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Capítulo 1 As bases filosóficas da interpretação jurídica

1.3 O princípio da razão suficiente e a lógica jurídica

1.3.3 Lógica deôntica: a razão suficiente no direito

George H. von Wright em seu On the logic of norms and actions (1981, pp. 3- 4) disse que dentre todos os fundadores da lógica deôntica, nenhum antecipou essa ideia tão expressamente como Leibniz em Elementa juris naturalis (1672) ao escrever: “Omnes ergo Modalium complicationes, transpositiones, oppositiones ab Aristotele et Interpretatibus demonstrate, ad haec mostra Iuris Modalia non inutiliter transferri possunt”. Ele considera esse o preciso momento de nascimento da lógica deôntica, pois é nesse trabalho que Leibniz utiliza as categorias deônticas, a saber, o obrigatório (debitum), o permitido (licitum), o proibido (illicitum) e o facultativo (indifferentum), e pensa em suas relações com as modalidades aléticas.

George von Wright funda, a partir de Leibniz, seu trabalho inaugural Deontic Logic (1951) cujo escopo é o estudo de proposições (e funções-verdade de proposições) sobre o obrigatório, permitido, proibido e outras propriedades deônticas (derivativas) de atos (e funções-performance de atos), a fim de saber se estas proposições são logicamente verdadeiras ou não (Wright, 1951, p. 04).

Para von Wright, algumas proposições podem ser logicamente verdadeiras independentemente da natureza de conceitos deônticos, de forma que sua veracidade pode ser provada por meio de uma tabela-verdade; apesar de existirem também proposições cuja veracidade não pode ser provada inteiramente pela lógica proposicional. A questão que von Wright se propõe em seu artigo inaugural é a de

saber qual é o critério necessário e suficiente para um complexo molecular de proposições de –P e/ ou –O serem satisfeitas a fim de expressarem proposições logicamente verdadeiras? (Wright, 1951, pp. 5-6). Para tanto, ele estabelece alguns princípios basilares. O primeiro deles é o Princípio da Distribuição Deôntica: “Se um ato é de disjunção de outros dois atos, então a proposição que é permitida pela disjunção é a disjunção da proposição que o primeiro ato é permitido e a proposição que o segundo ato é permitido” (Wright, 1951, p. 07). Quanto às disjunções, a lógica deôntica é similar às funções-verdade, portanto.

Não obstante, existem fundamentalmente dois princípios que distinguem a lógica deôntica. O Princípio da Permissão, que von Wright define como qualquer ato

dado é ele mesmo permitido ou sua negação é permitida (Wright, 1951, p. 09)16. E o

Princípio da Contingência Deôntica: um ato tautológico não é necessariamente obrigatório, e um ato contraditório não é necessariamente proibido (Wright, 1951, p. 11).

Assim, as modalidades deôntica não têm relações com as coisas de fato, apenas garantindo a veracidade ou a falsidade lógica (coerência interna), o que é uma questão difícil para os filósofos morais17. E não apenas para os filósofos morais

16 “Thus, on the point at issue, the deontic modalities appear to resemble the alethic and the epistemic modalities rather than the existential ones. The restriction on the logic independence of the deontic units, which we are forced to accept, can be laid down as a Principle of Permission: Any given act is either itself permitted or its negation is permitted.There are alternative formulations of the principle. We might also have said: If the negation of an act is forbidden, then the act itself is permitted. And this again is equivalente to saying: If an act is obligatory, then it is permitted” (Wright, 1951, p. 09). Em

tradução livre: “Assim, no ponto em questão, as modalidades deônticas parecem se assemelhar mais às modalidades aléticas e epistêmicas que às existenciais. A restrição na independência lógica das unidades deônticas, que somos forçados a aceitar, pode ser demonstrado como Princípio da Permissão: Qualquer ato dado é permitido ou sua negação é permitida. Existem formulações alternativas deste princípio. Nós também poderíamos ter dito: Se a negação de um ato é proibida, então o ato mesmo é permitido. E isso ainda é equivalente a dizer: Se um ato é obrigatório, então é permitido.”

17 “There is thus an important sense in which the deontic modalities unlike the alethic, epistemic, and existential ones have no logical connexions with matters of fact (truth and falsehood). This is a point

de então, hoje facilmente essa questão aparece como problemática, mas à época isso pôde surgir como uma grande vantagem para as ciências. Tanto que Carnap a trata como um pseudoproblema da filosofia (Carnap, 1975), já que a cognição enquanto conteúdo experiencial não satisfaz a condição especial de consistência dos problemas matemáticos. Diz Carnap:

Esta diferença entre o objetivo da cognição e o problema matemático descansa sobre a diferença essencial de que no caso do problema matemático, as leis segundo as quais se deve derivar a solução a partir dos dados já se encontra determinada antes que se coloque o problema; por outro lado, no caso do objetivo da cognição, essas leis (a saber, as regularidades que valem entre os objetos reais, em outras palavras, as leis naturais no mais amplo sentido) seguem-se dos próprios dados, do material da cognição. Esta é a razão pela qual, caso variem os dados em um ponto dado, as próprias leis derivadas sofrerão mudanças correspondentes, de tal maneira que não exista nenhuma inconsistência entre o material alterado e as leis mudadas. (Carnap, 1975, p. 154)

