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1. Dos narradores que são escritores e do ato de escrever nos romances

2.2 Labirinto de paredes invisíveis

Em Reprodução temos um labirinto com paredes invisíveis, mas não por isso menos reais, pois o narrador não tem a consciência de onde se move e tampouco para onde vai. A China, local para onde leva seu desejo, é apenas um ponto distante do local onde se encontra. Não domina a língua e não entende a cultura chinesa.

O fato de não ter consciência de ser um narrador, pois não ambiciona escrever algo e tampouco recuperar um evento vivido ou a memória de outro personagem, faz com que se torne mais livre para fazer as afirmações que faz, movendo-se com mais desenvoltura. Ao encontrar um obstáculo ele não se detém, simplesmente segue adiante, sem dar conta das contradições e dificuldades do traçado, com isso consegue passar adiante uma narrativa para o leitor que o observa do lado de fora do labirinto.

Recuperando o que foi dito no capítulo anterior sobre o bárbaro benjaminiano e também os critérios de oralidade que segundo Benjamin tornam um narrador bem mais autêntico, pensamos com isso justificar o que para nós é um ponto de ruptura na obra de Bernardo Carvalho.

Estamos diante de um narrador de novo tipo, qualitativamente diferente do diplomata em Mongólia e do publicitário em O sol se põe em São Paulo. Há em Reprodução prevalência da narrativa oral sobre a escrita. Em parte isso se deve ao fator tempo para a elaboração da narrativa escrita sob a forma de um romance – escrever -, para rememorar os acontecimentos – lembrar -, para juntar elementos de outros gêneros literários e compor um relato, podendo nesse processo de escolha deixar alguns desses elementos de fora - esquecer -. O estudante de chinês não possui e também não almeja possuir esse tempo.

Há presente em Reprodução outro deslocamento que obrigatoriamente tem de ser levado em conta. O estudante de chinês não está montando um quebra-cabeça como em Mongólia e nem tampouco revelando processos e mecanismos de construção de um romance como em O sol se põe em São

Paulo, por isso, em relação ao que está contando sob a forma de opiniões

aparentemente pessoais, está latente uma crítica à sociedade contemporânea cujo pensamento hegemônico conduz para a emissão, recepção e difusão dessas opiniões de forma acrítica e rápida, sem o devido tempo para uma reflexão.

Um dos aspectos da crítica social nos textos de Bernardo Carvalho pode ser encontrado quando aborda a temática da violência. Este tema, embora não seja central e sirva mais como ambientação da conjuntura em que se passam os acontecimentos, está presente em Mongólia, sendo inclusive o fator que desencadeia a atividade de escrita do narrador, quando a partir da morte violenta do Ocidental ele se dispõe a narrar. Em O sol se põe em São Paulo também aparece a violência, o primeiro encontro de Setsuko e do narrador para ouvir sua história se dá quando a cidade e o estado de São Paulo estão convulsionados pelos ataques orquestrados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).

Em Reprodução a questão da violência, aqui entendida como o discurso de ódio expresso pelo narrador, não é apenas pano de fundo ou ambientação. No momento em que esse narrador emite suas opiniões que agridem outros grupos sociais ou demonstra pouco apreço aos valores democráticos, a violência se faz sentir ao longo de todo romance, tornando-se assim muito mais presente que nas outras obras analisadas. Isso é o que permite colocar em perspectiva toda a estrutura do social - economia, política, religião, direitos humanos etc. -, pois seu discurso violento transita por todos estes campos.

A reprodução de discursos violentos visa a assegurar a questão do poder:

Adivinhamos então que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercambio social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos libertadores que tentam contestá-la: chamo discursos de poder todo

discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe (BARTHES, 2004, p. 11).

Por o narrador dizer o que quer, reproduzindo conteúdo violento, cabe ao leitor, como procuramos discutir no capítulo precedente, a tarefa de reinterpretar o que ele está dizendo. E essa reinterpretação ou ressignificação do discurso do estudante de chinês somente pode ser compreendida como uma forte crítica social da própria sociedade que gera discursos de dominação.

O estudante de chinês não consegue ter a dimensão de onde está, muito menos que está imerso ou preso em uma teia de poder da qual faz parte por reproduzir discursos sociais. Quando esbarra em uma impossibilidade na sua própria argumentação responde com outra frase feita e assim continua falando. Se o labirinto para ele é invisível, o mesmo não vale para o leitor, este está observando de fora os trajetos deixados pelo narrador nas andanças e digressões de suas palavras.

O papel ativo do leitor, em aceitando o argumento de uma reavaliação do social presente no romance, vai possibilitar analisar o discurso do narrador sob novas bases. A ênfase não está no que o narrador diz, mas nas condições que conduzem a produção destes sujeitos e a reprodução de seu discurso. Por meio dessa crítica o leitor pode fazer uma reavaliação do pensamento hegemônico na sociedade. Desse modo o leitor é atraído e está mais próximo do estudante de chinês dentro do labirinto.

A trama detetivesca, que também compõe o labirinto por onde se movem os narradores, e que visa grosso modo, reconstituir um evento passado ou solucionar um mistério aparece em segundo plano em Reprodução. A questão do desaparecimento da professora de chinês na fila do embarque e a missão de entregar a criança chinesa em seu país de origem, levada a cabo pelo narrador, mas não narrada por ele, aparecem como elementos acessórios no texto.

A conclusão do romance, quando o estudante de chinês vai à China entregar a criança, é feita por outro, um narrador distanciado que encerra as páginas finais concluindo uma narrativa que o estudante de chinês, por sua natureza, também não teve condições de iniciar. Assim esse narrador falho e

incompleto empreende sua tarefa no meio da narrativa reproduzindo pré- conceitos, mas é incapaz de concluí-la.

A conclusão, aqui entendida como fechamento do romance ou tentativa de sair do labirinto, tem de ser feita por outro, pois como vimos as paredes do labirinto narrativo são invisíveis para ele. Logo, diante da natureza deste narrador, que não tem a dimensão de onde está ou para onde se move, e lhe falta até mesmo a consciência de ser um narrador; tem de ser, obrigatoriamente, outra voz, mais consciente de seu papel, simbolicamente representada por um narrador distanciado, quem vai dizer as últimas palavras sobre o estudante de chinês.

2.3 Narradores que querem ser escritores ou a tentativa de sair do