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Capítulo 3: A SOLUÇÃO ESTÁ NO FOGO: TEM QUE QUEIMAR O MUNDO

3.5. A lógica marginaliza, o amor liberta

Como acordar sem sofrimento? Recomeçar sem horror? O sono transportou-me

àquele reino onde não existe vida e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte, a fábula inconclusa,

suportar a semelhança das coisas ásperas de amanhã com as coisas ásperas de hoje? Como proteger-me das feridas

que rasga em mim o acontecimento, qualquer acontecimento

que lembra a Terra e sua púrpura demente?

E mais aquela ferida que me inflijo a cada hora, algoz

do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea

(Acordar e viver, Carlos Drummond de Andrade)

A busca pela compreensão do sofrimento humano não é uma tarefa fácil. Às vezes não há respostas e nem saídas. A única coisa a fazer é tentar sobreviver e encarar o sofrimento de frente. Por outro lado, em algumas situações, o sofrimento pode ser explicado. Tem uma causa. Tem uma origem.

Jó sofreu sem compreender a causa de seu sofrimento. Viveu sua vida sem nenhuma expectativa. Apenas a expectativa da morte, pois lá talvez houvesse alguma esperança:

“Minha esperança é habitar o Xeol e preparar minha cama nas trevas Grito à cova: “Tu és meu pai!”;

Ao verme: “Tu és minha mãe e minha irmã!” Pois onde, onde então, está a minha esperança? Minha felicidade, quem a viu?” (Jó 17,13-15)

De maneira semelhante a Jó, no sentido de falta de expectativa, vivia o povoado de Areia Seca, no interior do Ceará. Carlos Mesters experimentou o convívio com esse povo pobre. Presenciou as limitações e sofrimentos daqueles esquecidos. Foi a partir dessa

135 experiência que surgiu a obra Seis dias nos porões da humanidade202, a qual descreve sua

experiência pastoral com aquela população. Com essa obra, o autor mostra o sofrimento de pessoas, que, como Jó, não tinham mais expectativas. Mostra a vida de pessoas que vivem sem esperança de um futuro melhor, porque não há futuro.

O relato do frei Carlos não é um protesto como em Jó. É apenas uma advertência, para que alguém ou alguns se mobilizem e ajam. É um bom material para exemplificar o sofrimento como causa natural de pobreza. Mostra a vida do pobre que sempre foi pobre e dificilmente sairá dessa condição.

Em suas anotações sobre o primeiro dia de viagem, frei Carlos descreveu uma beleza “seca e triste”, “empoeirada e morta” da paisagem semelhante às pessoas que ele via naquele lugar. Ao chegar ao povoado de Capim Seco, chamou atenção de toda comunidade. Afinal de contas era um padre de verdade que chegara à cidade. Frei Carlos sentiu-se em uma vitrine. Por todo o tempo era observado. Provavelmente, seus costumes, seu jeito era diferente da maneira de viver daquele povo e isso lhes causava estranheza. Sem contar o fato de a cidade ter a presença de uma autoridade como um padre. O representante de Deus estava naquela terra.

Em Areia Seca não foi diferente. Em todo o tempo que frei Carlos ficou por lá esteve acompanhado e foi observado como se estivesse em uma vitrine. Com o passar dos dias, aquelas constantes observações não lhe trouxeram mais incômodo, pois adaptou-se. Assim como o povo se adaptara àquele tipo de vida.

As pessoas de Areia Seca não tinham privacidade. A não ser na hora de dormir em seus próprios quartos. Um participava da vida do outro. Lembravam as tribos em Israel. A comunidade era uma grande família. Viviam em conjunto e isso era o que tornava a vida possível em um lugar como aquele. Um aspecto positivo dessa carência de privacidade é que, pelo menos, havia solidariedade entre eles.

Além de frei Carlos não encontrar privacidade para uma reflexão ou oração, não havia ordem entre o povo. Em uma reunião, por exemplo, homens e mulheres falavam ao mesmo

tempo. Crianças gritavam e corriam no meio da palestra. Tudo muito bagunçado. Porém, quando o povo reunia-se em casas para a roda de conversa havia ordem. As crianças tinham limites. Cada um esperava sua vez de falar. Havia respeito. Havia lógica, que só podia ser compreendida pelos de dento. A lógica de Areia Seca era desconhecida para os de fora. Por isso que frei Carlos afirma que a lógica do dominador oprime, marginaliza e escraviza.203

Frei Carlos percebeu que no caos que ele enxergava, havia ordem. Ele precisou estar dentro para entender essa ordem, que foi criada a partir da necessidade de sobreviver com quase nada. O povo mesmo na sua ignorância possuía sabedoria. Sabedoria para criar filhos. Sabedoria para tratar doentes. Sabedoria para sobreviver. Areia Seca tinha sua lógica, lógica que existia apenas em Areia Seca.

Frei Carlos preocupava-se com a maneira de atingir o povo. Sabia que as palavras não os alcançariam. O povo mostrava-se educado, fingia que entendia o que o padre dizia. Mas, na verdade, as palavras do padre não se encaixavam naquela realidade. Fazia m parte de outro padrão de vida. O padre percebia isso porque nada mudava na vida, nem no comportamento do povo. Eram pessoas que pertenciam ao século XX, mas viviam com hábitos do século passado. Estavam perdidos no tempo. Não conheciam nada do mundo. O mundo deles resumia-se em Areia Seca.

