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1.2 A FAMÍLIA LINGUÍSTICA KATUKINA

1.2.4 Línguas e dialetos

Das línguas e dialetos pertencentes à família Katukina, atualmente existem estudos apenas dos dialetos do Kanamari do Itaquai, Kanamari do Juruá e Katukina do Biá. Sobre o Katawixi, possivelmente já extinto, os dados linguísticos existentes são de apenas uma lista com cerca de duzentas palavras e algumas sentenças arquivados na Congregação do Santo Espírito, em Chevilly-Larue, França (DOS ANJOS, 2011). Quanto ao Tsomwuk djapa, não há registros nem trabalhos publicados. Talvez esse seja o dialeto mais conservador da família, visto que seus falantes não falam a língua portuguesa e mantém uma relação distante com os não indígenas.

Queixalós e Dos Anjos (2006) afirmam que o Kanamari e o Katukina do Biá são dialetos de uma mesma língua, fato este que leva os autores à conclusão de que a família linguística Katukina, encontrada exclusivamente em território brasileiro, seria composta por apenas duas línguas, se levarmos em conta que ainda existam falantes da língua Katawixí, cujos dados existentes são poucos e datam da década de 1920 (TASTEVIN, 1920 apud DOS ANJOS, 2005).

Sobre os Katukina do Biá (Pidah Djapa), alguns Kanamari do Juruá, com quem coletamos dados, informaram que entendem algumas palavras da língua deles. Outros disseram que não conseguiam entender, só o pajé os entendia, porque conhecia aquela língua. Um deles fez uma comparação com o caso dos Kulina e os Deni, assim como os falantes dessas línguas, os Kanamari com os Katukina do Biá não são o mesmo povo, mas conseguem se entender um pouco.

Em pesquisas realizadas com indígenas do clã Bim Djapa, alguns relataram que certa vez receberam a visita de alguns Katukina do Biá, a quem denominam Pidah Djapa. Sobre a comunicação entre eles, disseram que conseguiram conversar pouco, pois não entendiam muito o que falavam e muitas palavras eram diferentes.

Fonologicamente, o Katukina do Biá se diferencia do Kanamari por apresentar uma variação livre dos ditongos fonéticos [ai], [oi], [ei], [au], [ou] respectivamente, com as vogais longas altas /i:/ e /u:/ (DOS ANJOS, 2011). Em Kanamari, há restrições de formação de ditongos, encontram-se apenas os ditongos decrescentes /ai/, /au/ e /oi/. Além disso, nos contextos em que há inserção de glotal, entre vogais, em juntura de morfemas no Kanamari, há alongamento das vogais em Katukina (ISHY, 2012).

Há ainda, em Kanamari, a realização fonética de uma aspiração após a nasal velar [ŋ], quando seguida por outro som. E a realização opcional da fricativa /h/ em final de algumas palavras, que aparece obrigatoriamente em fronteira de morfemas. Essas duas características do Kanamari não se realizam em Katukina.

De acordo com Dos Anjos (2011), no nível lexical, nota-se a existência tanto de vocábulos idênticos, como vocábulos totalmente diferentes e na morfossintaxe a nominalização realiza-se por afixos diferentes. Queixalós (2010; 2012) também aponta diferenças como a permissão de um paciente oblíquo antipassivo apenas no Katukina do Biá e a ocorrência de um pronome de terceira pessoa como o paciente de uma oração acusativa no Kanamari, enquanto que no Katukina do Biá, essa construção é rejeitada.

Quanto aos Tsomwuk Djapa, os Kanamari do Juruá consideram pertencer ao mesmo povo, mas relatam não entendê-los quando falam rapidamente. Possivelmente, as diferenças entre os dialetos procedem da distância geográfica entre os Kanamari do Juruá com os Katukina do Biá e os Tsomwuk Djapa ou pelo pouco contato entre os mesmos, já que para os Kanamari do Jutaí e os Katukina do Biá a língua que falam é a mesma, mas com algumas diferenças (DOS ANJOS, 2005; 2011).

Todavia, é válido notar que a variação entre os dialetos está em um continuum. Não é só o Katukina do Biá e o Kanamari geral que variam, mas os vários dialetos da etnia Kanamari variam entre si. E, provavelmente, essa variação dialetal também seja uma marca de cada região onde os indígenas Kanamari habitam ou de alguns djapas que se distinguem sobretudo no nível lexical.

