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CAPÍTULO 2 ENTRE BICHAS, GAYS E HOMOSSEXUAIS: “JORNALISMO

2.3 Lampião da Esquina : o mundo “guei” nas bancas de revista

2.3.3 Lésbicas, mulheres, travestis

Ainda que o Lampião da Esquina tenha surgido com a proposta de dialogar com outras “minorias” e conferir alguma visibilidade a outras categorias e “lutas” (como a racial e a ecológica), as reportagens e artigos direcionavam-se preferencialmente aos homossexuais masculinos. Os 11 integrantes do Conselho Editorial eram homens, situação que se manteve nas edições seguintes.

Isto não quer dizer que, no seu primeiro ano de veiculação, o Lampião não tenha veiculado reportagens e artigos enfocando “lésbicas”, “travestis” ou “bissexuais”. O jornal também se deparou com os desafios, demandas e reivindicações de sujeitos que não se alinhavam exclusivamente ou que, de algum modo, não se viam incluídos na categoria “homossexual”.

Para ilustrar, no seu primeiro ano de circulação, de um total de treze exemplares, as mulheres foram o principal destaque na capa de quatro edições. Na terceira, a manchete saudava “Mulheres na Redação”, acompanhada de uma entrevista com a atriz Norma Bengell. A edição de número cinco ressaltava a extensão produção literária da escritora Cassandra Rios (“Cassandra Rios ainda resiste – com 36 livros, ela só pensa em escrever”). Na décima primeira, são as temáticas que desafiavam o movimento feminista que ganham realce (“Lesbianismo, machismo, aborto, discriminação – são as mulheres fazendo política”). A edição seguinte, por sua vez, salientava o “Amor entre mulheres (elas dizem onde, quando, como e porquê)”. Pode-se incluir ainda o relativo destaque à entrevista da cantora Lecy Brandão na sexta edição, sugerindo a existência de uma “Música Popular Entendida”).

ser situada no interior de uma resistência ao próprio termo (e conceito de) “gay power”: “Um dos termos discutidos e rejeitados era o chamado gay power, muito em voga no final dos anos 1970 e começo dos 1980. Acreditávamos que a concentração de poder começava pela delegação de poderes individuais. Portanto, considerávamos repugnante substituir um poder por outro, ainda que fosse pretensamente um “poder de dentro' – o que nos parecia um impedimento para diluir ao máximo os poderes e para manter a condição de sujeito desejante – dentro da comunidade homossexual” (TREVISAN in COSTA et al,2010, p. 55).

(Imagem 5, Lampião da Esquina, ano 1, n. 12, mai 1979)

A inserção das pautas femininas e/ou lésbicas pode ser pensada na articulação de dois pontos: um, de aproximação; o segundo, de tensão.

Em relação ao primeiro, Lampião acompanhava e era palco das relações que começavam a se estabelecer entre o nascente “movimento homossexual brasileiro” e as reivindicações feministas. Como documenta amplamente MacRae (1990), entre 1975 e 1976, são lançados os jornais Brasil Mulher e Nós Mulheres (este último declarando-se editorialmente como feminista), veículos que traziam para o primeiro plano temas como a “opressão das mulheres” e o “direito ao prazer sexual”. O respeito à individualidade e ao reconhecimento do prazer, que como vimos estava na pauta do Lampião da Esquina desde seus primeiros números, eram incorporadas nos coletivos homossexuais como questões prioritárias, em contraponto às lutas gerais da esquerda:

O movimento feminista (…) servia para chamar a atenção a formas de discriminação presentes nos métodos de militância da esquerda e a outros tipos de

opressão além da puramente econômica. Pode-se dizer que as feministas serviram, talvez, para legitimar valores que antes eram desprezados pelos grupos de inspiração marxista-leninista. Como veremos adiante, no movimento homossexual, que deve muito ao feminista tanto em termos de teoria quanto de prática, essa vertente individualista foi mantida e até aumentada (MACRAE, 1990, p. 31)

Ao passo que é possível identificar em vários discursos do Lampião essa convergência, também é possível perceber que a inserção editorial de demandas feministas não se dava sem conflito. Se no editorial do número zero a categoria “mulheres” foi incluída na relação dos “grupos injustamente discriminados” que o jornal pretendia “dar voz”, na mesma edição uma nota, assinada por Aguinaldo Silva, buscava justificar a ausência destas como membros ou colaboradoras do periódico. O título sugere uma desunião por parte das mulheres, ao jogar implicitamente com uma referência ao lema “trabalhadores do mundo, uni- vos” presente no Manifesto Comunista de Marx:

Mulheres do mundo inteiro...

