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Capítulo II – Definição de Conceitos: Língua e Representações

2.1. Língua Materna e Língua Não Materna

Num país cada vez mais multicultural, onde a presente realidade é caracterizada pela crescente diversidade linguística, torna-se perentório refletir sobre os conceitos de Língua Materna (LM) e L2. Uma vez que a escola é também um espaço de cruzamento e interação destes dois termos, existe a necessidade de definir as fronteiras que os diferenciam, no sentido de desenvolver um maior respeito pela heterogeneidade e para um desempenho mais fundamentado no ensino da LP.

Apesar de se tratar de um assunto bastante controverso, começamos por refletir sobre o significado de LM, que tal como o próprio nome indica é a primeira língua que uma criança aprende, não querendo dizer que essa língua corresponda à língua oficial do país, designada de “língua dominante” (Silva, 2005). Na concetualização da autora “o

conceito faz alusão à língua da primeira socialização, que tem geralmente a família como principal transmissor” (Grosso, 2010, p. 63). Segundo o Dicionário de Termos Linguísticos, é a “língua nativa do sujeito que a foi adquirindo naturalmente ao longo da infância e sobre a qual ele possui intuições linguísticas quanto à forma e uso”

(Xavier & Mateus, 2007, p. 446).

Leiria (2005) defende que a LM é aquela cuja gramática a criança adquire e progressivamente vai desenvolvendo e estruturando até aos cinco anos de idade, procurando aproximar-se o mais possível do sistema linguístico dos adultos e da comunidade linguística a que pertence.

No entanto, a construção do conceito de LM vai muito para além do relacionamento ao critério temporal, ou seja, a língua que se aprende ou que se compreende desde a infância. Existem outros critérios que podem ser igualmente considerados para a sua definição, entre os quais Ançã (1999) destaca: “o afetivo”, idioma falado por um dos pais; “o ideológico”, idioma falado no país onde se nasceu;

“o de auto-designação”, idioma a partir do qual o falante manifesta um sentimento de

posse mais marcado do que em relação a outro idioma; “o do domínio”, a língua que se domina melhor; “o da associação” pertence a um determinado grupo cultural ou étnico (Paiva, 2007, p. 6).

Mesmo assim, a definição de LM parece não estar completa, continuando a levantar inúmeras questões aos linguistas que a procuram entender. Tal como é o caso das variedades linguísticas que existem dentro da mesma língua, por exemplo, a que tipo de LM nos referimos quando dizemos que a LM de um português e de um brasileiro é a LP?. Tal interrogação advém das diferenças gramaticais que marcam estas duas variedades e que faz com que determinados falantes defendam que se trate de línguas distintas (Paiva, 2007).

A tudo isto acrescenta-se a visão sustentada por Spinassé (2006) que levanta outros aspetos linguísticos e não-linguísticos que podem estar ligados à definição de LM ou Primeira Língua (L1). Como é o caso do bilinguismo, em que a língua dos pais não é a mesma língua da comunidade, e ao aprender as duas, o individuo passa a ter mais de uma L1. Assim sendo, “uma criança pode, portanto, adquirir uma língua que

não é falada em casa, e ambas valem como L1” (Spinassé, 2006, p. 5).

De uma forma geral, a caracterização de uma LM só é possível na conjugação de diversos fatores e que todos eles sejam considerados tal como foi referido anteriormente. Assim, a língua da mãe, a língua do pai, a língua dos outros familiares, a língua da comunidade, a língua adquirida primeiramente, a língua com a qual se estabelece uma relação afetiva, a língua do dia-a-dia, a língua predominante na sociedade, a de melhor “status” para o indivíduo, a que ele melhor domina, a língua com a qual ele se sente mais a vontade correspondem todos a aspetos decisivos que são tidos em conta para uma definição de L1 (Spinassé, 2006).

Ao conceito de LM surge por oposição o de Língua Não Materna (LNM) que engloba as noções de L2 e de Língua Estrangeira (LE). Por vezes, estes dois conceitos aparecem como sinónimos, mas no nosso entender ocupam estatutos bem diferenciados.

Tal como Mª. Helena Ançã (2002, p. 61) refere:

O estatuto da língua é o principal aspeto a considerar: L2 é língua oficial e escolar, enquanto LE, apenas espaço da aula de língua. Decorrentes deste aspeto, há uma série de fatores e afastamento da LE e L2 (imersão, contexto, motivações, finalidades da aprendizagem da língua), cruzando-se, assim, o espaço de L2 com o da LM.

