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1. Dos narradores que são escritores e do ato de escrever nos romances

2.4 O tempo dentro do labirinto

A passagem do tempo desde o momento em que planejam ser escritores é expressa como forma de demarcar um distanciamento em relação à atividade de escrever e ao próprio material narrado. Esse distanciamento permite não tomar a atividade literária como sendo um impulso, mas como fruto de um processo de maturação do indivíduo frente ao mundo e frente a si mesmo.

Mesmo que existam ―gatilhos‖ que tenham disparados esse desejo e acelerado o processo - como no caso da morte do diplomata Ocidental em

Mongólia ou o encontro e a história de vida de Setsuko em O sol se põe em São Paulo -, tais acontecimentos são apenas disparadores de algo que lenta e

constantemente já havia na perspectiva de vida dos narradores.

Muitas vezes a atividade de fazer literatura aparece como uma tentativa de redenção do narrador frente a sua posição desconfortável no mercado de trabalho, já que tem de desempenhar outras funções para sobreviver. Nenhum dos narradores ambiciona ser escritor para viver somente da literatura. A atividade literária, desse modo, aparece como uma possibilidade de libertação ou de redenção do indivíduo, uma forma de realizar-se enquanto sujeito, de explicar acontecimentos e encontrar o seu lugar no mundo.

Eu estava desempregado. [...] O que eles chamam mercado de trabalho é só uma farsa que se auto alimenta para que uns possam foder os outros. Só quem não vê são os otários e os bem-sucedidos, sentados nos dois extremos da mesma gangorra (CARVALHO, 2007, p. 21).

Mais de quarenta anos é o prazo decorrido para que o narrador diplomata em Mongólia alcance seu sonho de ser escritor. Durante esse tempo de incubação da ideia, desempenhou a função de diplomata. E agora, fora do corpo diplomático, olha em retrospectiva e faz um balanço de sua vida profissional e pessoal.

Não me resta muito a fazer senão protelar mais uma vez o projeto de escritor que venho adiando desde que entrei para o Itamaraty aos vinte e cinco anos, sendo que agora, aos sessenta e nove, já não tenho nem mesmo a desculpa esfarrapada das obrigações do trabalho ou o pudor de me ver comparado com os verdadeiros

A marca temporal presente no texto de um aposentado que tenta recuperar sonhos de juventude é seguida por outra em que ele avalia sua atividade de trabalho como algo sem significado ou até mesmo negativo.

Cometi muitos erros na vida. Abandonei projetos pessoais pela segurança e pela comodidade que o Itamaraty me dava, não sem levar em troca parte da minha alma. Não tive coragem de assumir compromissos, não me arrisquei, e acabei só. Se pelo menos ainda pudesse me orgulhar de uma carreira de destaque, mas nem isso (CARVALHO, 2003, p. 12).

Nesse ponto temos uma identificação plena com os narradores dos outros romances analisados, que também estando fora do mercado de trabalho - mais especificamente desempregados, como no caso de Reprodução e O sol se põe

em São Paulo - podem visualizar na atividade de escrever, ou seja, na

literatura, um lugar mais confortável para posicionar-se no mundo.

A literatura passa a ser, além de um desejo, uma necessidade. Torna-se o local de conforto que a vida social ou a atividade laboral não oferece. A literatura serve como antídoto para enfrentar a realidade e a si mesmo.

Não é por falsa modéstia que se encontra em Mongólia marcas de um narrador que se vê incapaz de narrar, por isso protela seu sonho de modo a amadurecer o relato que vai reconstituir. Nesse processo ele não conta somente com a memória. Ao utilizar anotações, diários e fotografias visa a dar suporte àquilo que por seus próprios meios não se julga capaz de realizar.

Esse amadurecimento, tanto do desejo de escrever quanto do evento narrado visto pelo filtro dos anos, faz parte do tipo de experiência já discutido por Larrosa (2002), ou seja, um tipo de experiência que parte do que acontece, mas que necessita obrigatoriamente de um tempo de maturação para se transformar em algo que nos acontece.

Do ponto de vista do narrador há a necessidade de um tempo de enfrentamento interno, que diz respeito às próprias dificuldades da narrativa em ser completa, em dar conta da realidade. Logo as palavras ―evidente falta de vontade e de talento‖, ditas pelo narrador diplomata, trazem consigo os próprios impasses do narrador e da narrativa contemporânea. Não se trata especificamente do talento de ser escritor, expressão por si mesma altamente

discutível, mas do talento como função e finalidade a ser cumprida pela narrativa e pela literatura.

Marcas temporais semelhantes às existentes em Mongólia são encontradas novamente em O sol se põe em São Paulo, com o narrador que desde a época de faculdade também tem o desejo de tornar-se um escritor:

Depois de tantos anos, vi o que já não queria ver, que a minha ilusão não ia acabar enquanto eu não escrevesse a primeira linha; entendi que não tinha vencido os sonhos de adolescente, como chegara a acreditar, porque ainda nutria aquela fantasia infernal, só que agora em silêncio, só para mim. No fundo, ainda achava que pudesse

escrever – e um dia me salvar não sabia bem do quê (CARVALHO,

2007, p. 14).

Embora o gatilho disparador para a atividade de escrever do narrador em

O sol se põe em São Paulo tenha sido travar conhecimento com a octogenária

Setsuko e se dispor à aventura de narrar para travar uma batalha contra o esquecimento e a morte, os pensamentos e a vontade do narrador sobre empreender a tarefa do fazer literário já estavam presentes. Sua precária e insatisfatória relação com o mundo do trabalho também contribui para que se lance na atividade literária.

O tempo de amadurecimento da vontade de escrever acontece durante sua trajetória profissional que o frustra enquanto sujeito. Ele não necessita de um tempo para que a história a ser narrada ―descanse‖ e possa ver com mais clareza alguns fatos a partir do filtro dos anos. Ao contrário, é a partir de sua movimentação como personagem que narra suas próprias ações que visualizamos a trama narrativa e as frestas por onde podemos olhar e compreender como uma narrativa é montada.