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A morte como rito é outro arquétipo comum dentro das sociedades espalhadas pelo mundo e sobre o qual fala Eliade em seu livro Mito e realidade (1972). Segundo o autor, em grande parte das sociedades que estudou, é comum que se pregue a importância da morte do que é antigo para que nasça o novo, são os ritos de renovação universal, como o ano novo e a iniciação de meninos à vida adulta, por exemplo. Para que o novo ano chegue, o velho tem que morrer, para que o espírito de homem passe a habitar o menino, este tem que deixar de existir, e assim por diante. Para todas essas situações existem importantes e sagrados ritos que se repetem de tempos em tempos. O rito do qual falamos se completa no mito em questão quando Koré, já no mundo subterrâneo, mas ainda Koré, é convencida por seu raptor a provar um grão de romã – “apenas um grão de romã” – diz ele, e a bela jovem deixa-se levar pelas palavras de sedução de Hades, come a semente e nesse momento a ruptura se completa. Koré não mais existe, a menina doce e ingênua dá lugar a Perséfone: mulher, madura, sedutora, desejosa pelo desconhecido, rainha do mundo subterrâneo, esposa orgulhosa de Hades. Como disse Junito Brandão: “Perséfone é o grão que morre, para renascer mais jovem, forte e belo e, por isso mesmo, ela é Core, a Jovem.” (BRANDÃO, 1991, p. 304).

O grão (ou grãos) de romã ingerido por Perséfone, enquanto ainda era Koré, induzida por Hades no mundo subterrâneo, tem um importante simbolismo, que deve ser explicado para um melhor entendimento do mito. Tanto a romã quanto os frutos com muitas sementes, como a laranja ou a abóbora, são símbolos de fertilidade e fecundidade (o que liga o fruto à Deméter, mãe de Perséfone e deusa da fecundidade), a romã em especial, além desse, carrega o simbolismo do desejo e da sedução, segundo Junito Brandão, “na Grécia, a romã era um atributo da deusa Hera e de Afrodite (...). Na Ásia, a imagem de uma semente aberta de romã expressa o desejo, quando não a própria vulva.” (BRANDÃO, 1991, p. 304). A semente da romã pode ainda trazer consigo o simbolismo próprio da semente, isto é, ela morre na terra, enterrada como semente, para depois renascer como planta, árvore, fruto, assim como aconteceu com Koré: “As mulheres que se alimentam do fruto, da água e da semente do

trabalho nas florestas do outro mundo também crescem psicologicamente na mesma proporção. Suas psiques engravidam e permanecem num estado de amadurecimento constante.” (ESTÉS, 1994, p. 512). Algumas interpretações do mito sugerem que Perséfone deixou-se seduzir pelo fruto e por isso recebeu o castigo de passar a viver no abismo. Embora sua mãe tenha advogado em seu favor, a filha de Deméter não recebeu total absolvição e foi condenada a passar parte do ano no mundo subterrâneo.

Apesar de ser muitas vezes entendida como total condenação e algo completamente negativo, a morte, no caso do mito de Perséfone, pode ser vista sob outro aspecto que não este de reprovação e paga pelo erro, mas como algo que trouxe à deusa a oportunidade de amadurecer e se auto conhecer. A morte neste sentido não é sinônimo de algo contra o qual deve-se lutar, mas é aceita com serenidade e paz, como acontece no regime noturno místico do imaginário que, “ao permitir a eufemização da própria morte, abre ao imaginário e às condutas que ele motiva uma via completamente diferente.” (DURAND, 2002, p. 194). No regime noturno místico a morte e o tempo não são inimigos que precisam ser vencidos, ao contrário, ela está ligada ao conceito de harmonização e repouso. No mito estudado, a ida forçada da deusa ao mundo subterrâneo pode ser compreendida como descida ao inconsciente, descida esta que resultará em grandes e importantes descobertas sobre si mesma. Analisando o mito de Perséfone no livro intitulado As deusas e a mulher – nova psicologia das mulheres (1990), a psiquiatra e psicanalista americana Jean Shinoda Bolen diz o seguinte:

Simbolicamente, o mundo subterrâneo pode representar camadas mais profundas da psique, um lugar onde as memórias e sentimentos foram „enterrados‟ (o inconsciente pessoal) e onde as imagens, padrões, instintos e sentimentos, que são arquetípicos e compartilhados pela humanidade, são encontrados (o inconsciente coletivo). (BOLEN, 1990, p. 282)

Na intimidade sombria de seu mundo interior e subterrâneo, o ser humano é capaz de descobrir-se e revelar-se a si mesmo, ainda que para isso precise ser forçado por um ente externo (Hades) e tenha a sensação de estar sendo levado em direção a seu verdadeiro fim.

O mito de Perséfone e sua forte ligação com a morte está intimamente vinculado aos Mistérios de Elêusis, pois, antes do advento do cristianismo, esta era a religião central do povo grego; Perséfone e Deméter, sua mãe, eram as deusas adoradas por tal religião. A mitologia explica o surgimento desses Mistérios e o motivo pelo qual seus seguidores escolheram tais personagens como objeto de adoração. Diz Junito Brandão (1991) que Deméter, ao descer a terra à procura de Koré – após ter ouvido seu grito de pavor por ocasião do rapto – dirigiu-se a certo local chamado Elêusis. Ali, como forasteira e escondendo sua identidade de deusa, foi convidada para cuidar do filho recém-nascido da rainha Metanira,

Demofonte, e aceitou a incumbência. O plano de Deméter era fazer de Demofonte um ser imortal e eternamente jovem e para isso alimentava-o com ambrosia ao invés de leite e durante a noite escondia-o entre o fogo, como se fosse um tição entre as chamas. Certa noite, Metanira descobriu o menino na fogueira e, desesperada, começou a gritar de medo por seu filho. Deméter reagiu com fúria, censurando na mulher todos os humanos, a quem considerava ignorantes e insensatos, revelou sua verdadeira identidade e também o plano – agora frustrado – de fazer de Demofonte um deus. Após esses acontecimentos, a deusa da agricultura ordenou aos moradores de Elêusis que lhe erguessem um templo, onde se recolheu até saber da ordem dada por Zeus para que Perséfone retornasse ao seu convívio, mesmo que por apenas seis meses do ano.

É através dessa parte do mito de Deméter e Perséfone que se explica a importância que o culto a ambas teve entre os gregos. Os iniciados nos Mistérios de Elêusis deveriam adorar a terra e celebrar a agricultura, especialmente o trigo (Deméter), além disso, eles não precisavam temer a morte, pois ela fora vencida por Perséfone que, embora tenha descido ao mundo subterrâneo, retornou triunfante, “como a semente que morre no seio da terra e se transmuta em novos rebentos.” (BRANDÃO, 1991, p. 293). O que os Mistérios prometiam aos iniciados era a felicidade após a morte, pois a deusa a quem adoravam – Perséfone – poderia proporcionar-lhes tal bem-aventurança. Para os iniciados em tal religião, a morte é bem-vinda “e o sentido secreto dos Mistérios de Elêusis consistiria na descida ao inconsciente, com o propósito de liberar o desejo reprimido e procurar a verdade com vistas a si mesmo, o que pode ser a mais bela das conquistas.” (BRANDÃO, 1991, p. 293). Como no regime noturno místico do imaginário a morte é sinônimo de acolhimento e cuidado, lugar para onde se volta como lar aconchegante e íntimo e não como prisão ou exílio.