repercussão

jurídica por reembolso, conforme asseverou-se anteriormente.

Nesse contexo o STJ, num primeiro momento, apesar de considerar o consumidor de energia elétrica mero “contribuinte de fato”, admitia a possibilidade de este pleitear a restituição de tributo pago indevidamente. Veja-se:

94 STJ. RMS 24.532/AM, Segunda Turma, Relator Ministro Castro Meira, DJe 25/09/2008.

95 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Ainda a restituição de tributos indiretos. Revista Nomos. V.

32.2, jul/dez. 2012a, p. 237.

96 MACHADO SEGUNDO, 2012b, p. 325. 97 MACHADO SEGUNDO, loc. cit.

Embora não seja contribuinte de direito, o consumidor de energia o é, indiretamente, eis que é ele que sofre o ônus tributário (ICMS) embutido no consumo, tendo legítimo interesse de promover ação visando eximir-se da exação.98

Todavia, após o julgamento do já mencionado REsp 903.394/AL, o STJ passou a aplicar o entendimento lá esposado aos consumidores de energia elétrica, sem atentar para as peculiaridades de sua relação jurídica com o concessionário e para as deste com a Administração. A partir de então, passou-se a negar a legitimidade ativa para a restituição do indébito aos consumidores de energia elétrica.

Finalmente, no bojo do REsp 1.299.303/SC, também julgado de acordo com a sistemática dos recursos repetitivos, compreendeu-se que, com relação à cobrança do ICMS, a situação jurídica dos consumidores de roupas, eletrônicos, bebidas, etc., não era semelhante à dos consumidores de energia elétrica. Isso porque na primeira hipótese, conforme já se explicitou exaustivamente, o preço, e, portanto, a probabilidade de o ônus econômico representado pela exação compô-lo, é definido pelas circunstâncias de mercado quando da ocorrência do fato gerador. Ademais, eventual majoração do ônus tributário poderá ser ou não repassada ao consumidor final, o que também dependerá do quadro econômico. No segundo caso, todavia, o imposto é destacado da tarifa, a qual tem o condão de remunerar o serviço prestado e tem valor fixo. Dessa forma, a alteração na carga tributária implica a revisão da tarifa, uma vez que no regime de concessão os prestadores do serviço têm direito a obter precisamente a remuneração que lhes foi assegurada por meio do ato administrativo correspondente. É o que prevê o art. 9º da Lei nº. 8.987/95, verbis:

Art. 9º. A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato. [...]

§ 2º Os contratos poderão prever mecanismos de revisão das tarifas, a fim de

manter-se o equilíbrio econômico-financeiro.

§ 3º Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso.

Demais disso, é evidente a inexistência de interesse do concessionário em litigar contra a Fazenda Pública a fim de questionar um tributo indevido. A uma porque,

98 STJ. RESp 48.135/SP, Primeira Turma, Relator Ministro Demócrito Reinaldo, DJ 19/09/1994, p.

em razão da repercussão jurídica, é reembolsada da totalidade do tributo pago, de modo que não há prejuízo econômico que justifique empenho em discutir a questão. A duas porque o concessionário assume, perante a Administração, posição de sujeição, submetendo-se às suas imposições sob pena de rescisão do contrato de concessão, o que diminui sobremaneira a possibilidade de intentar litígio. Diante desse quadro, impossibilitar ao consumidor de energia elétrica a discussão acerca da invalidade do ICMS ou, em sendo o caso, a sua restituição, consistiria em permitir que o Estado praticasse as mais flagrantes inconstitucionalidades sem que o real interessado pudesse se insurgir contra isso.

A esse respeito, confira-se trecho do voto do Ministro Cesar Asfor Rocha no REsp 1.299.303/SC, verbis:

Os dois primeiros [Estado-concedente e concessionária], observo, ao longo de toda a exploração do serviço de fornecimento de energia elétrica, de competência da União (art. 21, inciso XI, alínea “b”, da CF/8), trabalham em conjunto, estando a concessionária em uma posição de quase total submissão, sob pena de rescisão do contrato de concessão na hipótese de desrespeito a alguma diretriz, política pública, projeto ou norma imposta pelo Estado- concedente. Politicamente, portanto, nas relações contratuais em geral estabelecidas com o poder público, a concessionária sempre evitará embates desgastantes e que gerem prejuízos aos serviços ou aos interesses públicos. [...]

Veja-se que, quando se trata de “criação ou alteração” de tributos, devendo-se incluir aí as modificações na forma de calcular e na base de cálculo, a concessionária encontra-se sempre protegida, impondo a lei nesses casos, para preservar o “equilíbrio econômico-financeiro”, a majoração da tarifa. Sob esse enfoque é que o Estado-cedente e a concessionária do serviço público encontram-se lado a lado, no mesmo polo, em situação absolutamente cômoda e sem desavenças, inviabilizando qualquer litígio em casos como o presente. O consumidor da energia elétrica, por sua vez, observada a mencionada relação paradisíaca concedente/concessionária, fica relegado e totalmente prejudicado e desprotegido. Esse quadro revela que a concessionária assume o papel de contribuinte de direto apenas “formalmente”, assim como o consumidor também assume a posição de contribuinte de fato em caráter meramente “formal”.99

De tudo o que foi exposto, conclui-se que a jurisprudência atual do STJ nega ao “contribuinte de fato” o direito à restituição de tributo pago indevidamente sob o fundamento de que não participa da relação-jurídico tributária e, portanto, não possui legitimidade ativa para fazê-lo. Entretanto, no que se refere ao consumidor de energia elétrica, por se tratar de serviço público explorado sob regime de concessão, regido por normas próprias, as quais implicam a existência de relações peculiares entre o Estado-

concedente e o concessionário e entre este e o consumidor final, é possível ao “contribuinte de fato” a discussão acerca da validade da obrigação tributária, bem como a restituição do indébito.

4 ANÁLISE CRÍTICA DAS PREMISSAS ADOTADAS PELA JURISPRUDÊNCIA

Tomando-se por base o que foi exposto até o presente momento, observa-se que a aplicação do art. 166 do CTN nos moldes delineados pela jurisprudência, em vez de garantir a restituição ao cidadão que pagou tributo indevido, torna efetivamente impossível a repetição do indébito, seja ao “contribuinte de direito”, seja ao “contribuinte de fato”. Estimula-se, nas palavras de Hugo de Brito Machado, a “inconstitucionalidade útil” , ou seja, “a produção de lei tributárias inconstitucionais que seriam úteis para os governantes, no sentido de que podem elevar a arrecadação, e mesmo quando declarada a inconstitucionalidade os valores arrecadados não serão restituídos”.100

Nesse contexto, o objetivo deste capítulo é desconstruir as premissas errôneas nas quais a jurisprudência alicerçou-se para exprimir seus entendimentos. Busca-se demonstrar que a interpretação atual não se coaduna com uma visão sistemática da legislação pátria. Ademais, não obedece aos ditames de um Estado Democrático de Direito, nos quais o Estado submete-se às leis, na medida em que permite que a Fazenda Pública se aproprie de valores que tenham sido pagos extrapolando-se as limitações constitucionais ao poder de tributar.

Todavia, o que se defenderá não é a completa inconstitucionalidade do dispostivo, embora a interpretação atual da jurisprudência conduza a esse raciocínio. Procurar-se-á demonstrar que é possível conferir à norma em cotejo uma interpretação conforme a Constituição e que esteja, portanto, em consonância com todo o sistema jurídico tributário brasileiro.