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A primeira e crucial questão sobre qualquer trabalho de tese é: qual seria a justificativa para mais um trabalho de pesquisa sobre um léxico de especialidade? Essa pergunta é muito bem vinda e é ela que nos dá um leque de possibilidades das quais nos ateremos em um aspecto que orienta nossa proposta de pesquisa: o estudo de marcas dialetais na terminologia dos produtores rurais que trabalham com a mandiocultura na região do noroeste cearense. Elaborar um glossário que apresente essas marcas etnodialetais dos termos oriundos da atividade de produção da farinha de mandioca e seus derivados nesta região pode ser justificado, de uma maneira geral, tanto do ponto de vista da descrição e análise do léxico de especialidade, quanto da importância do levantamento dos saberes acumulados das atividades tradicionais que permeiam o universo sociocultural no noroeste cearense.

Compreendemos que tais marcas dialetais, que são únicas e singulares em uma comunidade, representam recortes do léxico que mostram uma sinalização social, cultural e linguística do grupo específico e de uma atividade socioprofissional em particular. A relação língua, cultura e sociedade traz para as abordagens linguísticas contribuições relevantes, sobretudo, ao tratar das ciências do léxico, que modernamente, têm expandido suas discussões para além das fronteiras da Lexicologia, Lexicografia, Terminologia e Terminografia, alcançando a Dialetologia, a Sociolinguística, a Fonética e a Etnolinguística.

Em abordagens bem mais recentes que tematizam o léxico, referem-se à Terminologia e Terminografia principalmente vistos em um contexto sociocultural. Por meio destes enfoques, novas disciplinas ligadas ao léxico projetam-se no cenário dos estudos linguísticos: a Socioterminológica, Etnoterminologia e a Geoterminolinguística. A inserção destas novas perspectivas acrescentam aos estudos terminológicos e terminográficos um perfil voltado para aspectos diatópicos, diafásicos e diastráticos das terminologias das línguas de especialidades.

A Dialetologia, a Sociolinguística e a Etnolinguística vem de reboque trazendo uma abordagem metodológica de consistência teórico-prática que se embricam dando um viés social e cultural ao método de coleta de todo o material do glossário. Sem contar que, de maneira geral, nos envolvemos com um léxico da biologia quando coletamos animais e plantas da região e descrevemos os conceitos de ordem zoológica (fauna), botânica e ecológica (flora) da região. Embora não seja corriqueiro em estudos dialexicológicos, optamos por uma exposição oral dos termos representativos do campo geral, por isso recorremos a Fonética para uma descrição mais minuciosa para a retenção dos traços orais dos falantes pesquisados; iremos fazer uma descrição bem mais detalhada sobre as ciências evocadas, um pouco mais à frente no desenrolar deste trabalho.

Nossa pesquisa tende a observar, ainda, aspectos de variação de uso de termos que migram da língua geral para a língua de especialidade e das línguas de especialidades para a língua geral. Por isso, partimos dos termos catalogados in vivo do universo oral da comunidade e de suas relações sociais e culturais nos ambientes de contato como as casas dos agricultores, os roçados, as casas de farinha, os comércios e as cozinhas dos moradores desses grupos sociais. Utilizamos critérios técnico-metodológicos pertinentes aos estudos linguísticos nesta especialidade, bem como as novas perspectivas teórico-metodológicas das ciências do léxico, o que contribuirá para o conhecimento linguístico, histórico, étnico, social e cultural da região através do levantamento dos traços dialetais presentes no léxico de especialidade dos produtores rurais da farinha de mandioca e seus derivados na mesorregião noroeste cearense, na microrregião do litoral de Camocim a Acaraú, especificamente localizada abaixo do Rio Acaraú, nos territórios dos municípios de Acaraú, Bela Cruz, Cruz e Jijoca de Jericoacoara.

A região e o grupo profissional constitui-se como um espaço excepcional, quer no aspecto étnico-cultural, quer no aspecto sócio-histórico. Tal fato acontece por encontrarmos, na região e na atividade, pessoas ligadas a área com múltiplos interesses e por isso buscam interagir entre si para atingir tais objetivos com plantar, cuidar, colher, transportar, beneficiar, produzir, vender, comprar, cozinhar, entre outros. Nesta expectativa, podemos encontrar na região com os agricultores, do “brocador” ao “cercador”, do “semeador ao capinador”, do “arrancador” ao “carregador”, da “rapadeira” ao “forneiro”, do “vendedor” à “tapioqueira”, cada um desses sujeitos interagem entre si e utilizam-se desse espaço geográfico para cuidar de seus interesses econômicos, sociais, culturais, étnicos, e consequentemente, linguísticos.

