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Lacan (1948) situa a agressividade na base da constituição do eu, principalmente a partir da teorização do estádio do espelho e da concepção de narcisismo. A constituição primária do sujeito se dá quando a criança reconhece, em um momento de júbilo, sua imagem no espelho – imagem ratificada pelo Outro, que unifica o corpo despedaçado. Nesse sentido, o narcisismo é essa “antecipação imaginária de um corpo coordenado e funcional” (Simanke, 2002, p.269).

No momento da primeira inscrição psíquica pela imagem de materialidade virtual, surge o fenômeno do duplo. O mundo não é mais uma extensão do bebê, ele pode unificar o corpo, perceber-se cercado de objetos e dizer “eu sou”. Em um “complexo virtual com a realidade que ele reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou seja, com os objetos que estejam em suas imediações” (Lacan, 1949,

68 p.97). Essa relação com o duplo, porém, não é sem conflito, pois o outro também é marcado enquanto rival.

O narcisismo é algo nebuloso para o sujeito, ele não sabe qual o papel do outro em sua constituição. O mesmo olhar que permite ao sujeito unificar uma totalidade narcísica, o lugar do eu, também é ameaçador pela sua alteridade. O estádio do espelho inicia uma rivalidade do sujeito com ele mesmo, o objeto de identificação é igualmente objeto de ódio e agressão (Benvenuto, 2001). O retorno a esse tempo é sempre uma ameaça que está na base da agressividade (Roudinesco & Plon, 1998). Afinal, desde o início a relação do sujeito com o outro possui a marca da agressividade em decorrência da fantasia de despedaçamento e da anulação da identidade subjetiva. Como vimos, o duplo anuncia a morte. É nesse emaranhado entre libido narcísica e a função alienante que Lacan (1948) situa o conceito de agressividade enquanto constitutivo da experiência formativa do eu: “essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar de seu eu” (p.116).

A agressividade é elemento constituinte da subjetividade. Mais especificamente sobre o ato criminoso, Lacan faz algumas considerações: em 1950, no texto Introdução

teórica às funções de psicanálise em criminologia, logo alerta que a identificação do

que é um crime e um criminoso, as concepções de responsabilidade, de pena, de culpa e de castigo são relativas ao contexto cultural e a cada sociedade. O psicanalista deve se opor às classificações de comportamento delituoso e trabalhar com a verdade do sujeito.

Nesse momento, Lacan lança mão da concepção de assentimento subjetivo enquanto a resposta do sujeito frente ao ato delituoso que cometeu, ou seja, como ele se responsabiliza. Apesar de a lei dispor de um preço pelo crime, existe o modo como o sujeito se pune, garantindo a eficácia de uma tradição cultural mediante especialmente dispositivos simbólicos. Há uma normatividade, mas há também a capacidade subjetiva de instaurar normas para si mesmo (Mollo, 2009). O assentimento subjetivo liga a

69 responsabilidade do sujeito com a punição social. Desse modo, Lacan salienta que a psicanálise deve olhar para o crime e para o criminoso através da certeza de que esta é uma experiência irredutivelmente subjetiva, que deve ser analisada de sujeito a sujeito.

Lacan (1950) trabalhou os crimes do supereu, que provêm da ideia freudiana de crimes em decorrência de sentimento de culpa. Assim, a realidade de um crime pode ser captada pela psicanálise a partir da violência do supereu. Freud reconhece o supereu a partir da introjeção da lei do pai, herdeiro do Complexo de Édipo. No entanto, o supereu também exige satisfação proveniente do isso. A instância superegoica empurra o sujeito para o crime. Não somente pela necessidade de punição, afinal supereu também é exigência de gozo.

O crime é um ato cujas consequências ultrapassam o sujeito, eleatinge o Outro social, convocando respostas ao mal que ele provoca. O criminoso encontra com uma lei real que pode bloquear o gozo, ou seja, a lei jurídica mostra na realidade o que falhou na simbolização da lei edipiana. Há a presença do Outro a quem o sujeito se dirige. Por isso, Lacan considera que o crime realiza em ato aquilo que deveria ter sido simbolizado pelo Complexo de Édipo. O simbolismo presente no ato demonstra a significação social do edipianismo.

Lacan (1948) sustenta que o que desencadeia a agressividade é a quebra da imagem narcísica, imagem de si apreendida no Outro, de modo que “a agressividade, na experiência, nos é dada como intenção de agressão e como imagem de desmembramento corporal, e é nessas modalidades que se demonstra eficiente” (p. 106). Lacan continua, afirmando que “a agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico, e que determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico do seu mundo” (p. 112). Nesse mesmo texto, propõe que a matriz da agressividade é a inveja, marcada por um ressentimento de ocupar um lugar na primeira infância marcado pela absorção especular.