Carnap parte do pressuposto que os sujeitos (transcendentalmente) conhecem da mesma forma e chegam aos mesmos resultados (dados empíricos) ao, por exemplo, observar uma montanha. Como em um chiste ruim, mas felizmente, com um propósito, Carnap coloca dois geógrafos-filósofos em uma montanha africana. Eles se deslocam até lá para saber se ela existe. Ambos veem a montanha: então diz o realista: ‘esta montanha que nós dois descobrimos, não só tem as propriedades geográficas afirmadas, mas é também, além disso, real’; e diz o ‘fenomenalista’ (uma subvariedade do realismo): ‘a montanha que descobri funda-se em algo real que não podemos conhecer em si mesmo’; o idealista por outro lado diz: ‘ao contrário, a montanha em si não é real, somente nossas (ou no caso da linha solipsista do idealismo: ‘somente minhas’) percepções e processos conscientes são reais. (Carnap, 1975, p. 168). Para Carnap esse é um pseudoproblema da filosofia, pois em sua visão, ambos os geógrafos-filósofos conheceram a montanha como um Em tradução livre: “Há assim um sentido importante no qual modalidades deônticas, diferente das modalidades aléticas, epistêmicas e existenciais, não têm conexões lógicas com matérias de fato (verdade e falsidade). Este é um ponto sobre as categorias deônticas que muito tem estressado os filósofos morais”.

dado empírico. Se esses dados variarem, as leis que os regem variarão; ao contrário das leis matemáticas, cujas leis são pré-existentes aos seus dados.

Sob essas premissas, Lourival Vilanova (2010) procurou estabelecer as estruturas lógicas do direito positivo. Para ele, a realidade social é constituída, de uma multiplicidade inter-relacionada de fatos, sobre os quais o conhecimento humano se debruça para formular proposições, enunciados, que possam fazer um entendimento sobre sua experiência (Vilanova, 2010, p. 56). A ideia central de sua teoria é formular proposições e enunciados sobre a realidade social para então poder trabalhar a consistência lógica entre essas proposições.

Atualmente, o desdobramento da obra de Vilanova de maior repercussão é o de Barros Carvalho. Ele adere e localiza-se posteriormente à virada linguístico- pragmática (da qual se ocupa o capítulo 5), precisamente porque compreende que os dados da realidade não são dados, e talvez nem sejam realidade. São construções linguísticas do sujeito. E assim, diferencia o texto legal da norma jurídica. Para ele, o texto legal é o ponto de partida do intérprete para a construção da norma jurídica. O texto funciona como um suporte fático para a construção dos enunciados com os quais se deve trabalhar a fim de obter uma resposta jurídica logicamente consistente, nos termos de Lourival Vilanova. Carvalho utiliza a lógica deôntica (aqui apresentada no trabalho de von Wright) aplicada ao método de incidência das normas jurídicas (aqui apresentada no trabalho de Araújo, em reflexo da metodologia cartesiana)18.

18 “Tenho insistido na tese de que normas são as significações construídas a partir dos suportes

físicos dos enunciados prescritivos. No sentido amplo, a cada enunciado corresponderá uma significação, mesmo porque não seria gramaticalmente correto falar-se em enunciado (nem frase) sem o sentido que a ele atribuímos. Penso que seja suficiente mencionar ‘suporte físico de enunciado prescritivo’ para referir-me à fórmula digital, ao texto no seu âmbito estreito, à base material gravada

Carvalho constrói o caminho mencionado acima no que designa de quatro subsistemas para o conhecimento do sistema normativo: a) o conjunto de enunciados, tomados no plano da expressão [aplicação da filosofia da linguagem]; b) o conjunto de conteúdos de significação dos enunciados prescritivos [transformação em enunciados]; c) o domínio articulado de significações normativas [aplicação da lógica deôntica]; e d) os vínculos de coordenação e de subordinação que se estabelecem entre as regras jurídicas [aplicação da lógica deôntica e da metodologia cartesiana como modelo de incidência das normas jurídicas] (Carvalho, 2011, p. 186).

Assim, a proposta é que se reduza a norma jurídica ao mínimo irredutível da mensagem deôntica, pois toda mensagem tem um mínimo de estrutura formal (Carvalho, 2011, p. 192). A fórmula básica da incidência jurídica (aquela nos moldes cartesianos) pode ser compreendida como uma composição sintática constante: um juízo condicional, em que se associa uma consequência à realização de um acontecimento fático previsto no antecedente (Carvalho, 2011, p. 193).

Algumas das questões relevantes trazidas pela aplicação da lógica deôntica no Direito são, na realidade, questões fundamentais sobre o conhecimento e sobre axiomatização enfrentadas há muito na matemática (certamente não apenas na matemática, por ser uma questão com desdobramentos evidentes na teoria da ciência, mas ficaremos com ela).

aquelas que se articularem na forma lógica dos juízos hipotéticos-condicionais: Se ocorrer o fato F, instalar-se-á a relação R entre dois ou mais sujeitos de direito (S’ e S”).” (Carvalho, 2011, p. 185)