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2 REPRESENTAÇÕES DE CULTURA NOS LIVROS DE PLE: EM BUSCA DE

2.1 OS DIZERES DOS AUTORES: LÍNGUA “E TAMBÉM” CULTURA

Em estudo com falantes bilíngues de espanhol-sueco, os autores demonstraram como a língua que falamos está ligada a sentidos tão básicos quanto as emoções e as percepções visual e de tempo.

Para ilustrar, citamos os pronomes pessoais de segunda pessoa em língua russa (Ты e

Вы), cujo uso varia conforme a idade, o grau de intimidade ou o nível de hierarquia do

interlocutor, e que indicam a percepção que os falantes de russo têm de si e do outro – característica bastante semelhante ao uso de Tu e Vous na língua francesa. O pronome singular

Ты é usado quando o falante possui certo grau de intimidade com o interlocutor, ou no caso de

o falante ser hierarquicamente superior a ele. O pronome Вы, por sua vez, pode se referir ao plural “vocês”; no entanto, se usado para se referir a uma única pessoa, indica respeito ou falta de intimidade. Tal característica não ocorre na língua inglesa, por exemplo, em que o pronome de segunda pessoa singular You pode ser usado indistintamente para se dirigir a qualquer interlocutor. Essa característica do inglês provavelmente sugere haver nas culturas falantes desse idioma entendimentos de autoridade, intimidade, distanciamento e relacionamento diversos daqueles existentes na cultura russa.

Valendo-nos desses pressupostos e daqueles elencados na introdução desta dissertação, passamos à análise dos três LDs de PLE selecionados para compor o corpus.

2.1 OS DIZERES DOS AUTORES: LÍNGUA “E TAMBÉM” CULTURA

Inicialmente, voltamo-nos às apresentações que fazem parte dos três LDs, nas quais encontramos formulações representativas das concepções de cultura que orientam seus conteúdos.

Em FB_P, inicialmente dá-se destaque à parte estrutural-gramatical do LD, em que se afirma: “A gramática é, para nós, um instrumento que ajuda o aluno a se comunicar”. O “verbo- ação” (função) é então apresentado como eixo gramatical do material. Essas formulações deixam clara a visão funcional de língua que permeia o material. “A cultura” é mencionada no final da apresentação como um ponto à parte, adicional (grifo nosso): “Outro ponto a destacar

é a apresentação da cultura brasileira em situações de vida cotidiana de modo a evitar os aborrecidos textos informativos”.

Destacamos o uso do artigo definido “a” (de+a), que posiciona “a cultura” como um “pré-construído” exterior à língua. Para melhor entendermos essa asserção, vale detalharmos brevemente tal conceito proposto por Henry ([1969] 1993) e retomado por Pêcheux em

Semântica e Discurso ([1975] 1988). O “pré-construído” é um elemento constitutivo do

interdiscurso e se refere às construções já pensadas anteriormente, de maneira independente, que irrompem no discurso que está sendo construído no enunciado (intradiscurso). São elementos da exterioridade (discursos produzidos por outros) que, a partir de relações de paráfrase, substituição e sinonímia, por exemplo, reinscrevem-se no discurso do sujeito. No trecho de FB_P mencionado, o sintagma “a cultura” aparece como um “já-dito”, cujo efeito de evidência de sentido – natural nos processos de assujeitamento e esquecimento – faz parecer que há um significado para cultura universalmente compartilhado. O uso do artigo definido “a”, além disso, cria tanto uma dicotomia entre cultura e língua quanto um efeito de sentido de homogeneidade cultural. Ademais, a priorização dos elementos gramaticais evidencia não ser a questão cultural o aspecto didático mais relevante do material.

Em BV_P, de forma semelhante, indica-se o referido LD para “você que quer aprender o nosso português falado como ele é, sem deixar de lado as necessárias referências à Gramática Normativa”. No material, descrito como “dinâmico e interativo cujo foco central é a COMUNICAÇÃO” (grifo do LD), em separado, informa-se (grifo nosso): “um pouco de história, cultura e sociedade brasileiras faz parte deste livro”. Nesse caso, como em FB_P, a cultura é representada como uma manifestação homogênea, porém separada não apenas da língua mas da história e da sociedade. Essa segmentação, a nosso ver, acaba por restringir a cultura a informações geográficas, manifestações populares e expressões artísticas.