A ausência de mulheres em LAMPIÃO não é, fique bem explicado, culpa do seu conselho editorial; convites não faltaram, todos recusados, mas nossas colunas continuam à disposição. Uma das questões que este jornal pretende levantar é a do feminismo e, pelo menos quanto a este tema específico, as mulheres homossexuais não podem se furtar; no caso das mulheres, a discriminação é bem mais complexa, e independe de suas preferências sexuais (Lampião da Esquina , ano 1, n. zero, abr 1978, p. 5)

O conflito ganha mais visibilidade na décima e na décima primeira edições, quando a participação ou não das mulheres no Lampião ganha as páginas a partir de um comentário de Aguinaldo Silva a um texto daquela edição assinado pela ativista lésbica e escritora Leila Míccolis. O texto de Miccolis questionava uma extensa reportagem do jornal alternativo O Repórter, em que as lésbicas eram retratadas por meio de manchetes “sempre sensacionalistas”. Silva, por sua vez, toma o episódio como mote para criticar o que ele sugere ser um distanciamento das lésbicas ao Lampião da Esquina:

(…) não vou chegar ao extremo de dizer que foi “bem feito pra elas”; mas é que do LAMPIÃO elas vivem fugindo. Agora, quando aparece um jornal normal disposto a entrevistá-las, elas não se furtam: entregam todo o ouro. Ficam p. da vida com O Repórter? Pois então vamos fazer o seguinte: que se reúna um grupo de mulheres, façam as entrevistas, escrevam, botem tudo, e depois nos mandem. Nós publicaremos sem reescrever, sem cortar coisas, sem policiar. Tomem vergonha na cara e assumam esse compromisso, meninas; ponham o medo de lado e aceitem o fato de que o jornal é nosso, ou seja: também é de vocês (“Lésbicas vendem mais jornal?”, Lampião da Esquina, ano 1, n.10, mar 1979, p. 2)

O tom deste discurso, que oscila entre a provocação e o conciliatório em seu desfecho, costurado no contraponto entre um jornal “normal” (O Repórter) e um jornal

“nosso” (homossexual, incluindo-se as lésbicas, o Lampião), evidencia como a participação feminina era incipiente. Na edição seguinte, a repercussão leva Aguinaldo Silva a comentar que “o jornal se viu invadido pelas mulheres”, saudando a participação de um grande número delas na reunião de pauta. O jornalista afirmava ainda que o menor espaço às mulheres estava ligado a uma decisão de só ampliá-lo mediante uma participação mais efetiva destas na redação do jornal, de modo a escapar de uma postura “paternalista”, “que está sempre dizendo o que as mulheres devem (não) pensar e (não) fazer” (“Extra! Mulheres chegam para ficar”,

Lampião da Esquina, ano 1, n. 11, abr 1979, p. 2).

Ainda que esta postura tenha se traduzido em uma maior visibilidade às mulheres nas edições imediatamente seguintes, pode-se afirmar que o Lampião manteve-se nos seus anos de existência como um veículo direcionado ao público homossexual masculino, algo que se consolida nos dois anos posteriores de funcionamento do jornal.

A categoria “travesti”113

, por sua vez, aparece com relativo destaque desde as primeiras edições. Concordamos com a leitura de Simões e Facchini (2009) quando estes identificam num conjunto de textos do Lampiãoum posicionamento que se aproxima de “um

ponto de vista altamente positivo e mesmo apologético” (p. 91), construído tanto verbal como imageticamente. É o caso da capa da quarta edição, em que a manchete “TRAVESTIS! Quem atira a primeira pedra?” era o destaque do topo da página. A reportagem nas páginas internas, por sua vez, usava da estratégia de atribuir a personalidades históricas como os escritores Oscar Wilde e Marcel Proust o ato de se “travestir”, de modo a afirmar que “o travesti tem até fortes trancetes históricos” (Lampião da Esquina, ano 1, n.4, ago-set 1978, p. 8). O texto, introdução de um ensaio fotográfico “sobre o visual do travesti brasileiro”, também era acompanhado de uma entrevista com o ator Jorge Alves de Souza/Geórgia Bengston, que na ocasião atuava no teatro de revista. Em determinada passagem, a autora da reportagem, Regina Rito, afirma: “Mas a sobrevivência do travesti ainda é ameaçada por outros problemas. Para a polícia, por exemplo, ele é uma espécie de marginal” (Lampiãoda Esquina, ano 1, n.4, ago-set 1978, p. 9).

