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PARTE I ENQUADRAMENTO TEÓRICO

CAPÍTULO 4 CULTURA SURDA: UMA CULTURA IGNORADA?

4.2 LÍNGUA DE SINAIS

Pois na língua de um povo, observa Herder, “reside toda a esfera de pensamento, sua tradição, história, religião e base da vida, todo o seu coração e sua alma”. Isso vale especialmente para a língua de sinais, porque ela é a voz – não só biológica mas cultural, e impossível de silenciar – dos surdos (SACKS).

Sem dúvida, um dos elementos mais importantes da cultura surda é sua linguagem, ou seja, a LS, como nos explica Strobel (2008b):

A língua de sinais é uma das principais marcas da identidade de um povo surdo, pois é uma das peculiaridades da cultura surda, é uma forma de comunicação que capta as experiências visuais dos sujeitos surdos, sendo que é esta língua que vai levar o surdo a transmitir e proporcionar-lhe a aquisição de conhecimento universal (STROBEL, 2008b, p.42-43).

A LS, ou língua gestual utiliza gestos e expressões corporais, de forma visual e espacial e é utilizada pelo povo surdo em todo mundo. Cada país desenvolveu suas variações linguísticas, principalmente em função das diferenças culturais. Como exemplo, no Brasil a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, ou LSB. Em Portugal, a Língua Gestual Portuguesa – LGP (reconhecida através do artigo 74 da Constituição Portuguesa de 1997).

Ressaltamos que no Brasil também existe a Língua de Sinais Kaapor Brasileira (LSKB), utilizada pela etnia indígena brasileira da tribo Urubus- Kaapor, no estado do Maranhão. Segundo Gurgel (2007), os índios Kaapor têm uma alta ocorrência de surdez (uma em cada 75 indivíduos) e desenvolveram uma língua própria de sinais que começou a ser investigada na década de 1960. Toda a comunidade Kaapor utiliza a LSKB, o que resulta em uma comunicação natural entre os índios ouvintes e índios surdos.

A LIBRAS, segundo o Decreto Presidencial nº 5.626, é entendida como:

A forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (BRASIL, 2002).

A LIBRAS, como forma de comunicação e expressão da comunidade surda brasileira deve ser adquirida como língua materna desde a mais tenra idade, através do convívio social, de forma natural, como acontece com os ouvintes. A linguagem sob a ótica social tem reflexo no desenvolvimento cognitivo do ser humano e é investigada na psicologia sócio-

interacionista, tendo como seu maior representante Vygotsky5 (1896-1934). Para Vigotskii (1998) a linguagem provém antes de tudo como meio de comunicação entre a criança e as pessoas ao seu redor e, a partir daí, é convertido em linguagem interna, que transforma-se em função mental interna, gerando os meios essenciais ao pensamento da mesma.

A linguagem possui, além da função comunicativa, a função de organizar o pensamento, ela vai do meio social para o indivíduo. No caso dos surdos os problemas comunicativos e cognitivos têm origem no meio social onde os mesmos estão inseridos, pois na maioria das vezes não se utiliza uma língua que seja obtida de forma instintiva, como a LS. Para Goldfeld (2002), a pessoa surda que não adquire uma língua, encontra dificuldades para perceber o contexto em que se encontra, pois seu pensamento não é orientado por uma linguagem e, sabe-se hoje, que estas dificuldades cognitivas são consequências do atraso da linguagem. A autora ainda aponta que a sociedade em geral não tem essa compreensão e, por conta disso, o surdo ainda é tratado como um incapaz.

Em seus estudos de defectologia, Vygostky (1989) afirmava que as deficiências afetavam primeiramente as relações sociais das crianças e não seu convívio direto com o ambiente. Assim, era necessário entender as deficiências como consequências sociais e não apenas biológica. Vygotsky (1989) apresenta que:

Desde os primeiros dias do desenvolvimento da criança, suas atividades adquirem um significado próprio num sistema de comportamento social e, sendo dirigidas a objetivos definidos, são refratadas através do prisma do ambiente da criança. O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa. Essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social (VYGOTSKY, 1989, p. 33).

Strobel (2008a), afirma que os indivíduos que tem acesso à LS e à comunidade surda têm maior segurança, autoestima e identidade surda. Perlin (2015), diz que “o encontro surdo-surdo é essencial para a construção da identidade surda, é como abrir o baú que guarda os adornos que faltam ao personagem” (PERLIN, 2015, p. 54).

A LIBRAS recebeu influências principalmente da língua gestual francesa - Langue

des Signes Française (LSF), com a chegada do professor Edward de Huet, ao Brasil, e também da língua gestual americana - American Sign Language (ASL). Foi por volta de 1960 que William Stokoe (1919 - 2000), linguista americano, estudou e apresentou uma análise da LS, onde demonstrou que a ASL era uma estrutura complexa de símbolos abstratos.

5 O nome Vygotsky foi empregado nesse trabalho, mas outras grafias também serão utilizadas, em consideração

Sacks (2010) expõe essa passagem e mostra que Stokoe foi o primeiro a procurar a estrutura da LS, analisando os sinais e, procurando demonstrar que cada sinal apresentava três partes independentes, como localização, configuração de mão e movimentos (análogas aos fonemas da fala) e, que cada parte apontava um numero limitado de combinações.

A LIBRAS tem sua estrutura gramatical organizada em parâmetros: Configuração das Mãos (CM), Pontos de Articulação (PA), Orientação (O), Movimento e Expressão Facial e corporal. Os sinais são formados a partir da combinação do movimento das mãos com um determinado formato em um determinado lugar, podendo este lugar ser uma parte do corpo ou um espaço em frente ao corpo.

A CM é a forma que a mão assume durante a realização de um sinal. Na LIBRAS existem quarenta e três CM. O PA é o lugar do corpo onde é realizado o sinal, podendo esta tocar alguma parte do corpo ou estar em um espaço neutro vertical (do meio do corpo até à cabeça) e horizontal (à frente do emissor).

Os sinais podem ser icônicos, quando reproduzem a imagem do referente, ou podem ser arbitrárias, quando não mantém nenhuma referência ou semelhança com o que representam. Movimento (M) é o deslocamento da mão no espaço, durante a realização do sinal. Quanto aos sinais, estes podem ter ou não movimento e também podem ter uma direção e a inversão desta pode significar ideia de oposição, contrário ou concordância número- pessoal.

São considerados também os componentes não manuais, como a expressão facial e/ou corporal e o movimento do corpo. A LIBRAS também utiliza a datilologia, que é o alfabeto manual. A seguir mostramos a CM (fig. 01) e o alfabeto manual da LIBRAS (fig. 02).