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5.2 Impressões dos profissionais sobre os SRTs

5.2.3 Justiça

As perspectivas apresentadas aqui relacionam-se à mobilização da memória sobre a história de vida dos moradores. Estes profissionais enfatizaram o passado injusto de sofrimentos vividos, apontando para uma nova situação em que se faz justiça ao devolver essas pessoas para o convívio social, reabilitando-as.

Beija-flor: “Acreditar na proposta da reforma psiquiátrica, enquanto alternativa às pessoas

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Sabiá: “(...) Faz sentido dar a liberdade de criação e devolver a voz a todos aqueles que

estiveram condenados, apenas por terem um diagnóstico. É possível e fundamental reabilitar.”

Pica-pau: “Melhoria da qualidade de vida das pessoas que foram décadas segregadas,

asiladas.”

João de Barro: “Este trabalho de certa forma é um desafio e uma experiência de que

poderíamos prescindir do hospital e de que este foi um grande equívoco na vida das pessoas.”

Basaglia já dizia, em 1964, sobre o Hospital Psiquiátrico:

A ausência de qualquer projeto, a perda de um futuro, o estar constantemente em poder dos outros sem o mínimo impulso pessoal, o ter dividida e organizada a própria jornada sob tempos ditados só por exigências organizativas que – exatamente por isso – não podem levar em conta o indivíduo singular e as circunstâncias particulares de cada um: este é o esquema institucionalizante sobre o qual se articula a vida do asilo [...]. O doente mental, fechado no espaço apertado da sua individualidade perdida, oprimido pelos limites que lhe foram impostos pela doença, é forçado pelo poder institucionalizante da internação a objetivar-se nas próprias regras que o determinam, em um processo de aparvalhamento e de restrição de si que – originariamente sobreposto à doença – não é sempre reversível

(BASAGLIA, 19649 apud SARACENO, 2001, p. 62).

Poderíamos dizer que essa “instituição total” (GOFFMAN, 2001) produz o processo de objetificação dos sujeitos a partir da disciplina imposta aos corpos (FOUCAULT, 2007) pela qual, como nos trouxe o excerto de Basaglia, são apartados de si. Porém, a docilização dos corpos a que Foucault (2007) refere-se tem por objetivo criar uma economia do corpo para torná-lo “(...) tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente.” (p. 119).

Mas há certas singularidades nesse processo quando realizado em um hospital psiquiátrico, pois, à primeira vista, os corpos de seus internos não teriam um objetivo “produtivo”.

O trabalho imposto lá, era “(...) a título de regra moral pura; limitação da liberdade, submissão à ordem, engajamento da responsabilidade com o fim único de desalienar o espírito perdido nos excessos de uma liberdade que a coação física só limita aparentemente.” (FOUCAULT, 2004, p. 480). Ou seja, tornar aquela pessoa que desestabilizava a ordem social

9 BASAGLIA , F. La distruzione dell’ ospedale psichiatrico. 1964.

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pela sua imoralidade, não-adequação ao mundo produtivo, um fardo menos pesado para os homens e mulheres que precisam trabalhar e não podem perder seu precioso tempo (tempo é dinheiro!) com esses estorvos, esses autores do crime hediondo de adoentar-se, de desenvolver uma patologia crônica de tratamento complexo.

Via-se como necessário “(...) ordenar a desordem do louco (...). A instituição manicomial não é outra coisa que o espaço, o tempo, o conjunto de normas e de ritos que contêm naturalmente essa ordem” (SARACENO, 2001, p. 64).

Beija-flor, Sabiá, Pica-pau e João de Barro materializam verbalmente essa injustiça ao falarem dos “condenados, apenas por terem um diagnóstico”, pessoas “segregadas, asiladas” e um “grande equívoco” – talvez um grande eufemismo para o que muitos chamariam crime. E apontam para a “alternativa” possível, a da reabilitação, uma justiça possível.

O louco sobre o qual fala Basaglia, seria o sujeito social que perde progressivamente sua contratualidade, sua relação com a cidadania e com a afetividade. Por isso, o desafio de se fazer justiça é o desafio de liberar o corpo objetificado pelo sistema disciplinar e devolvê-lo ao corpo social, “(...) uma empreitada por definição interativa entre sujeito e contexto” (SARACENO, 2001, p. 68).

Mas, como já vimos anteriormente, a injustiça não está delimitada por muros. Além da desospitalização, é preciso proceder a desinstitucionalização, pois sempre que o paradigma do entretenimento sobrepõe-se, a contratualidade não grassa, seja dentro ou fora do hospital.

O local que abrigará essas pessoas terá que revitalizar o cotidiano com criatividade e afeto, “que exercitarão diversas linguagens, indo da palavra que se escuta e se fala ao corpo que se toca e se envolve”, nos diz Vanderlei (2016, p. 89) ao referir-se ao trabalho com oficinas criativas, uma ferramenta interessante e efetiva a ser utilizada; mas não só as oficinas terão essa função, qualquer ação visando à Reabilitação Psicossocial como paradigma de trabalho precisa preocupar-se com esse processo de passagem da condição de objeto para a condição de sujeito, aquele que cria e sente.

Importa salientar que a noção de “sujeito” que se adote é extremamente importante na constituição do processo reabilitativo.

Bezerra (2016), ao falar sobre a clínica como espaço que possa contribuir na reabilitação, tece uma crítica à noção de sujeito que definiu as práticas que caminharam no sentido da objetificação. A “(...) ilusão (...) de que há uma maneira de ser homem, uma maneira de ser sujeito adequada à natureza da espécie humana” (p. 179).

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Essa ilusão passa a ser desconstruída quando Freud, ao lançar luz sobre o inconsciente, mostra que o sujeito não tem esse centro, esse modelo, mas é de fato “descentrado”, pois é sujeito cultural, com a capacidade de (re)produzir o que até então era inimaginável (BEZERRA, 2016). É sujeito e objeto ao mesmo tempo, uma vez que produz cultura, mas sempre a partir da cultura já existente.

Assim, se assumirmos o sujeito não como um indivíduo empírico, mas como esse campo de experiência em que o indivíduo, ao longo da vida, busca (re)significar-se no mundo (ELIA, 2010), o trabalho com essas pessoas também passará, como vem passando, por um processo de (re)significação.

Portanto, assumir o fardo da mudança de paradigmas não é fácil. Trazer justiça para aqueles que por tanto tempo foram vistos como objetos-problemas é, à primeira vista, uma tarefa hercúlea que demanda profissionais imbuídos no processo. E, ainda assim, retomando o já citado Basaglia, é algo que não será possível para todos.

Encerramos aqui as análises da questão aberta apresentada aos profissionais no questionário, com o otimismo de ver o quanto esses sujeitos mostram-se envolvidos e afeitos às práticas de reabilitação (constante em suas respostas), além de conscientes do valor da liberdade e da história injusta vivida pelos moradores, pois essa afetividade que se constrói é fundamental para a constituição de novas práticas e de novos sujeitos, sejam moradores, sejam profissionais.

Passamos agora a analisar falas dos próprios moradores sobre os SRTs onde hoje residem.

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