A definição em dialeto ou língua tem sido uma questão difícil e pouco definitiva entres os linguistas. Segundo Aikhenvald (2012), duas variedades costumam ser consideradas línguas diferentes se os falantes não podem se entender mutuamente. Do contrário, serão dialetos de uma única língua. No entanto, é difícil decidir se essa inteligibilidade mútua entre

os falantes é completa ou não. Somado a isso, há o conceito dos próprios falantes, que, geralmente, não levam em conta fatores linguísticos. Logo, mesmo falando variações muito similares, não conseguem se identificar como um único grupo. A partir dessas questões, a definição língua ou dialeto deve ser feita baseada em vários dados. Por enquanto, os estudos que relatam algumas diferenças entre o Kanamari e o Katukina do Biá demonstram que estas estão primordialmente no nível lexical.

Além da importância de documentação de mais dados do Kanamari do Juruá e de outras regiões, há também a necessidade de registros e descrição do dialeto Tsomwuk djapa, que ainda não possui nenhum estudo linguístico publicado. Apenas com uma documentação mais abrangente, será possível um estudo aprofundado sobre a família linguística Katukina. E a partir disso, haverá também a possibilidade de estudos comparativos mais conclusivos com outras famílias, como o Haramkbet.

Em outras palavras, o estudo da família Katukina não é apenas importante para definir dialetos ou língua, mas para obter mais registros e estudos que apontem para a configuração linguística de tal família, suas diferenças e semelhanças entre seus dialetos e quais as prováveis relações genéticas com outras famílias e línguas. Por esta razão, não nos detemos neste trabalho em uma definição específica de dialeto ou língua, considerando que questões referentes a essa classificação devem levar em conta não só fatores linguísticos, mas também culturais.

1.2.5 O uso da língua

Em geral, os Kanamari do Juruá utilizam somente sua língua para a comunicação dentro de suas aldeias. Os homens possuem mais conhecimento da língua portuguesa e poucas mulheres comunicam-se em português. As crianças e adolescentes raramente sabem português, exceto aqueles que são filhos de pai ou mãe não indígena. Apesar de se comunicarem entre si em Kanamari, muitas palavras já não são mais usadas na língua, em vez disso, são utilizados empréstimos da língua portuguesa.

Durante o trabalho de campo, percebeu-se que alguns djapas possuem suas próprias variações lexicais. Muitas vezes, os ajudantes da língua informavam que havia duas maneiras

de se falar a palavra solicitada, uma era como eles usavam e a outra, a forma falada em outra aldeia ou em outro djapa. Variações fonológicas também foram percebidas, como demonstraremos adiante.

A língua Kanamari (ou Katukina-Kanamari) é falada em regiões diferentes e, em alguns casos, distantes, o que favorece diferenças dialetais em cada região. Nesse trabalho, a análise concentra-se, principalmente, em textos do Kanamari da região do Juruá, coletados por falantes do clã Bim Djapa. Doravante, ao mencionarmos o nome Kanamari, nos referimos ao dialeto do Juruá.

1.3 METODOLOGIA DE PESQUISA

O objetivo desse trabalho foi coletar, documentar, revisar e analisar dados da língua Kanamari na região do rio Juruá. Para isso, a pesquisa foi baseada na análise de dados coletados em trabalhos de campo durante pesquisa de mestrado e, principalmente, em um estudo de aproximadamente 40 textos da língua Kanamari compostos por mitos, relatos pessoais, textos informativos e textos explicativos sobre eventos culturais.

A pesquisa de campo realizada durante a pesquisa de mestrado foi dividida em duas viagens ao município de Eirunepé, no estado de Amazonas, com duração aproximada de um mês para cada viagem e com estadia de duas semanas em uma aldeia Kanamari, localizada no igarapé Mamori, afluente do rio Juruá. Os trabalhos nessa etapa concentraram-se em coleta de dados lexicais e fonéticos, o que resultou em registros de listas de palavras e paradigmas usados na análise fonético-fonológica apresentada em Ishy (2012). Esses mesmos dados foram reutilizados na presente pesquisa, sobretudo os dados lexicais, que auxiliaram nas traduções e análises dos textos.

Os dados textuais utilizados para a análise morfossintática foram previamente coletados entre os anos 2000 e 2005 por missionários da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) que viviam na região e mantinham contato com os indígenas. Esses registros foram cedidos para a presente pesquisa de doutorado e são o principal objeto de análise12.