Outro ensaio fotográfico, com travestis que frequentavam a Galeria Alaska, tradicional reduto de sociabilidade homossexual do Rio de Janeiro da década de 1970, é acompanhado por texto em que se enfatiza “o” travesti como sujeito capaz de mobilizar medos e desejos dos heterossexuais:

113 Nos discursos veiculados em Lampião, travesti era sempre designado pelo artigo definido masculino (“o

(…) a fotógrafa Astrid Marot (…) passou a fotografar, com rara paciência, os travestis que, a cada carnaval, saem à rua, não para exibir uma possível semelhança com as pessoas do outro sexo, mas sim, para incorporar a inquietação que os faz buscar o impossível – a transformação. Os travestis de Astrid têm a face do pesadelo, vê-los certamente ajuda a entender o medo irracional que acomete muitas pessoas hetero nas quais o homossexualismo provoca um pavor, a sensação do “já ter visto aquilo em algum lugar” – possivelmente no mais íntimo de todos os seus pensamentos (“Sugestões para o pesadelo da madrugada”, Lampião da Esquina, ano 1, n. 11, abr1979, p. 20)

Podemos identificar neste discurso a alocação do travesti como alguém que, mais do que uma semelhança com a figura da mulher, inquieta pela performatização da “transformação” (impossível); por outro lado, “o travesti” também é considerado uma variação do “homossexualismo” que interpela os medos e pensamentos íntimos dos heterossexuais.

Entretanto, assim como em outras questões editoriais analisadas aqui, esse modo de representação também dividia o jornal, seja na posição de alguns colaboradores, seja de leitores que se manifestavam na seção de cartas. Isso pode ser constatado em texto do conselheiro editorial João Antônio Mascarenhas, que propugna um discurso que vincula “o travesti” a uma categoria de homossexuais que, não obstante se “rebelasse” contra “a rigidez dos padrões sexuais impostos pela casta dominante”, ora representava uma tentativa “incompleta” de se tornar mulher (esta, vista como portadora de uma feminilidade “natural”), ora (numa leitura que mescla travestismo e transexualidade) buscava ocultar sua “identidade” mediante o recurso da operação cirúrgica:

Sua ambição máxima consiste em transfigurar-se na mulher vamp, no sofisticado objeto sexual tão comercializado por Hollywood nas décadas de 30 a 50. Ademais, os ingentes esforços que ele dedica – e nunca com êxito total – para assemelhar-se ao que metade da população mundial é com naturalidade, francamente, para mim, significam uma perda de tempo e de energia muito grande (“Sobre tigres de papel”, Lampião da Esquina, ano 1, n.4, ago-set 1978, p.9)114

Desses discursos, nem sempre convergentes, Lampião buscou conciliar a proposta de ser um jornal “homossexual” que, sob esta definição, retratasse outras identidades que não apenas a do homossexual masculino, como lésbicas e travestis. Contudo, o jornal

progressivamente vai assumindo seu endereçamento aos homens

114O texto de Mascarenhas também ataca as “bichas pintosas”, a quem classifica de “agressivas” por “agredir” e

internalizar “insegurança” e “sentimento de culpa”. No discurso do autor, “dar bandeira” como expressão da própria homossexualidade era tomado como uma postura de internalização de uma opressão e de assumir uma posição de estigmatizado. Entendemos que esse discurso discrimina as “pintosas” ao situá-las como ameaçadoras de uma homossexualidade “respeitada”. Ainda para Mascarenhas, o travesti elevaria esta postura ao paradoxo, por buscar um ideal de feminilidade. É um discurso, portanto, contraposto a outros discursos mais “celebratórios” que circulavam em textos e, sobretudo, ensaios fotográficos do Lampião.

(homossexuais/entendidos/gueis/gays).

Tanto pelo modo como se “cedeu” espaço às mulheres/lésbicas ou se elaborou estas representações ambíguas dos travestis, não se trata aqui apenas de revelar a delimitação editorial por uma audiência de homossexuais masculinos: Lampião era um jornal que, não obstante os esforços de problematizar o “homossexualismo”/ homossexualidade, o/a situava a partir de olhares que, majoritariamente, partiam de uma posição homossexual masculina.

É nesse contexto que as lésbicas “convidadas” a escrever sobre “lesbianismo” no

Lampião decidem, como fruto desta experiência, tanto lançar uma publicação própria como um coletivo organizado, o Chana com Chana e o Grupo Lésbico Feminista (posteriormente GALF- Grupo de Ação Lésbico-Feminista), respectivamente. Artesanal, o Chana com Chana

consistia num boletim informativo distribuído em bares, boates e eventos acadêmicos e políticos de interesse da comunidade lésbica. Na medida em que o GALF, no final da década de 1980, passa a se constituir na organização não-governamental Um Outro Olhar, o periódico passa a ganhar este mesmo nome, circulando entre outros coletivos gays e lésbicos.

