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4 ADOLESCÊNCIA OU JUVENTUDES?

4.2 Juventudes no contexto da violência

Configura-se necessário perceber, entretanto, que a realidade social não se caracteriza como um arcabouço de dados objetivos, ou ações isoladas que podem ser julgadas como boas ou más. Os valores com os quais classificamos os acontecimentos e indivíduos são construídos socialmente em um processo dialético e dinâmico que envolve o contexto social, político e econômico, a cultura e a forma de comunicação entre os integrantes da sociedade (NJAINE, MINAYO, 2002).

Deleuze e Guattari (1992) defendem a importância da quebra de paradigmas quando relatam:

O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão (p.262).

Logo, associar a imagem de jovens ociosos, órfãos ou desamparados que perambulavam pelas ruas em busca de sobrevivência à imagem instantânea de delinquentes, configura-se uma generalização um tanto perversa e desumana. Torna-se imperioso problematizar conceitos previamente estabelecidos, percebendo as nuances que perpassam a construção de tais paradigmas, para possibilitar análise mais crítica e criteriosa. Com efeito, para compreender a gênese da “delinquência” juvenil na contemporaneidade se faz necessário desabsolutizar paradigmas naturalmente difundidos e paulatinamente incorporados pelos indivíduos no convívio social, revendo conceitos mediante reflexão sistemática.

Nietsche, em seu livro intitulado “A genealogia da moral”, partilha a premissa filosófica de que os conceitos de bom e ruim surgiram relacionados às classes sociais, onde bom representava tudo que vinha da nobreza e ruim o que provinha dos plebeus, servos e trabalhadores. Portanto, não se pode esquivar de “percorrer a imensa, longínqua recôndita região da moral – da moral que realmente houve, que realmente se viveu – com novas perguntas, com novos olhos... ” (2009, p.12).

Através do convívio social, os pequeninos vão gradativamente adentrando o mundo adulto, percebendo o papel que os indivíduos desempenham e compreendendo como se dá as relações com seus pares. A família, a escola, a rede social, a mídia, dentre outros aspectos constituintes da vida em sociedade, em que o indivíduo está inserido na contemporaneidade,

vão influenciando comportamentos, direcionando ações e concepções. O contexto sócio- cultural interfere diretamente na internalização de regras de conduta social, bem como de preconceitos ideologicamente repassados consciente ou inconscientemente.

Schoemaker (1996) estabeleceu três níveis de contextualização visando facilitar a compreensão acerca da temática: 1- estrutural, referente às condições sociais; 2- sócio- psicológico, que diz respeito ao controle social da família, escola e rede social; 3-individual, envolvendo aspectos psicológicos e biológicos.

No âmbito da contextualização estrutural, configura-se importante relatar que a desigualdade econômica e social brasileira prejudica o salutar desenvolvimento de muitos jovens, que vivem em situações precárias e subumanas de moradia, alimentação, lazer, saúde, dentre outros, e ainda são vítimas de estigmas e preconceitos, que os colocam à margem da sociedade e distante do acesso aos bens de consumo e serviço mínimos para obtenção de qualidade de vida e dignidade social para lutar por um futuro promissor (ASSIS, CONSTANTINO, 2005). Somando-se a essa situação desfavorável, os jovens ainda convivem com uma relação familiar fragilizada, imbuída de violência desde pequeninos.

Morais (1981, p.16), analisando a questão da violência urbana, comenta que “os espaços da cidade estão tomados por uma noção comercial da vida”, pois são fabricadas necessidades febris de consumo de objetos, excitando a ambição e gerando frustração. Nessa lógica, a maioria, que não consegue todos os bens desejados, reage basicamente tomando duas posições: assumir suas impossibilidades ou transformar as fragilidades que suas frustrações impõem em um potencial de agressividade.

Na atual sociedade, marcada pela desigualdade social e segregação econômica, observa-se que a infração entre os jovens da classe média e alta não chegam constantemente à mídia, porque as famílias cuidam de evitar a propagação da informação e o ingresso em instituições de custódia, custeando prejuízos e advogado (SPAGNOL, 2005). Não obstante, são justamente os jovens de classe econômica baixa que enchem as instituições socioeducativas para cumprimento de medidas de privação de liberdade.

Diante dessa situação, surgem embates ideológicos divergentes quanto às ações a serem desenvolvidas para minimizar a infração juvenil. Uns defendem que se deve efetivar o recrudescimento dos instrumentos legais, implantando mais severidade na aplicação das penas e, inclusive, diminuição da idade penal e até pena de morte; outros postulam que o Estatuto da

Criança e do Adolescente seja aplicado com mais responsabilidade e seriedade por parte do Estado, pois se discute a omissão do poder público na efetivação dos direitos constitucionais e no desenvolvimento de uma política pública eficiente, voltada para prevenção do ato infracional e para ressocializar o infrator, gerando condições de mudança de atitude e de melhoria no bem estar social.

