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1. A REFORMA NO ACESSO À JUSTIÇA E OS MÉTODOS ADEQUADOS DE

1.3 Os Métodos Adequados de Resolução de Conflitos em Espécie

1.3.5 Justiça Restaurativa

Consiste a Justiça Restaurativa “em um método consensual, no qual a vítima e o infrator, e, quando for conveniente, outras pessoas ou membros da comunidade atingidos pelo crime, participam da construção de recursos apaziguadores dos traumas e perdas causados pelo crime” (MELO, 2015, p.23).

É um método voluntário e informal, centrado no diálogo, que tem sua importância pela crise de legitimidade do atual sistema judicial punitivo-retributivo, o qual dessocializa o ofensor, sem respeitar nem aos menos seus direitos e garantias fundamentais, ao mesmo tempo em que resta omisso no efetivo atendimento às reais necessidades para restabelecimento das vítimas (PINTO, 2011; SICA, 2007 apud AZEVEDO; PALLAMOLLA, 2014, p.179).

As primeiras experiências na aplicação dessa técnica ocorreram no Canadá, Estados Unidos e Nova Zelândia, impulsionando o surgimento de inúmeras experiências nas décadas de oitenta e noventa e fazendo com que a Justiça Restaurativa chegasse até à Organização das Nações Unidas (ONU). Assim, “após a realização do Décimo Congresso das Nações Unidas para Prevenção do Crime Tratamento do Delinquente, em abril de 2000, cujo resultado foi a Vienna Declaration on Crime and Justice: Meeting Challenges of the Twenty-first Century, na qual se conclamou a adoção de mecanismo restaurativos de solução de conflitos penais” (BENEDETTI, 2009, p.51), foi realizada no Canadá uma reunião com um grupo de dezoito experts, os quais prepararam um documento compreendendo certas padronizações acerca de entendimentos sobre a Justiça Restaurativa. Submetido à Comissão de Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente, esta recomendou a adoção do documento pelo Conselho Econômico e Social (ECOSOC). Então, em agosto de 2002, o ECOSOC emitiu a Resolução n°

12/2002, contendo os Basic Principles on the Use of Restorative Justice Programmes in Criminal Matters.

A esse respeito, Juliana Benetti manifesta-se nos seguintes termos:

Os programas de Justiça Restaurativa foram definidos pelo ECOSOC como aqueles programas que, valendo-se de processos restaurativos, atinjam resultados restaurativos. É considerado “processo restaurativo” qualquer procedimento em que a vítima e o ofensor, além, quando apropriado, de indivíduos outros como familiares ou membros da comunidade, participam juntos e ativamente, por meio de mecanismos de conciliação, na solução dos problemas suscitados pela prática do crime, dispondo, geralmente, da ajuda de um facilitador. O “resultado restaurativo”, por sua vez, é o acordo alcançado ao fim de um processo restaurativo, abrangendo soluções como a reparação, a restituição e a prestação de serviços à comunidade, destinadas a responder às necessidades e às responsabilidades individuais e coletivas e centradas na reintegração social da vítima e do ofensor. Além do intuito de estipular definições fluidas, mas claras, é patente na resolução do Conselho uma grande preocupação em conciliar programas restaurativos com a preservação do devido processo legal, fazendo menção a garantias processuais como a presunção de inocência e ao acesso do Poder Judiciário e ressaltando sempre a voluntariedade da participação da vítima e do ofensor (BENEDETTI, 2009, p.52).

Howard Zehr, em seu livro Trocando as Lentes, coloca a justiça restaurativa como uma nova forma de enxergar o crime e a justiça, de modo a melhor atender as necessidades tanto da vítima, quanto do ofensor. Para tanto, ele defende que não basta que busquemos meramente penas alternativas, mas sim formas alternativas de ver o problema e a solução. Nessa seara, exemplifica através da distinção conceitual de crime e justiça, no olhar com diferentes lentes:

Justiça Retributiva

O crime é uma violação contra o estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre ofensor e estado, regida por regras sistemáticas.

Justiça Restaurativa

O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de

soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança. (ZEHR, 2008, p.

170-171) (grifo nosso)

Portanto, diferentemente da justiça retributiva tradicional, a justiça restaurativa busca “concentrar-se no prejuízo causado, nas relações interpessoais e comunitárias, mais do que nas regras ou na lei quebradas” (BOONEN, 2011, p.18). Ademais, a Justiça Restaurativa também busca envolver no processo de restauração, igualmente, vítimas e ofensores, mantendo sempre o respeito por todos os envolvidos, independentemente de hierarquização entre eles. Quanto a estes, incentiva-os a compreender e cumprir suas obrigações, as quais não devem ser entendidas como lesões, mas sim como passíveis de serem alcançadas, evitando-se sempre a coação e o isolamento. Quanto àquelas, trabalha seu restabelecimento pelo empoderamento e atendimento de suas necessidades como entenderem. Ainda, caso possível, tenta que haja diálogo direto ou indireto entre os envolvidos. Por fim, também pretende o envolvimento da comunidade afetada,

até para que haja o reconhecimento e resposta às causas do crime na própria comunidade. (ZEHR e MIKA, 1997 apud BOONEN, 2011, p.18-19).

Enfim, “a premissa maior dessa forma dialógica de resolução de conflito é reparar os danos sociais e emocionais causados pela prática do ato ilícito, que é visto como um fato que causa um dano à vítima e perturba o pacto de convivência esperado em uma comunidade”, dando ênfase para tanto no diálogo, envolvimento emocional e reaproximação das partes (MELO, 2015, p.23). A justiça aqui é medida muito mais pela satisfação da vítima, do ofensor e da comunidade - cabendo a eles decidir como lidarão com a ofensa e suas consequências -, do que, como na jurisdição, pelo mero cumprimento das regras e procedimentos judiciais (CENTRE FOR JUSTICE & RECONCILIATION, s.d.).

Quanto às práticas restaurativas, podem ser as mais diversas, nada impedindo que sejam criadas novas, ou adaptadas as já existentes. No entanto, podemos relacionar as práticas mais conhecidas na atualidade, referidas pela doutrina internacional, quais sejam:

a) mediação vítima-ofensor (victim offender mediation), quando os encontros incluem apenas os diretamente envolvidos; b) conferência (conferencing), em que caberá ao facilitador previamente selecionar ou trabalhar a checagem daqueles que irão participar, ou organizar os grupos, distribuindo os papéis entre os que vão negociar os resultados e os que vão avaliar e validar esses resultados; c) círculos de diálogo, ou de pacificação, com ou sem função decisória (peacemaking circles), mediante encontros entre os principais interessados, com a participação voluntária de outros membros da comunidade interessada; d) círculos decisórios (sentencing circles), em que a autoridade judicial e representante do MP podem participar como membros da comunidade; cabendo ao magistrado prolatar sentença em consonância com o consensuado no círculo. [...] (VASCONCELOS, 2017, p.261)

Daniel Achutti (2014, p.63) ainda elucida que o termo justiç a restaurativa também “acaba por ser empregado em diversas situações, ainda que em campos não judiciais – como, por exemplo, na resoluç ão de conflitos escolares, hospitalares e empresariais, e até mesmo conflitos em comunidades online”.