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E LABORAÇÃO E IMPLANTAÇÃO

DA

POLÍTICA

NACIONAL

DE

RECURSOS

HÍDRICOS

No contexto de globalização econômica e entrada das políticas neoli- berais no início dos anos 1990 durante o governo do presidente Fernando Collor de Mello, começaram as discussões para a criação do Sistema Na- cional de Gerenciamento de Recursos Hídricos conforme previa a Consti- tuição de 1988. Em 1990, pelo Decreto no 99.400 foi instituído um grupo

de trabalho constituído pelo governo e por setores da sociedade ligados aos recursos hídricos, por meio do qual se elaborou uma minuta do Projeto de Lei que criaria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídri- cos. A minuta transformou-se no Projeto de Lei no 2.249/91, que tramitou

no Congresso por mais de cinco anos, tendo recebido dois projetos subs- titutivos até sua aprovação com vetos em 1997 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.

A proposta de criação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Re- cursos Hídricos foi organizada por um colegiado nacional composto por representantes de órgãos públicos com atuação na área de recursos hídricos e membros de Comitês de Bacias Hidrográficas, formados por representan- tes públicos e privados dos municípios, além de uma secretaria executiva composta pela Coordenação Geral de Recursos Hídricos do Departamen- to de Águas e Energia Elétrica.1 Em princípio, o Projeto de Lei previa

uma estrutura centralizada no Colegiado Nacional, com o Departamento

1 Toda a composição do colegiado nacional, incluindo os representantes dos órgãos públicos e Comitês de Bacias Hidrográficas, pode ser consultada também por meio do site da Câmara: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=201443>. Acesso em: 12 set. 2008.

Nacional de Água e Energia Elétrica no controle financeiro e executivo por meio de um grande número de órgãos federais, reduzindo a participação de Estados e municípios.

Desde a criação do Código de Águas em 1934, observa-se que o privi- légio em torno da regulação legal das águas era a produção de hidroeletrici- dade. Outros usos da água acabavam sendo negligenciados pela legislação que passou praticamente cinquenta anos sem que questões ambientais e de saneamento fossem regulamentadas de forma adequada.

Nesse contexto, o principal embate que permeou as discussões acerca da Lei no 2.249/91 dizia respeito à retirada da exclusividade de regulação das

águas do setor de energia elétrica. Essa descentralização proposta no proje- to de lei gerou conflitos entre o DNAEE, técnicos que atuavam em setores ligados à água (saneamento, irrigação) e a Associação Brasileira de Recur- sos Hídricos. Ficou claro que o ponto relevante das discussões durante a tramitação da lei no Congresso deu-se inicialmente em função de o setor de águas não ser mais centralizado no setor elétrico (Sousa; Silva, 2006).

O conteúdo da Lei no 2.249/91 tinha como princípio norteador a criação

do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos. A ênfa- se foi dada principalmente no estabelecimento no país do uso múltiplo e planejado da água mediante atuação harmônica dos setores públicos e privados, gestão pautada na outorga dos direitos de uso e a cobrança dos re- cursos hídricos instituída pelo poder Executivo federal.2 Nesse princípio de

elaboração já ficava evidente a tentativa de se implantar a cobrança pelo uso da água, conforme recomendava o Banco Mundial nos seus documentos, como forma racional de gerenciar os recursos hídricos.

A tramitação da Lei no 2.249/91 iniciou-se no governo do presiden-

te Itamar Franco, na extinta Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias (CDCMAM), tendo como relator o deputado Fábio Feldman, que elaborou um substitutivo preliminar analisado no final de se- tembro de 1993 na 12a reunião da CDCMAM. De acordo com Sousa e Silva

(ibidem) havia uma clara tensão entre os representantes dos órgãos ligados

2 Cf. maiores detalhes acerca do Projeto de Lei no 2.249/91, bem como sua tramitação no Con- gresso, através do site: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=201443>. Acesso em: 12 jan. 2010. O conteúdo também pode ser consultado por cópia impressa: Brasil, 1991.

ao meio ambiente, que tentavam imprimir sua área de abrangência na regu- lação hídrica do país, e os representantes do Ministério de Minas e Energia, que não admitiam perder o privilégio no controle das águas. Sousa e Silva (ibidem) acrescentam ainda que o deputado Fábio Feldman inviabilizou as pretensões burocráticas dos dois setores ao estabelecer no substitutivo uma regulação horizontalizada no que tange aos processos decisórios.