Em NAB_P, de maneira análoga ao que ocorre nos dois livros já mencionados, a apresentação debruça-se primeiro sobre questões de língua e metodologia para, na parte final do texto, afirmar que o livro vai “muito além” das funções e estruturas e introduzir a apresentação do elemento cultural, a despeito de não se usar o termo “cultura”. Esclarece-se que (grifo nosso):

“Informações e considerações sobre o Brasil, sua gente e seus costumes permeiam todo o material, estimulando a reflexão intercultural. / Desse modo, ao mesmo tempo em que adquire instrumentos para a comunicação, em português, o aluno encontra, também, elementos que lhe permitem conhecer e compreender o Brasil e os brasileiros.”

Depreendemos dessa formulação dois aspectos concernentes à cultura: (1) se as informações sobre o país, seu povo e seus costumes estimulam a reflexão intercultural, cremos que isso se deva ao fato de serem esses os aspectos que formam a cultura brasileira; (2) O uso da conjunção “também” cria um efeito de sentido que introduz as características culturais como algo separado, acessório à língua, esta posta como o instrumento por si só responsável pela comunicação.

Infere-se, a partir dos excertos destacados nos três LDs, que a apresentação de aspectos referentes à cultura brasileira é essencial ao ensino da língua portuguesa a estrangeiros, embora a cultura, concebida de maneira bastante abrangente, seja vista como uma entidade inerentemente dissociada da língua. Infere-se, ainda, que a língua, cujo ensino figura como objetivo principal dos LDs, é compreendida como um conjunto de estruturas usadas para realizar ações e interagir com outros falantes, ou seja, um instrumento de comunicação, ao lado do qual aprende-se “também” a cultura do país.

Partimos, entretanto, do pressuposto de que a cultura está manifestada em todas práticas sociais de uso da linguagem verbal ou visual, por isso entendemos que qualquer materialidade linguística ou visual presente no corpus constitui-se em elemento apropriado para nossa análise, mesmo quando a atividade em foco descreve elementos tidos como “exclusivamente linguísticos”, tais como, sintaxe, morfologia e fonética. Qualquer imagem (visual ou discursiva) criada nos LDs contribui para a construção de um imaginário acerca do Brasil, imaginário que se constitui, de forma geral, naquilo que os materiais consideram ser “a cultura” essencial ao ensino de PLE. Dessa forma, além de atentarmos para representações na forma de costumes e manifestações populares, por exemplo, observamos também o imaginário construído acerca do espaço físico-geográfico brasileiro.

Identificamos no corpus, por conseguinte, diversas representações de cultura, porém, para efeitos analíticos, concentrar-nos-emos em algumas que não apenas pela repetição, mas também pelo espaço dedicado a elas nos LDs, parecem-nos relevantes a esta discussão.

A fim de limitarmos o recorte de análise, deixamos de considerar algumas representações, não menos representativas, as quais identificam a cultura com, por exemplo, culinária, personalidades do mundo dos esportes, história política e econômica, problemas sociais (corrupção, greves), futebol, relação com o trabalho, música, literatura e hábitos televisivos. Importante destacar, a esse respeito, que nossa escolha por elementos de cultura visível, como denomina Erickson ([1989] 2010), deve-se ao fato de haver, nos LDs analisados, um número reduzido de atividades ressaltando aspectos de cultura de outra natureza, tais como: maneiras de agir, pensar e enxergar a realidade.

Nosso objeto de análise figurou-se em torno dos textos e figuras que representam a cultura brasileira na forma de manifestações populares e aspectos geográficos. Num segundo momento, enfocamos as representações da língua portuguesa para estabelecer relação com a visão de cultura veiculada pelos LDs e para pensar tanto os processos identitários que nela se manifestam quanto aqueles mobilizados na interação de aprendizes e professores com o material didático.

Lembramos, ainda, que exploramos os LDs em sua totalidade, não nos restringindo às seções explicitamente identificadas como “culturais”, como os itens Gente e Cultura Brasileira do livro BV_P; afinal, como reitera Coracini (2016, p. 44) a partir de Lacan, não existe “língua sem a emergência da cultura e vice-versa”.

2.2 MANIFESTAÇÕES POPULARES: ATRAVESSAMENTO DO DISCURSO