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O mito de Perséfone (ou Koré) é relativamente conhecido entre os mitos gregos e, como veremos, trata-se de um mito iniciático, pois a descida de Koré representa um rito de ingresso à vida adulta. Tal mito foi muito significativo para DFS, tanto como poeta, quanto como mulher. Sabe-se que a Grécia antiga e sua mitologia têm especial importância na obra da poeta paulista, conforme declarações da mesma, o corpus deste trabalho é um exemplo dessa relação, pois restringe-se aos vários poemas da autora, que têm como tema a mitologia grega e seus personagens. Embora a poeta dê grande importância à cultura e aos mitos gregos como um todo, não há como negar sua preferência e atração pelo mito de Perséfone. Ele é muito recorrente dentro de sua obra e na maioria dos seus livros, seja de forma latente ou patente, seja através de Koré ou Perséfone, seja intitulado com o nome da personagem ou não, o mito da jovem ingênua que é raptada pelo deus do mundo subterrâneo e se torna rainha de tal lugar aparece.

Hídrias traz cinco poemas que resgatam o mito de Perséfone, são eles: “Kóre (I)” – já publicado anteriormente em Uma via de ver as coisas (1973) e Poemas da estrangeira (1995) – “Kóre (II)” e “Hades”, também publicados em Poemas da estrangeira, além de

“Perséfone”, inédito, e “Hécate”, também inédito. Andanças (1979) traz também entre suas poesias uma com o título de “Koré” e Poemas da estrangeira retoma o mito nos textos líricos acima citados e ainda no intitulado “Mãe e filha”. Mesmo em poemas nos quais a temática não centraliza-se no mito de Perséfone, a presença da personagem Koré faz-se presente, como acontece em “Canto IV” e em “O mergulhador (II), o primeiro de Retratos da origem (1988) e o segundo de Talhamar (1982). Em “Grécia” de Poemas em fuga (1997), Koré é a personagem principal de parte do poema e nas Cartografias do imaginário (2003) o mito aparece de forma clara em “São flores” e de maneira latente e subliminar em “Dá-me de beber”. Dentro da vasta obra da autora será possível encontrar ainda várias outras referências a Koré, Perséfone, Hades ou outros personagens do mito em questão, os citados acima o foram apenas para demonstrar a recorrência do mito nos escritos de DFS.

Em entrevista dada à Revista Cult, em maio de 1999, a autora afirma ter sido a Koré de seu próprio pai. Em suas palavras:

Todos nós, poetas, temos nossos mitologemas. Um de meus mitologemas é a relação de Koré com Hades, nas bodas com o deus sombrio. Para traduzir em termos biográficos, meu Hades foi meu pai. Um dos primeiros poemas que escrevi começa com um verso que diz: „Nunca vi teu rosto‟. O poema prossegue e de uma maneira não-linear trata o rapto de Perséfone. O fato de não ter conhecido meu pai despertou em mim uma paixão pelo desconhecido, pelo mundo das sombras, pelo sonho. (SILVA, 1999)

O mundo citado pela autora tem todas as características do mundo da poesia, um mundo onde o mágico e o onírico, o desconhecido e o misterioso, o sagrado e o inefável têm muito mais valor que o claro, o racional e o material. É o mundo no qual o regime noturno místico do imaginário se encaixa perfeitamente: “A poesia, para penetrar na alma do mundo, dobra-se, duplica-se, encadeia-se, como no regime noturno místico, pelos caminhos da similitude e da analogia.” (TURCHI, 2003, p. 59). Em seu livro intitulado Mulheres que

correm com os lobos (1994), a psicanalista jungiana Clarissa Pinkola Estés analisa vários mitos e lendas populares ao redor do mundo para, através deles, identificar o arquétipo da mulher selvagem, ou a essência da alma feminina especificamente. Em uma dessas análises, falando sobre um conto chamado “A donzela sem mãos”, que em muitos aspectos se identifica com o mito de Perséfone, Estés fala sobre o mundo subterrâneo:

O lugar onde o conhecimento se realiza e onde as qualidades da têmpera e da resistência são adquiridas é la selva subterrânea, o mundo oculto do conhecimento feminino. É um mundo selvagem que fica subjacente ao nosso. Enquanto estamos lá, ficamos impregnadas do conhecimento e da linguagem instintivos. A partir desse ponto privilegiado, compreendemos o que não conseguimos compreender com tanta facilidade a partir da perspectiva do mundo objetivo. (ESTÉS, 1994, p. 480)

O mundo subterrâneo é o lugar do amadurecimento e do fortalecimento interior, todos devem passar por ele e a descida de Koré a tal lugar representa esse momento da vida dos homens como um todo e das mulheres em especial. Na existência de DFS, a descida ao mundo inferior significava, indubitavelmente, uma descida a seu próprio interior, ao mundo onírico onde nasciam seus poemas e toda a genialidade de sua poesia.

Enquanto era Koré, bela e ingênua donzela que vivia tranquilamente na terra, colhia flores e se sentia feliz, a personagem escolhida por DFS para ser seu mitologema representa a vida humana em sua racionalidade e claridade. Não há preocupações com o que possa estar oculto ou envolto em mistérios, a própria ingenuidade de Koré atesta isso, pois sua ignorância em relação à existência de um mundo que não o seu, demonstra que nela não existe desejo algum pelo novo ou diferente, ela se sente feliz em sua vida pacata e vazia de consciência sobre si mesma, sobre seus desejos e forças e também sobre tudo aquilo que pode haver além dessa existência acomodada. Mas, “nenhum ente senciente neste mundo tem permissão de permanecer inocente para sempre.” (ESTÉS, 1994, p. 488), e é por isso que a jovem deusa é levada por Hades ao local de sua morada, onde ela passará de menina à mulher.

Várias versões do mito atestam que Koré colhia narcisos quando Hades aparece, a flor na qual havia se tornado o jovem com mesmo nome quando sucumbiu de amores por si mesmo ao ver seu reflexo nas águas límpidas de certa fonte. O nome de Narciso está ligado a torpor, letargia (daí o nome narcóticos, em português) e Koré devia estar entorpecida pelo perfume das flores, tendo sido, por isso, levada com tanta facilidade por Hades. No livro intitulado A sabedoria dos antigos (2002), publicado pela primeira vez em 1609, Francis Bacon analisa os mais variados mitos greco-romanos e expõe o que julga ser o significado prático oculto presente em cada um deles. Quanto ao mito em questão, diz o filósofo e estadista inglês:

Também se acrescenta com finura à fábula que Prosérpina se viu arrebatada quando colhia narcisos nos prados – pois Narciso toma seu nome do torpor e do estupor, e apenas quando o espírito começa a embotar-se (isto é, a ficar entorpecido) está preparado para o rapto da matéria terrestre. (BACON, 2002, p. 93)

No momento em que a menina é raptada por Hades acontece a ruptura, ruptura que pode ser comparada àquela que a própria morte representa. Morre a menina Koré, nasce a mulher Perséfone. Ela agora, assim como a DFS mulher, é despertada a um interesse pelo desconhecido, pelo oculto, pelo sombrio, um interesse por esse Hades que a raptou e ela nem sabia que existia, mas que causa nela, ao mesmo tempo, espanto e medo, como também atração e desejo. A ruptura no mito pode ser ainda interpretada como aquele rito de passagem atravessado por todos os seres humanos, o momento em que se deixa de ser criança para

adentrar na vida adulta, como quando a menina não sente-se mais menina e descobre-se mulher. É o rito necessário para que a conscientização a respeito da vida como um todo aconteça, “a iniciação que nos leva a esse tipo de conhecimento é aquela que nenhuma de nós deseja, muito embora ela seja a que todas nós, mais cedo ou mais tarde, chegamos a receber.” (ESTÉS, 1994, p. 488).