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Em Cabo Verde, bem como genericamente em todo o mundo, a categoria “juventude” vem ganhando importância e extensão, tanto a nível demográfico, como social, económico, político e simbólico. Uma extensão no entanto marcada pela ambiguidade do seu conteúdo e dos seus limites – quem são os jovens? o que querem eles? quando termina a juventude? – refletindo ao mesmo tempo as ambiguidades das paisagens sociais contemporâneas. Assim, sigo, na minha análise, a antropóloga Deborah Durham quando esta firma que “Youth as a historically constructed social category, as a relational concept, and youth as a group of actors, form an especially sharp lens through which social forces are focused in Africa, as in much of the world” (2000:114). Particularmente em África, os jovens, seja como construtores ou destruidores sociais (De Boeck e Honwana 2005), como uma geração perdida ou uma fonte inovadora de poder político (O’Brien 1996), estão a gerar novas realidades sociais e novas perspetivas para a análise social. Marcada pela exclusão política, pela exploração, pela guerra e violência, pela falta de acesso à educação e a oportunidades de emprego, pela emigração, pela influência da globalização e pela ocidentalização da cultura local, a juventude contemporânea em África parece estar a responder a estes constrangimentos de formas diversas e inovadores, reconstruindo as dimensões simbólicas da individualidade e da agencialidade (Durham 2000) e forjando novas dimensões e usos do espaço público e da cidadania (De Boeck e Honwana 2005, Argenti 2002, Diouf 2003, Comaroff e Comaroff 2005).

São justamente estas “novas dimensões” que me proponho analisar em Cabo Verde, muito embora este país não se enquadre facilmente nos cenários mais pessimistas frequentemente veiculados sobre grande parte dos países africanos pós- coloniais, representados pela instabilidade económica, política e cultural e pela tensão entre uma tradição desvirtuada e uma modernidade mal sucedida…

O contexto nacional e transformações recentes

Cabo Verde é um Estado insular, constituído por 10 ilhas das quais nove são habitadas (Brava, Fogo, Santiago e Maio, que formam o grupo do Sotavento, e Boavista, Sal, São Nicolau, São Vicente e Santo Antão, que constituem o grupo do Barlavento) e ainda 11 ilhéus desabitados. Situa-se ao largo da costa ocidental africana, a cerca de 500Km da costa do Senegal, entre as latitudes 14o 48’N e 17 o 12’N e as longitudes 22 o 41’W e 25 o 22’W. Está englobado na região do Sahel, o que lhe confere um clima seco e ventoso que limita grandemente a produção agrícola, com exceção de algumas pequenas regiões mais húmidas (Lobban e Lopes 1995). Embora se especule sobre a presença descontinuada de populações nas ilhas, o território encontrava-se desabitado à chegada dos navegadores António da Noli e Diogo Afonso, ao serviço da coroa portuguesa, em 1455 ou 1456 (Lobban e Lopes 1995), tendo sido desde então dominado e colonizado por Portugal. Devido à fraca produtividade agrícola Cabo Verde nunca viu implementada uma economia de plantação à semelhança de outros territórios colonizados por europeus (Madeira, Brasil, Caraíbas, Reunião) (Lobban e Lopes 1995), tendo-se antes desenvolvido como entreposto comercial, principalmente nas rotas do

comércio de escravos entre África, Europa e América (Carreira 1983, Lobban 1995, Andrade 1996, Peixeira 2003).

Neste contexto implantou-se no arquipélago uma população autóctone miscigenada a partir de um contingente populacional maioritariamente de origem africana e de um contingente minoritário de origem europeia (Carreira 1983, Lobban 1995). Não obstante esta desigualdade entre contingentes populacionais, a presença europeia permaneceu dominante ao longo dos séculos, através do poder administrativo e judicial, do controle da propriedade latifundiária e de instituições como a Igreja Católica, o sistema de ensino e a própria língua portuguesa. Contudo, ao nível da vida quotidiana a população local desenvolveu, com relativo grau de autonomia, um conjunto de práticas, relações e expressões originais – onde se destaca o desenvolvimento de uma língua local crioula que permanece até hoje como principal meio de comunicação nos domínios informais (Meintel 1984, Lobban 1995)5 – que foram constituindo uma identidade coletiva específica distinta da identidade portuguesa metropolitana (Mariano 1991, Peixeira 2003).

