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Perceber-se que as lógicas de produção dos meios livres e rádios comunitárias zapatistas analisadas, a partir dos dados colhidos no campo e da análise histórico-estrutural, se caracterizam como resistências, compreendidas, segundo Martín-Barbero (2004), como experiências de reelaboração dos meios pelos oprimidos. A primeira resistência está nas táticas de existir mesmo em situações de perseguição pela falta de autorização do poder estatal, como buscar abrigo em locais protegidos, escondidos ou mudar constantemente de endereço. São saídas encontradas para conviver com estas condições. Em seguida, há uma resistência contra as ameaças, seja da guerrilha eletrônica de interferir nos canais seja do ataque, da espionagem e da sabotagem. Para isso, as emissoras optam por um relativo isolamento dos grupos e pessoas desconhecidas. Ao mesmo tempo que as rádios zapatistas se fecham por questões de segurança, seu conteúdo busca irradiar uma mensagem de inclusão da diversidade, como será analisado em seguida.

Outra resistência localiza-se na contraposição à lógica de mercado predominante baseada na audiência e na venda publicitária que permeia não só os espaços exclusivos, mas o próprio conteúdo editorial dos meios massivos. Ao invés de articulações com os grupos econômicos e políticos para o desenvolvimento das mesmas, as rádios zapatistas analisadas buscam a solidariedade para sobreviver. Além do trabalho voluntário para manter-se, as rádios contam com o apoio de pessoas e coletivos, como o Centro de Mídia Independente (CMI), o Koman I’lel e o Promedios. Este último conseguiu a doação do transmissor da Frecuencia Libre por ativistas ingleses, que mandaram as peças do mesmo separadas, para evitar apreensão, através de um navio mercante da Europa ao México. Ainda assim, as emissoras sofrem com problemas técnicos e financeiros. A Radio Rebelde, por exemplo, passou quase dois meses de 2014 fora do ar por provável pane em seu transmissor. A Frecuencia Libre já chegou a ficar seis meses fora do ar pelo mesmo motivo em 2003 e, pelo menos, mais outras cinco vezes ao longo de sua história. A emissora nem sempre consegue iniciar sua transmissão às 9 horas porque o voluntário responsável de ligar os equipamentos, por vezes, está impossibilitado dado que necessita realizar no horário outras atividades remuneradas para seu sustento. Atrasos, faltas e problemas técnicos (como dificuldades em veicular

uma música ou o som do telefone ou microfones) são comuns na programação de ambas as emissoras. Damaso explica a situação pelas limitações de fazer uma rádio livre sem apoio de comerciais.

Não fazemos comerciais. Não vendemos programas, não fazemos negócio. Então os companheiros que fazem seus programas de seu próprio bolso (...) quando se quebra algum equipamento passamos dois a três meses sem transmitir porque nos custa juntar do salário que temos, pois nos três meses cada um contribui com o que tem (...) ou fazemos festas ou rifa para juntar o dinheiro que nosso salário não alcança. Então tudo o que se falta tiramos de nossos bolsos. Então as pessoas que fazem a 99.1 a fazem por amor. Por amor às pessoas, por amor do que gostam de fazer.62

Além das dificuldades econômicas, Noé aponta dois motivos para estas características das emissoras: a ruptura com a lógica de mercado e a sobrecarga de militância dos membros.

Não queremos ser igual rádio comercial, não queremos lucrar com a rádio. Não queremos ter o mesmo formato. E outro, eu creio também que é acidental. (...) é uma combinação de não ter tanta gente que produza.(...) Todos estamos a maior parte de tempo em outros espaços. Estou a maior parte de tempo em Promedios, por exemplo, e assim cada um de nós está em diferentes em lugares.63

Por sua vez, Guadalupe Cardenas critica os atrasos e faltas.

Creio que isso não está bem. Eu creio que é algo que temos que corrigir. Mas assim está funcionando e tem sido assim sempre. (...) Eu creio que devemos ter respeito com a audiência porque as pessoas se queixam. As pessoas que nos escutam quando nos encontram dizem: “o que passou com a Frecuencia Libre?”. Já com um tom de brincadeira, que não gosto, dizem “tu estás na rádio que não transmite, não é?”. Isso para mim é muito forte, muito preocupante.64

Para Gabriel García, mesmo as dificuldades sendo compreensíveis, é necessário que os produtores da emissora amadureçam para seu compromisso social na estação.

Então, outra questão é que às vezes no interior do coletivo não se dimensiona a importância de ter uma rádio. Ainda não nos tem ficado suficientemente claro que temos um meio em nossas mão que, ademais não é nosso. Estamos usando o espectro elétrico que é um bem comum. E se vem ai posso colocar a música que gosto e dizer as coisas que quero, eu tenho de pensar nas questões: eu tenho que dar uma retribuição por esse uso do espaço radioelectrico que não é nosso. Eu digo que é algo temos tentado trabalhar, refletir, é algo que tentamos fazer como formas, normas, regras de estar na

62

Entrevista com Damaso Ramirez, concedida no dia 8 de agosto de 2015 em San Cristóbal de Las Casas. Tradução minha.

