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2 REPRESENTAÇÕES DE CULTURA NOS LIVROS DE PLE: EM BUSCA DE

2.2 MANIFESTAÇÕES POPULARES: ATRAVESSAMENTO DO DISCURSO

2.2.1 L ENDAS BRASILEIRAS : ESTEREÓTIPOS DE “ BRASILIDADE ”

Dois dos LDs examinados, a saber, BV_P e NAB_P, apresentam diversas lendas. Em BV_P, elas são identificadas, sobretudo, como “folclore”. Atente-se para a adjetivação empregada na atividade a seguir:

Na instrução da atividade que apresenta o Boi-Bumbá, cujo objetivo linguístico é praticar algumas conjunções, bem como no último parágrafo, observamos o uso de termos que evocam riqueza e opulência (grifos nossos): “rico folclore brasileiro” e “[história] enriquecida por ritmos, cores e muita gente”.

No texto que se segue, intitulado O Folclore Brasileiro [BV_P] (texto completo no ANEXO 1), particularmente nos dois primeiros parágrafos, há formulações similares (grifos nossos): “a tradição é sua escola e maior riqueza” e “grandeza do folclore brasileiro”.

E2 [BV_P]

Observa-se, a partir dos termos destacados nos dois excertos, uma valorização da tradição (festas religiosas), das lendas (Boi-Bumbá, saci-pererê), da própria figura do caboclo – descrito como “responsável pela grandeza do folclore brasileiro” – e do folclore como um todo, cuja “riqueza” serve de fonte para estudiosos e escritores e gera nada menos do que “obras-primas”, como o Dicionário do folclore de Câmara Cascudo. Relacionar as lendas a obras-primas as posiciona em uma esfera culturalmente elevada.

A validação do enaltecimento do “folclore brasileiro”, no entanto, reside também no fato de terem sido escolhidos textos classificados como “autênticos”17 (amplamente utilizados

em LDs a partir da Abordagem Comunicativa), os quais, via de regra, gozam de mais credibilidade e maior força argumentativa do que um texto produzido exclusivamente para fins didáticos. O texto O Folclore Brasileiro foi publicado na Revista Kalunga18. O excerto sobre o

Boi-Bumbá, retirado da obra O Grande Livro do Folclore, de Carlos Felipe Horta, considerado um dos maiores folcloristas do Brasil, tem seu conteúdo legitimado, além de pela sua “autenticidade”, pelo grau de especialidade de seu autor. Os dois excertos, por sua vez, encontram-se dentro de um LD, cujo poder de legitimação do saber, por si só, já é bastante significativo, conforme discutimos no capítulo 1 (PASSOS, 1999; GRIGOLETTO, 1999).

Voltemo-nos agora à análise mais detalhada das lendas encontradas em BV_P e NAB_P. Considerando que as lendas, muitas vezes, associam fatos históricos a fatos irreais ou fantásticos e sabendo que elas são repassadas de geração a geração, sobrevivendo assim na memória de um povo, podemos afirmar haver nelas elementos de identificação cultural indicativos da eficácia desse imaginário criado na “relação do sujeito com aquilo que o representa” (PÊCHEUX, [1975] 1988, p. 125). As lendas e seus personagens operam atitudes, valores e aspectos fundamentalmente associados à cultura que as origina e às características de seu povo, o qual, em algum grau, tende a se reconhecer nessas narrativas. Daí decorre a relevância de examinarmos a natureza das lendas apresentadas nos LDs e o tipo de imaginário por elas construído.

Em BV_P, encontramos as seguintes lendas: saci-pererê, cuca, mula-sem-cabeça, negrinho do pastoreio, generoso, cão-da-meia-noite, vitória-régia, boto, Iara (mãe d’água), Rio Amazonas, curupira e lobisomem, as quais concentram-se, principalmente, no texto O Folclore

Brasileiro (ANEXO 1), já mencionado, e na página seguinte a ele, no texto intitulado Preferência Nacional19.