Com efeito a presença efetiva do domínio colonial português foi sempre descontinuada, residual e marcada por um desinvestimento que, associado à escassez de recursos locais e às sucessivas secas, votou a maioria da população a uma situação de contínua precariedade económica (Meintel 1984, Lobban 1995, Lobban e Lopes 1995). Assim, a emigração tornou-se, desde o século XVII, a estratégia mais frequente para fazer face à pobreza crónica (Lobban 1995, Fernandes 2002). Numa primeira fase os movimentos migratórios foram maioritariamente empreendidos por homens e tinham como destino os Estados Unidos da América. Já no século XX, intensificaram-se e passaram a incluir também mulheres, rumo a diversos destinos na Europa, África e América do Norte e do Sul (Carreira 1977, Grassi 2007). Este processo de larga escala levou a que a mobilidade geográfica se constituísse como um mecanismo estrutural de subsistência entre a maioria da população (Carreira 1977 e 1983, Lobban 1995, Fernandes 2002, Åkesson 2004), de tal forma que na atualidade a generalidade das famílias pode contar com um ou vários dos seus membros a residir fora do arquipélago.

5 Atualmente o “cabo-verdiano” ou “crioulo cabo-verdiano” tem estatuto de língua nacional e é dotado de um alfabeto próprio (ALUPEC) mas regista uma fraca implementação formal. Sobre língua e identidade nacional ver Dias (2002), Rego (2008), Challinor (2012).

Após a independência nacional, a 5 de julho de 1975, e depois de um período sob um regime de partido único de orientação socialista até 1991, Cabo Verde tem vindo a registar progressivas melhorias em múltiplos indicadores de desenvolvimento, seja eles relativos ao crescimento económico e ao rendimento per capita, à literacia e ao acesso à educação básica e secundária pública (mais recentemente também à educação superior), à saúde pública e ao acesso a cuidados de saúde básica, ao desenvolvimento de infraestruturas de transporte e comunicação, ao desenvolvimento do setor da administração pública e ao setor empresarial e de mercado, ou ainda à criação e estabilidade de um sistema político de democracia parlamentar (desde 1991) e à organização e mobilização de diversos setores da sociedade civil6. Como consequência, em 2008 Cabo Verde foi graduado como País de Rendimento Médio pelas Nações Unidas.

Em especial desde da “abertura política” de 1991 (designação local corrente que remete para a realização das primeiras eleições multipartidárias livres), o país tem seguido uma política económica liberal alinhada com as orientações das organizações internacionais e sustentada pela ajuda destas (Lobban 1995), tendo como corolário o rápido desenvolvimento de uma economia de mercado essencialmente assente nos setores do comércio e serviços e mais recentemente no turismo internacional (Lobban 1995). Em paralelo com esta tendência os consecutivos governos desde a independência têm assumido como estratégia basilar de desenvolvimento o investimento no capital humano (Pina 2009, Campanha Global pela Educação 2012). Desde Amílcar Cabral, fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné de Cabo Verde em 1960 (cf. Cabral 1975) ao atual Governo chefiado pelo Primeiro-ministro José Maria Neves (cf. Governo de Cabo Verde 2011) a educação e a formação têm constituído eixos centrais nas opções políticas nacionais. Com efeito a partir da década de 1990 em Cabo Verde o acesso ao ensino básico tornou-se virtualmente universal (Pina 2009, Campanha Global pela Educação 2012) e o acesso ao ensino secundário, que no período colonial estava à disposição de uma minoria de famílias ligadas ao comércio ou à

6 O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento atribui, em 2012, um índice de desenvolvimento humano de 0,568 (numa escala de 0 a 1) bem acima da média da África Sub-Saharian (0,463) e colocando o país na posição 133 entre 187 países de todo o mundo (acedido em linha em http://hdrstats.undp.org/en/countries/profiles/CPV.html, a 04/06/ 20012). Para uma visão geral da evolução dos indicadores de desenvolvimento ver ainda o perfil de Cabo Verde do Bano Mundial (acedido em linha em http://devdata.worldbank.org/external/CPProfile.asp?CCODE=CPV&PTYPE=CP, a 09/11/2010) e do African Development Bank Group (acedido em linha em http://www.afdb.org/en/countries/west-africa/cape-verde/, a 09/11/2010).

administração (Afonso 2002, Anjos 2002), tem nos últimos anos crescido exponencialmente, hoje com pelo menos um liceu em cada concelho do país e com a maioria dos jovens possibilitados de o frequentar. A partir do início da década de 2000 surgiram ainda crescentes oportunidades de frequência do ensino superior em território nacional (tanto em universidades e institutos públicos como privados), que culminaram em 2006 com a criação da Universidade de Cabo Verde (universidade pública de âmbito nacional, com pólos nas duas maiores cidades do país: cidade da Praia, a capital administrativa do país, na ilha de Santiago, e na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente).