Como demonstra Péret (2011), outras publicações lésbicas similares, de alcance bastante restrito quando comparadas a jornais homossexuais como o Lampião, despontam nos anos 1980 vinculadas a associações e organizações de militância, caso de Boletim Amazonas,

Xerereca, Boletim Ponto G, Deusa Terra e Lesbertária. Nas décadas seguintes, a pequena inserção de lésbicas num universo editorial de maioria homossexual masculina encontra eco na atuação de Vange Leonel (cantora, escritora, colunista de Sui Generis e do jornal Folha de S. Paulo) e Suzy Capó (curadora do Festival MixBrasil de cinema).

Nos anos 2000, também são lançadas revistas direcionadas especificamente a este público, caso de Sobre Elas (2006, com circulação de apenas dois números e distribuição gratuita) e Entre Elas (2008, extinta no mesmo ano). Esta efemeridade demonstra uma dificuldade ainda maior de se elaborar uma “imprensa lésbica” no Brasil. Ainda segundo Péret, isso remete a fatores diversos, “desde o fato de elas não se assumirem até a profusão de revistas femininas que existem no mercado” (2011, p. 80). Igualmente a se considerar é uma menor visibilidade das lésbicas no interior tanto da imprensa “gay” como do mercado de consumo e serviços direcionados aos sujeitos LGBTs.

2.3.4 “Imprensa alternativa” e o ocaso do Lampião

É corrente na literatura sobre a imprensa brasileira dos anos 1970 o protagonismo assumido pelos jornais que formaram a chamada “imprensa alternativa”. A principal

referência é o trabalho de Kucinski (2003), adaptação de tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo no início da década de 1990. O autor parte da seguinte contextualização para definir este segmento jornalístico:

Durante os quinze anos de ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1980, nasceram e morreram cerca de 150 periódicos que tinham como traço comum a oposição intransigente ao regime militar. Ficaram conhecidos como imprensa alternativa ou imprensa nanica. A palavra nanica, inspirada no formato tablóide adotado pela maioria dos jornais alternativos, foi disseminada principalmente por publicitários, num curto período em que eles se deixaram cativar por esses jornais. Enfatizava-se uma pequenez atribuída pelo sistema a partir de sua escala de valores e não dos valores intrínsecos à imprensa alternativa. Ainda sugeria imaturidade e promessas de tratamento paternal. Já o radical de alternativa contém quatro dos significados essenciais dessa imprensa: o de algo que não está ligado a políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o do desejo das gerações dos anos de 1960 e 1970, de protagonizar as transformações sociais que pregavam (KUCINSKI, 2003, p. 13)

A consolidação desta “imprensa alternativa” alinhava-se ao interesse dos leitores em ter acesso a “discursos alternativos” que se contrapusessem aos discursos “oficiais” que predominariam na “grande imprensa” durante o regime militar, notadamente no período do “milagre econômico”. Cobrindo pautas que iam da reivindicação da anistia aos presos políticos às manifestações sindicais de final dos anos 1970 ou às mudanças “comportamentais” advindas do espraiamento da “contracultura” nos setores médios e urbanos, jornais como O Pasquim, Movimento, O Bondinho, Em tempo, entre outros, tornaram-se espaços de discussão pública sobre os rumos da ditadura, sobre a “abertura” política e as possibilidades de redemocratização da sociedade brasileira.

Há um conjunto de referências que tende a situar Lampião da Esquina como um dos representantes desta imprensa alternativa115. Kucinski inclui o jornal na extensa compilação que fez dos títulos que circulavam no país entre os anos 1970 e 1980, classificando-o sob a rubrica “gay”.

Entendemos que, embora seja possível identificar uma convergência da proposta editorial do Lampião, sobretudo quando do seu surgimento, às pautas e reivindicações dos jornais “alternativos”, não se deve tratar este alinhamento como automático. Isso decorre tanto da especificidade de se posicionar como um “jornal homossexual” como dos conflitos que tal posicionamento gerava no interior desta imprensa alternativa.

Em sua segunda edição (junho-julho de 1978), o jornal publica pequeno anúncio

115Silva (1998) apresenta do seguinte modo o jornal em sua dissertação: “Observei a recorrência de relatos

referentes a um periódico da imprensa alternativa: o Lampião da Esquina” (p. 7); No capitulo dedicado ao Lampião, MacRae dedica uma breve seção à “imprensa alternativa” (1990, p. 69-70).

na seção “Cartas na Mesa”, incluindo o periódico numa lista de outros títulos como De Fato,

Repórter, Em Tempo, Coojornal, Verso, Nós Mulheres, Brasil Mulher e o Pasquim. Esta associação com os jornais alternativos fica mais explícita com o título, no topo do anúncio, reivindicando “Por uma imprensa independente”.