63 Entrevista com Noé, concedida no dia 30 de julho de 2015 em San Cristóbal de Las Casas, Chiapas,

México. Tradução minha.

64 Entrevista com Guadalupe Cardenas, concedida no dia 12 de agosto de 2015 em San Cristóbal de Las

rádio, mas isso é uma das coisas que têm de ficar bem claras. Estamos usando um bem comum. E esse bem comum há de usa-lo de quem é e quem lhe dá esse bem comum que é a sociedade.65

Esta situação confirma que, como defende Martín-Barbero, as resistências são como terrenos de lutas e, por isso, de instabilidades sociais, algo presente na organização das emissoras e explícito nas ideias dos produtores da emissora.

Neste capítulo, esta pesquisa apresentou aspectos das práticas de resistência das emissoras, partindo da definição de suas lógicas e da história das rádios livres. Em seguida, os conceitos de meios livres e rádios comunitárias foram explicados e diferenciados. O capítulo resgatou ainda a história da Frecuencia Libre e sua atual configuração organizativa e mostrou as posições do movimento zapatista sobre os meios de comunicação, contexto em que se insere a Radio Rebelde. Por fim, discutiu as resistências que serão desenvolvidas nos capítulos seguintes a partir do estudo das mensagens através da relação entre as matrizes culturais e os endereçamentos de suas programações.

65 Entrevista de Gabriel Garcia, concedida em 19 de agosto de 2015 em San Cristóbal de Las Casas.

3 MATRIZES E RESISTÊNCIAS NOS ENDEREÇAMENTOS DAS

RÁDIOS ZAPATISTAS

Além das disputas nas lógicas de resistência da produção das emissoras, há distintas matrizes culturais na programação da Radio Rebelde e da Frecuencia Libre. Observei esta situação a partir do percurso de aproximação e escuta das emissoras. Este capítulo apresenta a definição destas matrizes e as localizaremos nos endereçamentos dos programas da Frecuencia Libre. As entrevistas com os apresentadores serviram para contextualizar e esclarecer os dados colhidos e analisados. Dos 15 programas semanais, não consegui nas três semanas de gravação (20 de julho a 17 de agosto de 2015) registrar nenhuma vez os programas "Mujeres de Ojos Grandes" e "Hijas de Lilh" sobre o feminismo, "Fueras máscaras" sobre o machismo, "Planeta Musical Sur" sobre músicas da América do Sul (produzido na Argentina), "Panorama Musical" sobre músicas variadas e "Karmantra" sobre rock'n'roll que, segundo Leonardo Toledo, provavelmente seus apresentadores deveriam estar de férias. Dos nove registrados, não logrei entrevistar os produtores ou apresentadores apenas do "Hip Hop" e "Hablemos Chiapas". As características de todos os programas gravados serão adiante descritas.

Figura 1 – Grade da programação da Rádio Frecuencia Libre em junho de 2015.

Apesar de atrasos, problemas técnicos, precariedades materiais e faltas, a lógica de resistência permite abrir espaços para diversos atores sociais desde ONGs a coletivos, incluindo cidadãos comuns, na Frecuencia Libre. Em julho de 2014, a emissora possuía 15 coletivos, associações, ONGs ou pessoas diferentes apresentando um programa. Há uma diversidade, mas sem fortes dissensos políticos. Os programas sobre arte e cultura, como “En el Camino nos Encontramos” e “Hip hop” não apresentam explicitamente posições políticas. Já “Hablemos Chiapas” e “Espacios de Esperanza” tratam de

política, sem ser aderentes ao zapatismo. Outros, como o “Sinestesia” y “Debate Cultural” que, apesar de críticos aos governos e da política eleitoral não se posicionam claramente como aderentes ao zapatismo. Ao contrário “Objetos Prohibidos” e “La Hora Sexta”, são claramente ligados ao movimento. Mesmo com essa diversidade, nenhum possui uma postura de oposição ou, ao menos, crítica ao zapatismo.

A rádio tem 26 horas apresentadas ao vivo das 70 horas transmitidas (9h às 22h de segunda a domingo), concentrando-se principalmente no sábado e depois das 17h nos dias úteis da semana, horários considerados no rádio comercial como menos nobres, pois o público radiofônico, segundo décadas de pesquisa de audiência, se concentra principalmente nas manhãs. O restante dos horários é preenchido pela difusão de músicas variadas, podendo ser alternadas por campanhas educativas ou de mobilização, promovidas por movimentos sociais. Segundo Leonardo Toledo, não há uma política editorial para as músicas e as campanhas executadas. “São canções que os movimentos e colaboradores trazem e colocamos para tocar aleatoriamente”66. Geralmente as

músicas tocadas são rock britânico e estadunidense da década de 70, jazz, músicas clássicas e tradicionais latinas, como francesas, portuguesas, argentinas e brasileiras, inclusive alguns clássicos da Música Popular Brasileira (MPB). No período observado, não consegui registrar nenhuma campanha educativa.