70 O crime decorrente do supereu é uma manifestação individual ligada às condições sociais do Édipo. Em 1938 Lacan já trabalhara o declínio da imago paterna na sociedade atual. Sobre esse aspecto, Melman (1992) aponta que o modo de aquisição dos objetos – através da apreensão, do rapto ou da violação – pelo delinquente é o único recurso que o resta pela falta da tomada simbólica. A conduta do delinquente é simbólica de uma falta essencial em que o único acesso possível ao objeto se dá através do crime. Melman propõe que o sujeito se encontra forcluído do Nome-do-Pai, ou seja, ele “encontra-se em uma posição onde não pode ser reconhecido por ele, portanto não pode valer-se de sua filiação, de sua autoridade.” (p.45). A causa da delinquência está na falta de reconhecimento simbólico do Nome-do-Pai. Ao mesmo tempo em que, como consequência de seu ato, ele exige a presença do pai enquanto autoridade real; no ato em si o que está em jogo também é a anulação do terceiro, provando que “ali ele nada pode” (p.52). Esse aspecto caracteriza a delinquência como um ato incestuoso.

No capítulo anterior, vimos que os atos são uma forma de reação contra a angústia. Frente à angústia existem várias saídas e aquela utilizada pelo sujeito depende das possibilidades de simbolização. Especificamente nos atos delinquentes, o sujeito não encontra apoio no simbólico para inscrever a castração como falta – para entrar no circuito do desejo. Ele pode acabar por reproduzir a situação como encenação no caso do acting out; ou sucumbir ao encontro como na passagem ao ato. Se entendermos o

acting out como um apelo ao Outro para que ele produza uma ordem, a maioria dos atos

infracionais na adolescência estão postos a partir da perspectiva de acting out (Mollo, 2010; Salum, 2009). Entretanto, é preciso analisar cada caso em particular.

Lesourd (2004) trabalha vários elementos da relação entre adolescência e delinquência. O autor faz uma relação entre a deflação narcísica da adolescência e a necessidade de recriar os objetos. Há um abalo na base narcísica pela necessidade de desinvestir no amor infantil parental, pela dúvida do valor do próprio corpo e do objeto eu. O adolescente percebe no encontro com a realidade que jamais encontrará o objeto

71 adequado a uma satisfação total. A partir da perda do objeto psíquico de amor é iniciado um trabalho de busca de objetos reais que podem oferecer prazeres parciais. Os objetos do sujeito delinquente possuem sua particularidade, o objeto furtado faz do transgressor um sujeito valorizado. “O valor do objeto deve ser entendido então como valor narcísico da sua posse, na qual o objeto da realidade possuído tem como função reforçar o narcisismo do sujeito, reforçar o mérito do seu objeto eu” (p.103). O objeto ganha seu valor pela tomada de risco no ato do roubo, que assegura a potência do sujeito. Então, trata-se de um objeto fálico.

Lesourd trabalha a violência no adolescente delinquente como uma impossível separação da mãe arcaica. Na crença infantil, o pai, detentor do falo, pode satisfazer completamente seu primeiro objeto de amor, a mãe. A criança aceita a castração e a atribuição fálica paterna baseada em uma promessa: “quando for grande, eu terei a potência fálica”. Assim, por trás do pai edipiano se esconde a mãe arcaica. Quando a promessa se torna um logro e a castração persiste, a potência fálica cai na rede do impossível. O remanejamento adolescente inclui a descoberta do valor simbólico do falo. A reativação edipiana é somente uma parte do trabalho adolescente. A mãe arcaica, enquanto das Ding/Coisa, ainda exerce sua atração.

Lacan traz a frase “Agir é arrancar da angústia a própria certeza” (1962-63, p.98). O sujeito se angustia frente ao desejo do Outro, que o designa como objeto. A dimensão motora do fazer, o agir, marca uma separação entre sujeito e Outro. O agir traz a segurança da certeza narcísica de um ser diante da angústia, que traz a constatação aniquilante do desejo do Outro. A conduta delinquente é um caminho para o sujeito provar uma potência fálica.

Na delinquência é preciso estar atento para o âmbito do narcisismo primário, da constituição do eu e da separação infantil com a mãe arcaica. A criança é excluída do gozo do Outro arcaico e o pai toma seu lugar. Lesourd (2004) também utiliza (como Lacan) o conceito de inveja proposto por Denise Lachaud para compreender melhor

72 esse ponto. O que está em jogo é a necessidade de destruir o outro ou a si mesmo na busca por reencontrar seu próprio lugar. A inveja é indício de que o sujeito foi expulso da relação enquanto outro tomou seu lugar no gozo da carne. Nesse ponto, é ou ele ou eu. Por isso a ordem simbólica e a função paterna são também apaziguadoras. O que está em jogo é a existência do sujeito. Se a função paterna não ocupou suficientemente seu lugar, fica marcada a busca fusional de sobrevivência e existência, onde só é possível existir no reconhecimento pelo Outro. Não há limite entre o sujeito e o semelhante (no eixo imaginário), o reconhecimento e consequentemente sua sobrevivência só podem ocorrer através da violência.