17 O termo “autêntico” no ensino-aprendizagem de línguas, mais especificamente no que tange aos materiais didáticos, possui diferentes conceitualizações, algumas delas divergentes, conforme esclarece ANDRADE E SILVA (2017). Com base na tipologia proposta pela autora, consideramos “autênticos” para fins desta pesquisa “textos criados para um contexto de comunicação entre falantes externo ao ensino” (op. cit., p.24), adaptados ou não, isto é, com ou sem reduções, alterações lexicais e alterações gramaticais, correspondente aos dois primeiros tipos propostos por Andrade e Silva (op. cit.).

18 Revista mensal editada pela rede Kalunga de papelaria e materias para escritório 19 Retirado da Revista Kalunga

E320 [BV_P]

As quatro lendas apresentadas em NAB_P, conforme a imagem que se segue, também figuram em BV_P. São elas: curupira, lobisomem, saci-pererê e Iara.

E4 [NAB_P]

Podemos identificar nas lendas21 citadas três elementos temáticos recorrentes: medo,

travessura e amor-sedução. Fazem parte das lendas que exploram o medo: saci-pererê22 (menino

negro de uma perna só), cuca (velha assustadora que possui cabeça de jacaré), mula-sem-cabeça (mula que no lugar da cabeça apresenta uma tocha de fogo), cão-da-meia-noite23 (enorme cão

que fareja mulheres adúlteras), curupira24 (menino travesso dos pés virados para trás que, por

21 Para conhecer os enredos das lendas, ler o Anexo 1.

22 O personagem saci-pererê trabalha tanto aspectos ligados ao medo quanto a travessuras.

23 O personagem cão-da-meia-noite trabalha tanto aspectos ligados ao medo quanto a amor-sedução. 24 O personagem curupira trabalha tanto aspectos ligados ao medo quanto a travessuras.

meio da criação de imagens ilusórias e assutadoras, protege a flora e a fauna) e lobisomem. Saci-pererê e generoso (índio convertido ao catolicismo) representam o elemento travessura. Iara (bela sereia que atrai os homens ao fundo do rio causando sua morte) e o boto (boto que se transforma em belo homem e seduz moças levando-as ao rio e as engravidando) estão diretamente relacionados à sedução, ao passo que as estórias sobre o surgimento da flor vitória- régia (fruto da paixão de uma índia pela Lua) e do Rio Amazonas (fruto da tristeza da Lua por não poder realizar seu amor pelo Sol) aludem ao amor. De todas as lendas encontradas nos dois LDs (BV_P e NAB_P), apenas o negrinho do pastoreio, vinculado a um aspecto religioso (Virgem Maria), não apresenta nenhum dos três elementos mencionados.

Parece-nos significativa a presença de narrativas de amor-sedução, medo e travessura nos LDs, uma vez que no imaginário perpetrado por diferentes discursos, por exemplo, da mídia e do turismo, tais características rotineiramente aparecem associadas a comportamentos típicos do brasileiro ou a uma aura de exotismo e mistério, frequentemente atribuída à cultura brasileira. Interessante notar a esse respeito que, segundo o texto O Folclore Brasileiro de BV_P (ANEXO 1), “o lado mais conhecido do nosso folclore é o que trata de festa e histórias assustadoras de animais estranhos”. O texto Preferência Nacional de BV_P (E3) justamente reforça essa ideia, afirmando estar a cuca, ao lado de saci-pererê25, no topo da lista de

personagens folclóricos mais populares no Brasil, além de citar curupira, mula-sem-cabeça e lobisomem, todos associados, em algum grau, ao fantástico e ao atemorizante.

O fato de as lendas mencionadas estarem presentes nos LDs, no lugar de tantas outras possíveis, caracterizando assim um apagamento de outras narrativas, revela, a nosso ver, um viés etnocêntrico, tão afeito ao exótico e ao misterioso, característico da época dos Grandes Descobrimentos (século XV a início do século XVII), e que se estendeu até pelo menos o século XIX, época do surgimento da Antropologia. Sabemos, todavia, que, mesmo a Antropologia tendo se desenvolvido como ciência, abandonando, por exemplo, a teoria evolucionista, conceitos como determinismo biológico e determinismo geográfico perduram na memória discursiva, revelando-se em dizeres que fixam à cultura brasileira certas características.