De acordo com o substitutivo de Feldman, o poder público deveria intervir no gerenciamento hídrico somente quando sua ação fosse impres- cindível, além do quê, os usuários e comunidades interessados em assumir a gestão hídrica poderiam ter os serviços para si delegados desde que no limite de suas capacidades. Nitidamente, Feldman nutria preferência para a atuação do município em relação ao Estado e do Estado em relação ao poder público federal (ibidem).

Embora o substitutivo mantivesse a estrutura anterior, ele aumentou a participação dos usuários ao estabelecer três regiões hidrográficas no Brasil com a criação de Comitês de Bacias Hidrográficas e Agências de Águas, e ao estabelecer também a cobrança pelo uso da água, de modo que os recur- sos arrecadados fossem investidos na própria bacia de arrecadação.

De acordo com análise realizada por Campos (2008), as propostas apre- sentadas pelo deputado Fábio Feldman tinham um caráter mais descen- tralizado e participativo e contavam inclusive com o apoio de entidades públicas e privadas, como a Associação Brasileira de Recursos Hídricos.

No início do governo Cardoso em 1995, foi criada a Secretaria de Re- cursos Hídricos, a qual estabeleceu uma nova estrutura administrativa a partir do governo federal, incorporando nas suas diretrizes o conceito de uso múltiplo da água no seu gerenciamento. A nova secretaria, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, ficou encarregada das responsabilidades antes destinadas ao DNAEE. Durante o primeiro ano do governo Cardoso, o CDCMAM reiniciou a análise do projeto de Lei no 2.249/91 e passou

a ter como relator o deputado Aroldo Cedraz, que apresentou um novo substitutivo a partir de consultas junto a representantes do Ministério do Meio Ambiente, do DNAEE, da Secretaria de Assuntos Estratégicos e de representantes de governos estaduais.3

3 Cf. em Cedraz, Aroldo. Relatório do Projeto de Lei 2.249/91. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 1996.

As modificações realizadas por Cedraz não alteraram substancialmente o caráter do substitutivo elaborado por Feldman. Contudo, antes de o pro- jeto ir para o plenário da Câmara houve, conforme relata Soares (2005), uma rediscussão de alguns pontos aprovados pelo CDCMAM no que se refere à adequação do texto do projeto às políticas econômicas de planejamento e energia elétrica que vinham sendo delineados pelo governo federal, fator este que afetou principalmente a questão da descentralização do setor. No- vaes (2006) afirma que a posição descentralizadora defendida por Feldman encontrava resistências por parte dos atores que continuavam defendendo o controle do setor elétrico sobre a gestão das águas. As alterações realizadas por Aroldo Cedraz no seu substitutivo deram conta das alterações que, em partes, enfraqueceram o modelo descentralizado proposto por Feldman. Conforme relata Novaes:

[...] Em 1995 Feldman deixou o Congresso e o PL, ainda em tramitação, teve a relatoria assumida pelo deputado Aroldo Cedraz (PFL-BA). Sob a relatoria de Cedraz, a nova proposta de Projeto de Lei se distanciava da versão à época de Feldman. Duas principais diferenças cabem ser destacadas na proposta de Cedraz, as quais permaneceriam na Lei posteriormente aprovada: a) os comitês de bacias ficaram com menos poder e institucionalmente articulados à estru- tura administrativa dos órgãos estaduais e federais; b) o texto final era mais simples e menos detalhado, deixando inúmeras questões (notadamente as mais contenciosas) ausentes ou redigidas de forma ambígua e pouco esclarecedora [...] (ibidem, p.52).

Um novo substitutivo foi elaborado pelo deputado Romel Anízio, que incorporou essas várias solicitações feitas pelo poder Executivo por meio de seus representantes.4 Esse substitutivo foi aprovado tanto na Câmara

quanto no Senado no final de 1996 e sancionado com 13 vetos no dia 8 de janeiro de 1997 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que instituiu assim, a partir dessa data, a Política Nacional de Recursos Hídricos por meio da Lei no 9.433/97. Na avaliação de Campos (op. cit.), o conteúdo

4 Cf. em Anízio, Romel. Parecer do Relatório ao Projeto de Lei 2.249, de 1991. Brasília, Distrito Federal: Câmara dos Deputados, 1996.