“As pessoas vivem perdidas, sem noção de tempo (história) e sem noção de espaço, sem lugar definido neste mundo de Deus, sem identidade, sem possibilidades, sem futuro, soltos, sem apoio. Encontram a sua segurança no apadrinhamento que alarga os laços de família, e na religião que traz para elas o Padre”.204

Areia Seca era outro mundo. As pessoas tinham outros valores, outra cultura. Não conheciam o progresso. Frei Carlos pensava em uma maneira de mostrar ao povo a opressão em que viviam. Era difícil! Poucos entenderiam. Para eles, vida era assim e sempre seria assim. Eles não compreendiam que a escassez em que viviam era de causa política e podia ser resolvida se o povo de Areia Seca acreditasse na produção de renda e não na distribuição. Mas, como fazer o povo ignorante entender uma coisa dessas? Como fazer o povo entender que o sofrimento em que viviam não era culpa deles, mas do governo?

203 Carlos Mesters, Seis dias nos porões da humanidade, p. 109. 204 Carlos Mesters, Seis dias nos porões da humanidade, p. 27.

137 A função do Estado é servir ao povo e valorizá-lo. É fazer pela sociedade aquilo que ela sozinha não consegue realizar. É tornar a realidade equilibrada e não retirar do cidadão sua autonomia. Areia Seca, portanto, era uma cidade abandonada pelo Estado. Seus cidadãos não tinham autonomia, nem eram valorizados como indivíduos. A vida humana não valia nada. Viviam isolados da civilização. Areia Seca era uma fonte de produção de escravos para alimentar o sistema capitalista. Os que conseguiam perceber o caos em que viviam, decidiam migrar para o sul em busca de melhores condições de vida. Porém, no sul, o que eles seriam? O que fariam? A resposta é uma só. Seriam escravos! Aglutinar-se-iam em favelas ou nas ruas das cidades. A condição de escravo ainda era uma boa conquista. Pobres dos que chegavam à cidade e nem escravos conseguiam ser!

No passado o pobre era explorado. Hoje ser explorado é um privilégio. A exclusão é crescente e afeta cerca de 40% a 60% da população mundial.205

O povoado de Areia Seca vivia como se estivesse em um porão, ou seja, isolado do mundo e no escuro do conhecimento. As pessoas sobreviviam com o mínimo. Pouca comida, pouca roupa, pouca educação, pouca saúde, pouca higiene. Eram desprovidos de tudo. Viviam porque estavam vivos. A vida, porém, era sem objetivos e sem expectativas. Ali nada mudaria.

“Um porão é escuro. Nele só se acende a luz quando o dono da casa aí desce para apanhar alguma coisa. Um porão não tem muita ordem. Lá são encostadas as coisas, aguardando o uso que delas venha fazer o dono da casa. Costuma ter poeira. A limpeza só se faz uma vez ou outra. Lá dentro, as coisas se conservam sem lógica e, muitas vezes, sem destino.”206

As crianças eram comparadas a “bichinhos” pelo povo da cidade. Não pensavam. Tinham permissão para participar de tudo que acontecia na vida, das graças e desgraças. As crianças não eram poupadas de nada. Teriam que criar resistência e encarar a dureza do cotidiano. Andavam nuas. Brincavam e viviam entre os animais. Aliás, eram animais. Frei Carlos percebeu que mesmo com todas as limitações as crianças eram felizes. Tinham a liberdade que toda criança necessita. Diferente das crianças dos ricos, que são treinadas desde

205 Pablo Richard, A força ética e espiritual da teologia da libertação – no contexto atual da globalização, São

Paulo, Paulinas, 2003, p.88.

cedo à competitividade, ao ter e produzir. É uma criança oprimida dentro do sistema de opressão.

Crianças nasciam descontroladamente e o Frei Carlos Mesters se indagava sobre o futuro daqueles que nascia m naquele lugar. Eram tantas crianças. Vinham ao inferno sem pedir, mas não sabiam que estava m lá. Por toda a vida só conheciam aquele lugar. Um ou outro menino, ao crescer, atrevia-se a sair e ganhar o mundo. Mas era um ou outro. Muito raro. Na verdade, ele constatou que produzir criança foi uma forma encontrada pelo povo de produzir esperança.

“A fertilidade dos pobres preocupa os povos desenvolvidos, os incomoda. Entre os desenvolvidos não nascem tantas crianças. As crianças aí recebem proteção científica. Mas, apesar de toda a proteção recebida de médicos e psicólogos, creio que o ambiente da cidade não oferece à criança o direito de viver que ela merece. O ambiente de liberdade na cidade não é tão grande como no sertão, apesar de toda a pobreza e morte. A vida da cidade grande coíbe e condiciona muito mais.”207

O sofrimento em Areia Seca era tanto de dava aversão de ver. Frei Carlos Mesters presenciou-os todos de perto. Conheceu uma linda mulher de olho vazado. O homem que vivia com uma bala de carabina no corpo. O rapaz como lábio leporino. Maria do Socorro, uma recém-nascida que morreu por desidratação e outras pessoas e casos terríveis. O povo mesmo não se dava conta do quanto era oprimido e do quanto sofria.

A presença do padre na cidade não mudou muita coisa. O povoado de Areia Seca iria continuar vivendo no século passado. Isolado do mundo. As crianças nasceriam aos montes e também morreriam na mesma proporção. As moças envelheceriam na casa. Se se cassassem atingiriam um status superior. As famílias continuariam exportando escravos para a cidade. E a vida continuaria sem futuro, sem destino e sem razão.

Entretanto, toda a experiência do frei serviu para mostrar o rosto de Cristo por intermédio dos pobres. Jesus, mesmo no momento de sua morte, foi solidário com os pobres de sua sociedade e esta solidariedade se estende aos pobres e injustiçados de todos os tempos, que mesmo sofrendo a opressão não se deixaram contaminar pelos mecanismos dessa opressão. Isto é, mesmo sofrendo a violência do sistema, não reagiram com violência; mas

139 com abandono, porque creram que o dom de Deus é a vida. Porque acreditaram na recuperação do outro.