12 Recorremos ao uso desses dados devido à falta de apoio financeiro para a pesquisa, principalmente para custear as dispendiosas viagens a campo. O último trabalho de campo da pesquisa de doutorado foi realizado com o auxílio financeiro do Programa de Pós-graduação do Instituto de Estudos de Linguagem (IEL) da

Esses textos já estavam transcritos, mas não analisados e dentre eles alguns poucos estavam traduzidos. A etapa inicial no tratamento dos dados textuais foi catalogá-los em um programa computacional. O software usado tanto na catalogação do léxico quanto na análise dos textos foi o software livre Fieldworks Language Explorer (FLEx).

Como a maioria desses textos ainda não estava analisada e traduzida, também foi realizado um trabalho de campo para desenvolver a tradução, revisão e análise desses dados. Essa etapa da pesquisa de campo também foi feita no município de Eirunepé, primordialmente, com a ajuda de uma professora indígena bilíngue. Além dessa informante, outros indígenas, oriundos da aldeia Mamori, também colaboraram com tradução de alguns trechos de textos e explicações sobre alguns eventos culturais.

Os objetivos principais da coleta dos dados foram traduzir alguns desses textos, ampliar o registro lexical da língua e revisar algumas análises preliminares, considerando principalmente as motivações semânticas e pragmáticas dos usos de partículas e de determinadas estruturas sintáticas. Além disso, por meio da tradução e interpretação dos textos com a ajudante, foi possível registrar algumas práticas, rituais e crenças da cultura Kanamari. Como a tradutora Kanamari era alfabetizada, ela mesma lia as transcrições e enunciava as traduções. Todos os trabalhos de tradução e revisão foram gravados em forma de áudio. A análise linguística dos dados segue uma abordagem Tipológico-funcional, fundamentada em Comrie (1976, 1989), Croft (2003), Dixon (1994, 2010a, 2010b, 2012), Givón (1990, 1995, 2001) e Shopen (2007a, 2007b, 2007c).

Consideramos que a continuação do estudo da língua Kanamari, ainda que apenas concentrada em sua variante do rio Juruá, contribuirá para a preservação e documentação linguística da família Katukina, poderá auxiliar com levantamentos de hipóteses e explicações de tópicos ainda pouco investigados nessa língua, bem como de sua família, e poderá servir de ferramenta para o desenvolvimento das teorias linguísticas e pesquisas tipológicas.. Especificamente, procuramos descrever aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos, por meio da análise de dados textuais, com a perspectiva de contribuir na preservação e documentação das línguas indígenas brasileiras.

UNICAMP. Enfatizamos também que, apesar de os dados serem fornecidos por uma organização religiosa, foram utilizados com intuito linguístico. Consequentemente, para evitar dados enviesados, textos de temáticas cristãs foram descartados na análise dos dados.

2 ASPECTOS FONOLÓGICOS

Neste capítulo, descrevemos os fones e fonemas consonantais e vocálicos, as variações fonológicas, os processos fonológicos e morfofonológicos, a estrutura silábica e o acento do Kanamari. Esses tópicos são uma revisão do estudo fonológico apresentado em Ishy (2012). 2.1 CONSOANTES

A partir de dados fonéticos, foram encontrados os sons consonantais descritos no qua- dro abaixo:

Bilabial Alveolar Pós-Alveolar Palatal Velar Glotal Oclusivas p b t d dʲ k g ʔ Oclusiva Não- Explodida k˺ Africadas ts tʃ dʒ Fricativa h Nasais m n ɲ ŋ ŋʰ Tepe ɾ Aproximantes w j

Quadro 2 - Quadro Fonético Consonantal

Dentre esses fones, são definidos como fonemas os sons demonstrados em contraste de ambiente idêntico e análogo, como listados a seguir:

- /p/ e /b/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente análogo com distinção de significado.

(1) [pɪ'tʃɪ] 'ser doce' [bɪːˈtʃɪ] 'verme'

- /m/ e /p/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(2) [waːˈpãŋ] ‘fome’

[waːˈmãŋ] ‘forte’

- /m/ e /b/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(3) [mok̚] ‘anta’

[bok̚] ‘assar’

- /w/ e /b/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(4) [aˈwa] ‘dele’

[aˈba] ‘mão dele’ E em ambiente análogo:

(5) [waˈɾah] ‘dono’

[baˈɾa] ‘caça’

- /t/ e /d/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente análogo com distinção de significado.