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Neste sentido, compreendemos que a L2 consiste na língua oficial e escolar, como no caso da LP em Cabo Verde. Em contrapartida a LE situa-se apenas no espaço de sala de aula, sendo desta forma apenas um objeto de instrução formal por parte do falante aprendente. Contudo, destacam-se outros aspetos que delimitam a significação destas duas conceções, nomeadamente, o contexto de imersão linguística do falante e as suas motivações e finalidades de aprendizagem (Ançã, 2002).

A mesma autora, baseada no pensamento de Ngalasso (1992), distingue duas definições para o conceito de L2: i) a “cronológica” que se estabelece por critérios psicolinguísticos e processa-se consoante a ordem pela qual a língua é adquirida, ou seja, a segunda adquirida posteriormente à materna, primeira língua; ii) e a

“institucional” que se relaciona com critérios de natureza sociolinguística, no que diz

respeito ao reconhecimento como língua oficial de um país ou estado (Ançã, 1999). Quanto à LE, não consiste na primeira língua de socialização, “é uma outra

língua com a mundividência de uma outra sociedade. É a língua e a cultura do outro que, por várias razões, sempre suscitaram grande curiosidade” (Grosso, 2010, p. 63).

Daí, Osório & Rebelo (2008) defenderem que a aprendizagem de uma LE, por ser uma língua de outro país, que não a do aprendente, requer uma instrução formal e o recurso a materiais pedagógicos e didáticos que compensem a ausência do contexto de emersão linguística. Neste sentido, como LE não é uma língua partilhada pela comunidade circundante fica circunscrita ao espaço de sala de aula, sendo desenvolvida quase exclusivamente no contexto formal.

Todavia, a L2 e a LE intersetam-se, no que respeita à sua natureza, uma vez que ambas são línguas de natureza não materna para o aprendente (Ançã, 2003, p. 2).

Do mesmo modo, tomando o caso do português, a autora supracitada diferencia as situações em que a LP se assume como L2, traçando uma tipologia para cada uma delas. Assim sendo, podemos considerar a “língua das raízes”, designada por “língua

de herança” (Barbosa & Flores, 2011), a “língua de acolhimento”, a “língua oficial” e

a “língua de resistência”.

A língua das raízes, para Ançã (2005), é entendida como a língua falada nas comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, em que a LP é aprendida em contexto exolingue presumivelmente a partir da segunda geração. Quanto à língua de

acolhimento é aquela que se aprende no país de destino, sendo a LP a língua oficial do país de acolhimento. A língua oficial é adaptada aos cinco países africanos que a adotaram, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, mesmo tendo cada um as suas particularidades linguísticas. A língua de resistência contempla os casos em que a LP resiste à imposição de uma outra língua, como é o caso de Timor-Leste com resistência ao indonésio (Silva & Gonçalves, 2011). E, por fim, a língua de herança, que se trata da língua aprendida no seio familiar, mas que não é a língua dominante da sociedade. Consideram-se os falantes de herança os imigrantes de 2.º e 3.º geração, que herdaram a LM dos pais, mas cuja língua dominante continua a ser a língua da sociedade de acolhimento (Barbosa & Flores, 2011). Geralmente, “o falante

de herança não é escolarizado na sua língua de herança ou, se o é, tem um nível de educação formal muito baixo nesta língua” (Barbosa & Flores, 2011, p. 81).

Deste modo, confirmamos a ambiguidade e a constante evolução presente no termo de PL2. Isto porque, LP como língua de herança pode atravessar os três conceitos conforme as gerações, ou seja: na 1.ª geração – LM; 2.ª geração – LM/L2; 3.ª geração – L2/LE. Assim, quando a LP se torna a língua de acolhimento (PL2) espera-se que haja uma evolução para PLM a par da LM de origem.

Neste ponto de vista, e considerando que a realidade atual das escolas portuguesas é caracterizada por uma diversidade linguística e cultural, torna-se premente repensar o papel da LP. Contudo, e conhecendo as implicações que a LM constitui na aprendizagem de outras línguas, não devemos menosprezá-las, mas antes integrá-las num espaço multilinguístico e multicultural. Assim, torna-se importante encarar a escola numa perspetiva intercultural e promover práticas de sensibilização à diversidade linguística do mundo, bem como a partilha de experiencias culturalmente significativas, sendo as línguas das crianças na escola como referencial para esse enriquecimento cultural.

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