O anúncio, porém, recebe críticas de um leitor no exemplar seguinte, cujo discurso, mencionando o fato de dois desses jornais alternativos citados terem recusado a publicação de uma entrevista com um ativista gay norte-americano, questiona a imprensa “independente” e o fato de o Lampião promovê-la em suas páginas:

(…) Mas ainda não chegamos ao principal: a propaganda que você, meu querido LAMPIÃO, fez da tal de “imprensa alternativa”. Eu, antes de jogar o epíteto “independente”, perguntaria antes: independente de que? De quem? Porque pode ser independente de uma coisa e dependente de outra...

Trevisan neste mesmo seu n.2, LAMPIÃO, nos conta que Versus e Movimento se recusaram a publicar a matéria sobre o Leyland por razões morais. Nos conta ainda que O Beijo se recusou por pura sacanagem. Ora, você sabendo de tudo isto ainda publica uma propaganda desta imprensa em suas páginas? Você está parecendo Bicha-burra, LAMPIÃO! Esse tipo de imprensa não é independente coisissíma nenhuma, muito pelo contrário. E bota contrário nisso. São preconceituosos, pedantes e antes de mais nada, pequeno-burgueses (Cartas na Mesa, Lampião da Esquina, ano I, n.3, jul-ago 1978, p. 15)

A crítica do leitor, numa interpelação direta ao jornal explicitada pelo uso recorrente do vocativo, recebe a seguinte resposta (não-assinada):

Quanto ao anúncio da “imprensa independente” em nossas páginas, foi apenas uma brincadeira, que pensávamos ser sutil mas perceptível. Uma brincadeira como o LAMPIÃO inteiro, uma vastíssima brincadeira, pois tudo que nós queremos (ai, que preguiça!) é vadiar. É claro que a gente fecha com alguns daqueles jornais. Mas – e isso mostra como nós somos saudáveis – o importante é que nenhum deles fecha conosco.

P.S. – Bicha-burra é a mãe Cartas na Mesa, Lampião da Esquina, ano I, n.3, jul-ago 1978, p. 15

É interessante perceber aqui uma posição do jornal que, insistindo na ideia de “brincadeira” e de deslocar a crítica a partir dessa estratégia, mas sem deixar de reconhecê-la, sugeria como era ambígua a relação do jornal com outros periódicos “alternativos”. Expressões coloquiais como “fechar” ou certa informalidade no encerramento do discurso (“Bicha-burra é a mãe”) podem ser tomadas dentro de uma estratégia editorial mais ampla, como vimos anteriormente, de se buscar um tom menos sisudo numa publicação “homossexual”. E explicitam, pelo jogo de palavras com o verbo “fechar”, também a posição particular que o jornal acredita ocupar no interior da “imprensa alternativa”: em consonância com alguns periódicos, mas sem ter o reconhecimento de sua legitimidade por outros

veículos, algo que o jornal revaloriza como positivo (“saudável”). Essa dificuldade de reconhecimento, por seu turno, pode ser pensada no interior de disputas em que a homossexualidade/“homossexualismo” não era plenamente reconhecida no interior das lutas sociais que pautavam os jornais da “imprensa alternativa”.

Isso fica mais explícito quando se traz um trecho do texto já citado de Aguinaldo Silva, acerca da participação das mulheres no Lampião, quando ele usa como exemplo o jornal O Repórter e o retrato que este faz do “homossexualismo”:

Bom: eu conheço o pessoal d'O Repórter e sei que ele é da melhor qualidade; estão enfrentando uma barra pesadíssima como nós e formam, como outros jornais, uma linha de frente na qual LAMPIÃO também se instala. Agora, o problema é que, por mais progressistas que sejam, os meninos enrolam a língua quando resolvem falar de homossexualismo. Tenho certeza que, quando resolveram fazer a matéria sobre as lésbicas, eles tinham a melhor das intenções. Mas como de boas intenções o mundo está cheio, foi o que se viu (“Lésbicas vendem mais jornal?”, Lampião da Esquina, ano 1, n.10, mar 1979, p. 2)

Nesse discurso, as dificuldades compartilhadas com “outros jornais” e a posição de enfrentá-las faz o Lampião se afirmar alinhado a outros títulos e marcar posição clara como representante da imprensa alternativa. Este alinhamento, por seu turno, não implica em desconsiderar como neste segmento de jornais o “homossexualismo” ainda era dimensão