No caso particular da cultura da mandioca, temos ainda uma riqueza cultural desenhada pela interação familiar e comunitária que tanto se destaca pela sua preponderância de atuação

na produção da farinha e seus derivados, nos roçados, casas de farinha, cozinhas, vendas, feiras e mercados. Tal interação é um nascedouro de comportamentos e costumes etnoculturais que se assimilam e reassimilam nas cantorias, nas cantigas de roda, brincadeiras de coco, rezados, novenas e contos orais. Tendo a atividade uma relação intrínseca com a alimentação da comunidade e da família, há uma constância de convidados e visitantes envolvidos nos diversos processos como nas casas de farinha por ocasião do beneficiamento e da produção dos produtos que são apreciados por todos.

Pelo já exposto, e com a influência socioeconômica da atividade na região que conta com um contingente expressivo de pessoas de municípios escolhidos para a pesquisa, sobretudo, da zona rural, fica claro que nosso estudo tem grande importância para a região, para a língua geral, como também para o campo específico. Encontramos, nesta pesquisa, peculiaridades únicas das pessoas inqueridas que trazem consigo modos de ver o mundo e de construir linguagens a partir de suas experiências individuais e coletivas. Este fenômeno de linguagem referido no léxico dos sujeitos dessa região envolve processos, funções e produtos, e reinventa uma linguagem específica, sobretudo, um léxico que permite indagações sobre como é criada, que elementos étnicos estão envolvidos na produção deste léxico? Que interferências têm a cultura local na produção de termos e expressões usadas pelos socioprofissionais? Há fatores históricos influenciando no uso da linguagem produzida nesse espaço da mandiocultura?

Tais questionamentos surgem como forma de compreender o universo discursivo dos sócioprofissionais que trabalham com a mandiocultura na mesorregião noroeste cearense, na microrregião do litoral de Camocim a Acaraú, especificamente localizada abaixo do Rio Acaraú, nos territórios dos municípios de Acaraú, Bela Cruz, Cruz e Jijoca de Jericoacoara e, por conseguinte, ver as consequências, os aspectos sócio-histórico-étnico-culturais deste universo discursivo na língua geral. Nossa curiosidade ao tratar do léxico dos sócioprofissionais da mandiocultura remonta também de tentarmos ter um perfil do léxico na região e sua preponderância na apreensão de sua língua, cultura e sociedade.

Lembremos o que nos diz Scherre (2005, p. 10), com referência a língua e a cultura:

As línguas humanas são, em verdade, mais do que excelentes instrumentos de comunicação. São, também, reflexo da cultura de um povo. São, além disso, parte da cultura de um povo. São ainda mais do que isto: são mecanismos de identidade. Um povo se individualiza, se afirma e é identificado em função de sua língua.

Além de tudo, nossa pesquisa tem ainda como objetivo final a organização do Glossário Regional da Mandiocultura em versão de CD-ROM (e em uma versão impressa convencional), que ao nosso ver é um instrumento a ser usado por linguistas, professores, estudiosos da cultura popular, os próprios partícipes da comunidade, cidadãos comuns, enfim, qualquer um que venha estudar e aprender sobre a cultura da mandioca nesta região. Um glossário de especialidade apreende muitas informações relevantes do léxico com dados que integram vários níveis linguísticos, desde ao léxico em si, passando pela fonética, morfologia, sintaxe, semântica e pragmática, dando grandes subsídios aos que deste vierem a necessitar para consulta.

Por tudo isso, que já foi dito neste capítulo e nos anteriores, podemos ter consciência da nobreza deste trabalho e de sua contribuição para as áreas que se inserem direta e indiretamente.

Contudo, cabe-nos fazer, a seguir, uma revisão dos trabalhos de relevância já publicados na área sobre a área e que podem contribuir com o tema oferecendo dados que mostre o estado da arte.

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