25 Welberg Vinicius Gomes Bonifácio, em seu artigo de 2017, intitulado Mitos e Identidades Brasileiras: o Saci

no cotidiano escolar, traça um interessante histórico da representação do saci como símbolo da identidade nacional

por meio de análise das obras de Monteiro Lobato. Bonifácio enfatiza a questão étnico-racial associada à figura do saci e mostra que, ao mesmo tempo em que objetivou valorizar e resgatar a cultura brasileira, Lobato inferiorizou a imagem do negro, ainda que tenha posteriormente suavizado o personagem, minimizando seu caráter assustador a fim de torná-lo mais palatável e apropriado ao fortalecimento de uma educação nacionalista (BONIFÁCIO, 2017).

Conforme ilustra Laraia (1997, p. 17), “muita gente ainda acredita [...] que os brasileiros herdaram a preguiça dos negros, a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses”.

De forma análoga, o tipo de representação imaginária da cultura brasileira que depreendemos das lendas encontradas nos LDs realça enunciados que podem nos remeter: à sedução e à disponibilidade sexual dos brasileiros (boto), marcadamente da mulher brasileira (Iara); a seres aterrorizantes (lobisomem, mula-sem-cabeça, etc.), como as anacondas gigantes retratadas em filmes de Hollywood e outros potenciais perigos; ao jeito travesso e malandro, por vezes revestido de alegria, correntemente atribuído aos brasileiros (saci-pererê, curupira e generoso); e ao misticismo comumente visto como exótico (neguinho do pastoreio), por exemplo, das religiões de matriz africana.

Essas imagens, quando constantemente reiteradas – não apenas por meio das lendas, mas em conjunto com outras relacionadas a festas e misticismo – e na ausência de reflexões que as relativizem e problematizem, como é o caso dos LDs examinados, podem criar um imaginário reducionista e estereotipado sobre a cultura brasileira.

Não estamos negando, com essa asserção, que as lendas, assim como os mitos, possam expressar características de fato representativas-construtivas de uma “brasilidade”. Compreendemos o papel importante das narrativas orais na sobrevivência de tradições e no sentimento de pertença a uma cultura como parte da “narrativa da nação”, assim definida por Hall ([1992] 2006). Segundo o autor, a cultura popular fornece imagens e símbolos que representam experiências partilhadas pelos membros daquela comunidade, e que constroem o sentido de nação e participam da formação identitária dos sujeitos, os quais se reconhecem nessas narrativas. Porém, as lendas presentes nesses LDs destinados a estrangeiros, por suas propriedades e pelo efeito de naturalização dos sentidos criados, fixam à representação da cultura brasileira imagens estereotipadas de sensualidade, malandragem e exotismo. Bhabha ([1994] 2007, p. 117) esclarece que “o estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade”, mas porque apresenta uma forma fixa de representação, cuja repetição produz um efeito de verdade. O poder da representação, que tem o estereótipo como elemento chave, precisa ser entendido para além de suas formas econômica e de coerção física. Trata-se de uma manutenção da ordem simbólica exercida por aqueles que têm o poder de representar alguém (HALL, 1997).

As discussões levantadas sobre o estereótipo indicam ser ele uma fonte potencial de discriminação e causa de problemas sociais – principalmente em virtude dos movimentos migratórios recentes e da atual configuração multicultural de vários países –, como podemos observar em documentos oficiais, tal como, o Guide for the development and implementation

of curricula for plurilingual and intercultural education (BEACCO et al., 2015) da Unidade de

Políticas Linguísticas do Conselho da Europa. O guia defende que todas as disciplinas escolares devem, desde o ensino fundamental, desenvolver nos aprendizes atitudes críticas de apreço pela alteridade, a fim de minimizar ações etnocêntricas e egocêntricas, muitas vezes estimuladas pelos estereótipos engendrados pelas representações sociais dominantes.

2.2.2 NAS TRINCHEIRAS DA ALEGRIA, O QUE EXPLODIA ERA O AMOR: A ALEGRIA BRASILEIRA