Vale salientar que quanto mais frágil e impotente o ser humano, maior será a brutalidade deflagrada (MORAIS, 1981), porque acuado pelo sistema imposto, os atos de violência se apresentam como alternativa para luta na busca de sobrevivência e liberdade. Com isso, a brutalidade foi se tornando a violência praticada pelos pobres, fracos e oprimidos, enquanto a violência dos poderosos é discreta, refinada e fria, mas tão ou mais danosa que a primeira.

Longe de conceber o jovem de baixo poder aquisitivo como coitado ou vítima do sistema, o que se objetiva com o exposto não é defender ou justificar condutas indesejadas socialmente, mas enfatizar que a severa segregação econômica, associada à cultura mercantilista do consumo desenfreado, deve ser considerada no estudo acerca dos fatores que predispõem à infração juvenil, pois o nível estrutural relaciona-se as condições sociais.

Em relação ao nível sócio-psicológico, o papel que a família desempenha no controle social é de fundamental importância, pois é justamente no seio familiar que a criança vai assimilando os primeiros conhecimentos, conceitos e comportamentos que paulatinamente vão sendo problematizados e incorporados na juventude. A família, tenha ela uma organização tradicional ou padrões completamente diferentes desta, torna-se a primeira referência de conduta comportamental. Contudo, a influencia que os responsáveis familiar (preceptores ou não) mantêm na vida juvenil deve ser levada em consideração.

É mister perceber que as relações sociais que começam na família (considera-se família, nesse caso, aqueles que cercam a criança dos cuidados necessários à vida), vão sendo ampliadas, e a teia de relacionamento que se constrói, intitulada “rede social”, também exerce influencia na assimilação de regras sociais e condutas comportamentais, principalmente na juventude, período em que a autoimagem, a construção da identidade com seus pares e a necessidade de aceitação conduzem aos comportamentos sociais específicos.

No que diz respeito ao contexto educacional, importa perceber que está intimamente relacionado à situação política e econômica do país, pois é justamente a sociedade quem

define as leis, bem como a finalidade da educação formal e suas diretrizes, norteando a prática pedagógica e educativa dos profissionais que trabalham com as crianças e jovens autores ou não de atos infracionais, influenciando comportamentos, objetivos e atitudes. Mas cabe mencionar que essa sociedade, a qual se faz referência, nem sempre representa a maioria da população, e várias decisões restringem-se ao âmbito dos interesses de poder que detêm não apenas o controle financeiro e político, mas também impõem os seus valores.

Posteriormente, será discutido, com maior profundidade, sob a ótica de Foucault, a maneira como as instituições colaboram para domesticar corpos, comportamentos e mentes. Todavia, para compreender as lacunas existentes acerca da “ressocialização” do jovem em conflito com a lei, faz-se necessário compreender a organização social, bem como analisar embates ideológicos para além do reducionismo do discurso corriqueiramente difundido pela mídia e, por vezes, apoiado na ideologia dominante.

No tocante ao nível Individual, levam-se em consideração as características biológicas, que podem ser fruto de herança genética, bem como as psicológicas, que dizem respeito à maneira como o indivíduo internalizou suas experiências ao longo da vida. Experiências que são multifacetadas e distintas, porque cada situação vivenciada é singular e repleta de significados ocultos que ganham representatividade de acordo com a história de vida individual, com suas peculiaridades.

Nesse sentido, levando em consideração os níveis estruturais propostos por Schoemaker, não se pode generalizar a fase juvenil julgando-a como mera passagem natural da infância à vida adulta, ou dimensioná-la com características fixas, dados objetivos e estáticos. São inúmeros os fatores que interferem na definição de juventude.

Teoricamente, o conceito de juventude vinha sendo propagado como sinônimo de adolescência numa categoria universal, de maneira parcial e excludente, buscando caracterizar os jovens pela linguagem, espírito aventureiro, rebeldia, agitação, dentre outros. Como se a juventude apresentasse um padrão passível de identificação generalizada, com faixa etária bem delineada e aspectos biológicos e comportamentais semelhantes. E em outros casos, quando não era assim tratado, o construto juventude era analisado a partir de problemas particulares referentes à classe social, gênero, etnia, etc. (BORELLI, 2008).

No fim do século XX e primeira década do século XXI, questionava-se a universalização do conceito de juventude, e os pesquisadores começaram a investigar

problemáticas restringindo segmentos específicos, para que, a partir desses, fosse possível construir abordagens teóricas capazes de responder esse ou aquele grupo em particular (BORELLI, 2008): os pichadores, os grafiteiros, os bad boys, os mauricinhos, os hippies, dentre outros.

Apesar de não haver consenso, existe razoável concordância dos pesquisadores da contemporaneidade em conceber na conceitualização de juventude aspectos bastante heterogêneos, que levam em consideração fatores: biológicos, psicológicos, condições de vida, escolarização, estrutura familiar, renda, gênero, etnia, religião, influência midiática, espaço geográfico, acesso aos bens de consumo, e tantos outros que interfiram na maneira como o indivíduo internaliza conhecimentos, crenças e valores morais.