Todavia, acompanhando as transformações descritas, outras mudanças ocorreram. Desde logo ao nível demográfico o país registou um crescimento muito intenso nas últimas décadas, com uma população que cresceu de cerca de 200.000 habitantes em 1960 para 491.575 em 2010 (INE 2010). Este crescimento foi acompanhada por um expressivo peso demográfico da população jovem, sendo que atualmente 54,4% dos habitantes de Cabo Verde têm menos de 25 anos de idade e 70,4% tem menos de 35 anos (INE 2010). Paralelamente, num país com uma forte tradição rural, hoje 62% da população reside em núcleos urbanos com perto de metade da população a residir num dos dois principais centros urbanos do país: 120.000 habitantes na cidade da Praia, e 70.000 habitantes na cidade do Mindelo (INE 2010), cidade onde desenvolvi a minha pesquisa.

A nível socioeconómico, se nas últimas décadas se registou uma expressiva a redução da pobreza e uma melhoria das condições de vida da população, a contínua dependência macroeconómico externa (em particular da ajuda internacional e das remessas dos emigrantes), a par de uma reduzida produção local, têm levado, contudo, a que a maioria dos bens de consumo tenha de ser importada, aumentando assim o custo de vida face aos baixos rendimentos da maioria da população (Lobban 1995). Este fator, reforçado ainda por uma persistente taxa de desemprego – mais expressiva entre os jovens7 – tem tido como consequência um aumento das desigualdades sociais nos últimos anos (Laurent e Furtado 2008, Proença 2009, Lima 2011). Por outro lado, a frágil economia nacional é ainda incapaz de sustentar um sistema público de proteção

7 Em 2010 este afetava 25,1% na população entre 15 e 24 anos de idade e 9,5% na população nacional entre os 25 e os 44 anos de idade em meio urbano (INE 2010).

social que apoie eficazmente os grupos mais desfavorecidos da sociedade, entre os quais se encontram os jovens.

Por fim, se a emigração tem sido desde há muito em Cabo Verde um dos principais mecanismos de “fazer a vida” (Åkesson 2004) face à fragilidade socioeconómica, também aqui se verificaram mudanças recentes, uma vez que os países europeus e norte-americanos, principais destinos da emigração cabo-verdiana, têm vindo a endurecer as suas políticas imigratórias através da complexificação dos procedimentos de obtenção de vistos e do recrudescimento da vigilância e policiamento das suas fronteiras. Como consequência, atualmente tem-se registado em Cabo Verde, tal como em muitos outros locais do mundo, uma profunda restrição de uma das estratégias mais importantes de subsistência e de mobilidade social: a mobilidade internacional (Carling 2002, Åkesson 2008).

O lugar paradoxal da juventude

No contexto das rápidas mudanças ocorridas em Cabo Verde em particular após a independência, os jovens foram conquistando um lugar de destaque na sociedade cabo-verdiana; porém este lugar pode caracterizar-se como paradoxal. É inegável que aumentaram as oportunidades de realização dos jovens nos domínios da educação formal, das comunicações, do consumo e do lazer. Contudo, face à sua crescente pressão demográfica, a fragilidade dos sistemas económico e de proteção social do país, aliados às crescentes dificuldades para emigrar, tornam efetivamente difícil responder às crescentes aspirações de grande parte da juventude nacional, nomeadamente de obtenção de um emprego estável, de uma habitação própria, de padrões de consumo mais elevados e de estabelecimento de núcleos familiares autónomos, consequentemente gerando entre os jovens sentimentos de frustração e de incerteza face ao futuro.

É justamente no seio desta contradição entre aspirações e frustrações, ambas crescentes, que situo a minha pesquisa. À semelhança de múltiplas pesquisas realizadas sobre a juventude noutros contextos africanos pós-coloniais (ver capítulo 3), procurei compreender como esta contradição tem levado os jovens, como grupo – a juventude – a adquirir, também em Cabo Verde, um novo protagonismo político, cultural e simbólico no espaço público nacional e, em particular, no espaço público urbano.