da lei aprovada mostrou-se mais avançado e democrático que a proposta enviada ao Congresso em 1991, pois admitiu a participação tanto de grupos sociais quanto de Estados e municípios nas discussões do gerenciamento hídrico. O fator que levou a esses resultados foi, segundo Campos (ibidem), a participação de diversos grupos envolvidos nas negociações da lei, com destaque para o Departamento de Água e Energia Elétrica e da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo:

A análise do processo mostra que, apesar dos resultados, às vezes, pouco alentadores, o estabelecimento destes espaços mais democráticos é fruto da negociação ocorrida entre os grupos envolvidos, isto é, entre o DNAEE, os governos estaduais e municipais, as organizações privadas e associações ligadas a recursos hídricos – como a Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (ABAS) e a ABRH –, e entidades da sociedade civil – como o Sindicato dos Trabalhado- res em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (SINTAEMA); a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE); a Associação Permanente de Entidades do Meio Ambiente (APEDEMA) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) (ibidem, p.6).

A PNRH ainda foi complementada com a criação do Conselho Nacio- nal de Recursos Hídricos por meio do Decreto no 2.612 de junho de 1998,

e da Agência Nacional de Águas, criada por meio da Lei no 9.984 de julho

de 2000, que ficou incumbida de regular o gerenciamento hídrico do país. Interessante neste momento é entender o conteúdo da Lei no 9.433/97,

que implantou a Política Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídri- cos. Nitidamente podemos perceber no seu texto certa similaridade com as políticas de recursos hídricos defendidas pelo Banco Mundial. A chamada nova Lei de Águas do Brasil, ao mesmo tempo que instituiu novos concei- tos para o setor, também procurou regularizar em âmbito federal situações que já estavam sendo implantadas no país há pelo menos uma década, como a instauração de comitês de bacias hidrográficas que já eram utilizadas, mesmo que de forma tímida desde os anos 1970. Dessa forma, para en- tendermos basicamente o conjunto da Lei no 9.433/97, convém destacar a

partir de agora alguns pontos da PNRH apontados em seu texto legal. Basicamente a PNRH definiu: (a) os Planos de Recursos Hídricos; (b) o enquadramento dos corpos d’água em classes, segundo os usos preponde-

rantes das águas; (c) a outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos; (d) o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.

O primeiro fundamento da PNRH é o reconhecimento da água como um bem público, a qual, em contrapartida, também pode ser definida como recurso natural limitado e dotado de valor econômico. A atribuição de valor econômico para um recurso natural como a água certamente contempla concepções defendidas pelos adeptos da economia ambiental neoclássica, os quais defendem que a valorização da água com preço estipulado e adequado ao mercado despertaria no usuário uma consciência sobre o real valor do bem utilizado, levando-o ao uso racional e evitando seu desperdício. Contudo, conforme indagado anteriormente, inserir a água na lógica do mercado tem outras implicações que podem ser tão prejudiciais quanto a degradação e o desperdício: ao mesmo tempo que possibilita um monopólio econômico e privado sobre a água, pode excluir do seu acesso as populações mais carentes.

A nova Lei de Águas afirma que a gestão integrada da PNRH sustenta- -se na integração, descentralização e participação. A integração diz respeito a uma articulação vertical entre governo federal, estados e municípios, bem como articulações horizontais entre os vários usos da água, os vários segmentos da sociedade, o setor de recursos hídricos e o setor de meio am- biente. A proposta de integração sugere a participação dos setores usuários de águas (hidrelétricas, irrigação, drenagem, indústrias, abastecimento de água e saneamento, turismo, transporte, navegação), de modo que suas propostas sejam ouvidas e levadas em consideração pelos órgãos públicos e na integração com a sociedade civil. Essa proposta de integração tem por finalidade que as ações desenvolvidas por um determinado setor não afe- tem o outro e vice-versa. Acreditava-se que desta forma o gerenciamento se tornaria mais eficiente e racional.

Assim, o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, estabelecido no Artigo I, Capítulo 32 da legislação, seria responsável pelos seguintes itens: (a) coordenação integrada da gestão das águas e imple- mentação da Política Nacional de Recursos Hídricos; (b) administração dos conflitos relacionados a recursos hídricos; (c) implantação da PNRH e do planejamento, regulação, controle do uso e preservação dos recursos hídricos; (d) e, por fim, a promoção da cobrança pelo uso da água. Para integrar o SNGRH, foram criados o Conselho Nacional de Recursos Hí- dricos, a Agência Nacional de Águas, os Conselhos de Recursos Hídricos

dos Estados e do Distrito Federal, os Comitês de Bacias Hidrográficas, os órgãos dos poderes públicos relacionados à gestão dos recursos hídricos e as Agências de Águas.