(6) [daˈwãŋ] ‘em pé’

[taˈwaɁ] ‘macaxeira’

- /t/ e /n/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente análogo com distinção de significado.

(7) [ɪhˈnãŋ] ‘morcego’

[ɪhˈta] ‘lenha’

- /d/ e /n/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(8) [piː'dah] ‘onça’ [piː'nah] ‘anzol’ [dok̚] ‘fezes’ [nok̚] ‘raiva’

- /d/ e /ɾ/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(9) [baˈda] 'esquilo'

[baˈɾa] 'caça'

- /n/ e /ɾ/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(10) [moːˈno] 'tipo de peixe' [moːˈɾo] 'vaso de barro'

- /tʃ/ e /dʒ/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(11) ['tʃãŋ] 'sol'

['dʒãŋ] 'açaí' [hɪːˈdʒãŋ] 'suor'

[hɪːˈtʃãŋ] 'porco do mato'

- /t/ e /tʃ/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(12) [tʃoː] ‘pupunha’

[toː] ‘lá, longe’

- /d/ e /dʒ/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(13) [dʒaˈʔãŋ] ‘peneira’ [daˈʔãŋ] ‘ir’

- /m/ e /n/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(14) [aˈma] ‘para ele’ [aˈna] ‘andar’ [mok˺] ‘anta’ [nok˺] ‘raiva’

- /n/ e /ɲ/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado:

(15) [ɲaˈma] ‘mãe’

[naˈma] ‘para (POSP)’

E em ambiente análogo com distinção de significado:

(16) [nãŋ] ‘carapanã’

[ɲa] ‘ser grande [hɪˈna] ‘buscar’

[hɪːˈɲa] ‘encher de água

- /ɲ/ e /m/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(17) [tʃoˈɲa] 'seio'

[tʃoˈma] 'cutia'

- /ɲ/ e /j/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(18) [ɲaˈma] ‘mãe’

[jaˈma] ‘para mim’ ['jaɁ] ‘medo’ ['ɲaɁ] ‘grande’

- /w/ e /j/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado:

(19) [waːˈniŋ] ‘vento’ [jaːˈniŋ] ‘brilhante’

- /h/ e /w/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(20) [tʃo'hi] ‘suco de pupunha’ [tʃo'wi] ‘machado’

- /h/ e /k/ são fonemas, pois ocorrem em contraste em ambiente idêntico com distinção de significado.

(21) [tʃo'hi] ‘suco de pupunha’ [tʃo'ki] ‘nossas cabeças’

Alguns conjuntos de sons demonstram variações fonéticas, como o grupo das velares [k], [k˺] e [g]; as africadas Alveolar [ts] e Pós-Alveolar [tʃ]; a africada Pós-Alveolar [dʒ] e a oclusiva Pós-Alveolar [dʲ]. Além dessas variações, encontramos também algumas especificidades para as nasais, a fricativa [h] e a glotal [ʔ] como discorremos nas seções seguintes.

2.1.1 As velares [k], [k˺] e [g]

O grupo das velares em Kanamari, na visão fonêmica, apresenta semelhança em distribuição complementar, isto é, pertencem ao mesmo fonema, mas, foneticamente, cada som ocorre em um ambiente específico.

O som [k] ocorre em posição inicial e medial de palavras seguido de vogais: (22) a. [koˈdoh] 'céu'

c. [waɾapiˈkõŋ] ‘fruta’

A velar não-explodida [k˺] ocorre apenas em posição final de sílaba, seguida por um som desvozeado, e em posição final absoluta de palavra:

(23) a. [bak˺] 'ser bom' b. [bak˺ˈtɯ] 'ser mau' c. [wahˈdak˺] 'lago'

Já a velar [g] ocorre em posição final de sílaba seguida pelos sons vozeados: (24) a. [hag'ba] ‘palha; telhado’

b. [hagˈmɪ] ‘quarto’ c. [pogˈmãŋ] 'cedro'

d. [itsag'wah] ‘sobrinho; genro’

Nos moldes fonêmicos, podemos postular que os sons [k], [k˺] e [g] são alofones e estão em distribuição complementar na língua Kanamari, formando o fonema /k/. Em suma, o fonema velar /k/ apresenta os seguintes alofones:

[k˺]: quando em final absoluto de sílaba ou seguido por um segmento desvozeado [k]: em posição inicial de sílaba seguido por vogais

[g]: quando seguido por um segmento vozeado

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