Os olhares dos adultos

Instalando-me na segunda maior cidade de Cabo Verde e procurando estar atento aos contextos e às práticas juvenis, pude verificar uma forte presença pública dos jovens e o impacto significativo que a categoria de juventude tem nas representações e nas práticas sociais em diversos domínios da vida pública. Seja pela pressão que exercem no sistema educativo e no mercado de trabalho, ambos aparentemente sobrelotados, seja pela elevada frequência e visibilidade das suas práticas coletivas, formais ou informais, de cariz expressivo, desportivo ou comunitário, seja devido à assumpção de novas opções estéticas e de consumo que contrastam com padrões tradicionais e conservadores, seja ainda pelo incremento da violência e da criminalidade praticadas por jovens numa sociedade tradicionalmente não violenta, ou simplesmente pela sua ostensiva e ociosa presença nas ruas e praças das cidades (Martins 2009), tornou-se notório para mim que os jovens assumiam um peso expressivo na vida pública cabo- verdiana.

Na primeira fase da minha pesquisa (em abril e maio de 2008), ao mesmo tempo que procurava conhecer alguns jovens e integrar-me em grupos e atividades juvenis, interessei-me também em aprofundar os discursos sobre a juventude a que ia tendo acesso em conversas informais, e que surgiam com frequência em notícias de jornal, na rádio ou na televisão ou em blogs na internet. Para tal procurei identificar e entrevistar um conjunto de pessoas que, na cidade, desenvolvessem trabalho ou iniciativas com jovens, ou que deles me pudessem dar uma perspetiva geral. Neste grupo incluí assim professores do ensino secundário e superior, psicólogos escolares ou de serviços de apoio à juventude, profissionais de saúde, líderes de instituições e organizações juvenis ou de serviço à juventude, e ainda jornalistas locais (num total de 13 entrevistas). Estava consciente de um potencial efeito de “classe” no discurso destes entrevistados, previsível aliás pelo facto de quase todos eles terem profissões de relevo e influência a nível local (e nacional) e terem, inclusivamente, frequentado o ensino superior fora do país. Era, no entanto, justamente o olhar destes adultos que eu buscava, nomeadamente aqueles que, como “mediadores culturais” (cf. Anjos 2002) entre os quotidiano dos jovens e as instituições que os regulam, estariam em condições de produzir (mais ou

menos conscientemente) um discurso “dominante” sobre a juventude, contribuindo assim determinantemente para a “produção” local da própria categoria.

Junto destes entrevistados interessei-me assim em compreender não apenas as suas representações sobre a juventude cabo-verdiana atual (características, limites, desafios), mas também em situar os seus discursos num contínuo temporal apelando ao confronto com os seus próprios períodos de juventude e solicitando interpretações sobre as transformações ocorridas entre esses períodos e o presente. Finalmente, pedi ainda a cada um dos meus entrevistados para partilhar comigo aquilo que pensava ser importante pesquisar sobre a juventude cabo-verdiana atual, que perguntas quereria ver respondidas sobre os jovens, na expectativa de que essas perguntas fossem reveladoras do imaginário social que subjazia à própria categoria de juventude na contemporaneidade (ver guião da entrevista no Anexo A).

Estas entrevistas revelaram desde logo imagens e discursos contraditórios sobre os jovens, oscilando entre a esperança no futuro e a crise do presente, entre medos e projetos de natureza social, articulando referências e dimensões locais, nacionais e globais. M. R., uma professora do ensino secundário e superior que não me revelou a sua idade mas que contava já com uma vasta carreira como docente e dirigente em diversas instituições educativas do país traçou-me desde logo um quadro assaz negativo sobre a juventude atual:

“A nossa juventude tem muito chamariz, tem muita informação, está a funcionar como uma esponja que absorve e não está com capacidade de rejeitar. Isso é mau e por isso é que temos uma juventude com desvios comportamentais. [Mas pode-se generalizar?] Pode-se. Pode-se generalizar a toda a juventude porque, quando começou a doença a minar a juventude dizia-se que é da periferia e ligava-se isso à falta de poder económico, mas hoje não é só da periferia, está generalizada; é uma doença que temos de debelar rapidamente para não se tornar endémica, se não é epidemia e vai dar tudo. Porque a nossa juventude está nesse limiar, é uma esponja que está a absorver tudo. Vai para a escola mas pode sair, ir passear, cometer as maiores barbaridades; chega em casa não é induzido a estudar porque no seu quarto tem tudo o que o convida a divertir-se, a distrair- se dos estudos; sai e não tem horário para chegar; veste-se como quer e não como manda cada lugar, nem o vestir se ensina; então não sabe se vestir, não sabe se comportar, porque é livre para o que quer. A nossa juventude continua confundindo a liberdade com a libertinagem, mas isso é uma velha história, da revolução; como dizia um colega ‘desde que dissemos aos nossos meninos que são flores da revolução, nós estragamos tudo’,

porque tomaram isso à letra e têm de revolucionar tudo, e para eles isso é tirar tudo o que há de bom, de positivo para só fazer aquilo que eles acham que devem fazer e não o que a sociedade exige deles”. (Entrevista a M. R., 25 de Abril de 2008)

Excesso de liberdade, ausência de regras, desobediência, desrespeito, eram categorizações que escutava frequentemente quando perguntava sobre os jovens em Cabo Verde, muitas vezes associadas também às ideias de desmotivação, de falta de objetivos e de facilitismo. Isso mesmo me disse F. S., jornalista de rádio com 19 anos de idade à data da independência do país e que desde então sempre tinha estado envolvido em iniciativas artísticas e de promoção cultural:

“Neste momento Cabo Verde mudou muito nesses 30 anos, há muita facilidade; (…) eu fico com a sensação que os jovens de agora, pelas facilidades que têm, muitas vezes não dão o devido valor, digamos assim, às coisas. Nota-se em certa medida valores que se perdem. (…) Portanto o jovem de hoje, enfim, tem esse papel de estudar mas ao mesmo tempo vai estudando mas não há um desfio, não se sente engajado de facto nalguma coisa e enfim, ouve música, estuda um bocadinho, mas quer é sair, é beber, é fumar, é descobrir drogas e… em certa medida é um bocado a tendência da nossa juventude neste momento. Procura… o que costumo dizer não fazer nada, não ter um objetivo preciso e pelo qual se luta e se faz tudo e se sacrifica e se… portanto, não adotou nenhum objetivo por vontade própria”. (Entrevista a F. S., 15 de abril de 2008)

Ressaltava nos discursos deste e de outros entrevistados a atribuição de atitudes conformistas e hedonistas aos jovens. No mesmo sentido M. F., o coordenador do Centro da Juventude local, na dependência da Secretaria de Estado da Juventude, de 40 anos de idade, identificava nos jovens uma postura de “descontra”, “à espera que as coisas caiam do céu”, e F. um padre de 60 anos de idade, um dos fundadores da comunidade franciscana de São Vicente em 1979 e a viver na ilha desde então, também diretor de uma rádio e de um jornal de âmbito nacional, defendia que os jovens atuais demonstram “uma certa aversão por normas e um culto da individualidade e da independência” (Entrevista a F., 16 de abril de 2008).

Este quadro juvenil de aparente desvinculação social e de individualismo excessivo foi-me frequentemente ilustrado com exemplos concretos de traços sentidos como provocadores e inquietantes, todo um conjunto de “desvios comportamentais” (M. R.) desafiadores da moralidade “adulta”. Em muitos dos testemunhos que recolhi o maior destaque foi dado a uma sexualidade juvenil “fortuita” (E., médica num centro de saúde reprodutiva, entrevistada a 24 de abril de 2008) e “precoce”, à “exuberância

corporal [feminina] como forma de aquisição de bens, de um estilo de vida para o qual não têm possibilidades” (H. L., psicóloga clínica e professora no ensino superior, entrevistada a 23 de abril de 2008) e à ausência de relações conjugais monogâmicas e duradouras, ou, como referiu F., à “falta de perspetivas de (…) constituição de uma família normal”. Mas foram também realçados com frequência outros traços assumidos como preocupantes, tais como a excessiva festividade ou “paródia” (F. S.) a que se dedicariam os jovens, assim como o consumo de álcool, de tabaco e de drogas ilegais, vistos como exagerados, ou ainda a violência exercida pelos jovens, qualificada como delinquência juvenil ou vandalismo. Ao caracterizar a juventude atual L. L., um artista plástico e cineasta local, também diretor de uma escola superior de artes na cidade e dirigente de uma organização não governamental de desenvolvimento local, mostrou-

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