Do ponto de vista do planejamento, a legislação aponta que a funda- mentação, orientação e implementação da PNRH deveriam ser feitas por meio de Planos Diretores, que ficam encarregados, entre outros pontos, de diagnosticar a situação atual dos recursos hídricos e elaborar metas de racionalização de usos com vistas para melhoria da qualidade das águas. Os Planos Diretores ficariam responsáveis também por elaborar os programas, metas e projetos a serem implantados no setor, possuindo a prioridade na outorga de direito de uso dos recursos hídricos e na elaboração das diretri- zes e critérios para a cobrança do uso da água. São os encarregados também de propor a criação de áreas sujeitas a proteção e riscos.

No que diz respeito à outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos, a PNRH coloca como objetivos a garantia do controle qualitativo e quantita- tivo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso. Dentre os direitos de uso dos recursos hídricos concedidos para outorga, encontram- -se: (a) extração de água de um aquífero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo; (b) lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição; (c) transporte ou disposição final e aproveitamento do potencial hidrelétrico.

A Lei no 9.433/97 afirma ainda que não depende de outorga o uso da

água para suprimento de necessidades de pequenos núcleos populacionais distribuídos no meio rural, derivações, captações e lançamentos considera- dos insignificantes, bem como acumulações de volumes de água. Aspecto importante no que se refere ainda à outorga do uso dos recursos hídricos consiste na sua efetivação pelas autoridades competentes, no caso, o Poder Executivo Federal, os Estados e o Distrito Federal. Nesse sentido, as águas de domínio da União podem ser delegadas aos Estados e ao Distrito Federal por meio do Poder Executivo Federal.

Dentre as circunstâncias nas quais a outorga pode ser imediatamente suspensa, encontram-se: (a) o não cumprimento dos termos utilizados na sua efetivação; (b) a necessidade de se atender os usos prioritários de interesse coletivo para os quais não se dispõe de fontes alternativas; (c) e necessidades de se prevenir ou reverter quadros de degradação ambiental.

A outorga não pode exceder o prazo máximo de 35 anos, o qual pode ser renovado. Ainda de acordo com a legislação, a outorga implica o direito de uso das águas e não a sua alienação.

Sobre a cobrança pelo uso da água, a nova legislação pauta-se claramen- te numa concepção ambiental neoclássica ao afirmar que o objetivo de tal instrumento seria reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor, além de incentivar a racionalização do seu uso, de modo que os valores arrecadados fossem destinados para o financia- mento dos programas e intervenções conforme contemplados nos planos de recursos hídricos. Consta ainda que os valores arrecadados com a cobrança pelo uso da água devem ser aplicados prioritariamente na bacia hidrográ- fica na qual foram gerados, sendo então utilizados no financiamento de es- tudos, programas, projetos e obras, desde que estejam incluídos nos Planos de Recursos Hídricos.

Todo uso da água que seja objeto de outorga deve ser cobrado de acordo com a lei. O Código Civil de 1916, ainda vigente durante os anos 1990, dava o fundamento legal para a cobrança do uso da água, ao estabelecer que a uti- lização dos bens públicos de uso comum poderia ser gratuita ou retribuída conforme as leis da União.5 O próprio Código de Águas de 1934 ordenou

que o uso comum das águas poderia ser gratuito ou retribuído de acordo com as leis e regulamentos da circunscrição administrativa a que pertencerem. A Política Nacional de Meio Ambiente por meio da Lei no 6.938/81 inclui a

possibilidade de impor ao poluidor a obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados ao meio ambiente e ao usuário devido à utilização de re- cursos naturais com fins econômicos. No entanto, a Lei no 9.433/97 definiu

a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como uma forma de gestão, ca- bendo à Agência Nacional de Águas implantar, juntamente aos Comitês de Bacia Hidrográfica, a cobrança pelo uso da água nos rios de domínio federal.

Após essa exposição sobre a nova política de águas que passou a vigorar no Brasil a partir de 1997, neste momento é pertinente demonstrar como se deram as ações práticas do governo Cardoso no setor de águas, abordando primeiramente os primeiros anos de seu mandato.

5 O conteúdo completo do Código Civil de 1916 consta no endereço: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/LEIS/L3071.htm>. Acesso em: 26 set. 2008.

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