Para contemplar tantas nuances, começou-se a substituir a palavra juventude por palavra juventudes (no plural), visando justamente ressaltar a diversidade, contemplar as particularidades e evitar generalizações indevidas, sem perder de vista o homem enquanto ser universal. Segundo Rocha e Silva (2008, p. 126),

Os jovens constituem uma parte essencial dessa cultura fragmentada, parcelada, mas também múltipla e plurivocalizada. Sua participação se define pelo consumo simbólico como fabricação de sentidos atravessados por fluxos vinculados à economia, à política e ao imaginário. Isso cria também novas sensibilidades plurais e nomadismos que refletem as determinações da vida urbana e os arcaísmos do anthropos, do homem universal cuja linguagem é audiovisual, formando jovens ambivalentes e

complexos. Ao invés de universos juvenis há “pluriversos” (CANEVACCI,

2005, p.19).

Desse modo, em nenhum momento da história se deu tanta importância para o debate acerca das juventudes, e, nessa análise, existe razoável consenso no tocante ao respeito à diversidade, sem perder a visão universal. O foco consiste em estudar e entender esse segmento universal imerso em um mundo globalizado e repleto de desigualdades, com características distintas, e até divergentes se comparadas entre grupos de regiões, culturas, classes sociais e períodos históricos diferentes.

Os estudos sobre a juventude demonstram insegurança conceitual, pois cada autor a define a seu modo, diversificando a interpretação do construto e consequentemente pluralizando o conceito, o que evidencia quão complexa e fluida é a experiência juvenil, bem como o quanto é mutável sua interpretação no decorrer dos anos. Segundo Diógenes:

O movimento é a sua marca e a inovação o seu signo. Com a expansão do industrialismo, em que o consumismo e a cultura de massa tornam-se a tônica da nova era, a juventude se expressa como agente catalisador e propagador de um estilo moderno e cosmopolita. Nesse sentido, a juventude é recortada por referentes simbólicos condensadores de uma marca estilizada

do “ser moderno”. Talvez seja por tais características que se tornam sempre

tão complexas as tentativas de conceituação do termo juventude (DIÓGENES, 2008, P.94).

O imaginário sobre a juventude no Brasil foi visivelmente sofrendo transições. Até o século XVIII, a juventude não era percebida enquanto categoria, misturando-se naturalmente aos adultos. No século XIX, com o processo de industrialização e urbanização, era concebida como eminente problema social, por conta da ociosidade ocasionada pela falta de escolarização universalizada e postos de trabalho. Em meados do século XX, por volta das décadas de 1950 a 1970, com a explosão econômica pós-guerra, ao jovem era atribuída a esperança de renovação e transformação social através do seu caráter rebelde e contestador. De 1970 a 1980, as esperanças de grandes transformações sociais não se concretizam e, entre os jovens, parecia reinar o caráter apático, caracterizando-os de juventude alienada. No fim do século XIX, nas décadas de 1980 e 1990, os jovens são vistos como organizadores de movimentos culturais que valorizam o consumo de produtos industrializados, através da música, com seus ritmos, e da dança, como forma de lazer e expressão, clamando pelo direito à diferença e adentrando na cultura de massa. E finalmente, pós anos 90, os jovens configuram-se foco do consumo globalizado, expressando “caricaturas de seus apelos simbólicos”, difundindo “estilos” visuais e comportamentais, propagando a dimensão da individualidade formando grupos (turmas), impactando e gerando contrastes, definindo identidades específicas e, ao mesmo tempo, buscando chamar atenção, marcando presença no cenário social (DIÓGENES, 2008).

Optou-se, pois, por trabalhar com a ideia de “juventudes” por considerá-la mais adequada aos objetivos dessa discussão, na medida em que se refere ao modo como uma sociedade constitui e atribui significado a esse período dinâmico e imensurável da vida, “no contexto de uma dimensão histórico-geracional, mas também à sua situação, ou seja, o modo como tal condição é vivida a partir dos diversos recortes referidos às diferenças sociais – classe, gênero, etnia etc”. Leva-se em consideração “tanto a dimensão simbólica quanto os aspectos fáticos, materiais, históricos e políticos, nos quais a produção social da juventude se desenvolve” (DAYREL, 2007).

A maior unanimidade averiguada após estudo acerca da juventude pós-moderna foi observada no tocante a necessidade do jovem de buscar identificação e aceitação entre seus pares. Assim, mesmo inseridos no contexto da cultura de consumo de massa, ressignificam objetos, acessórios, vestimentas, ritmos musicais e atividades de lazer na formação de subgrupos menores com características peculiares em relação ao padrão visual de apresentação, gesticulação, ações e até no linguajar utilizado para comunicação interna. O jovem em conflito com a lei não está aquém das transições sociais e, assim como os demais, são influenciados e influenciam condutas, atitudes e valores que compõem a dinâmica social.

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