• Nenhum resultado encontrado

A clínica psicanalítica com adolescentes em conflito com a lei, de entrada, impõe um complicador na prática; trabalhar a demanda inicial e dela fazer uma demanda analítica, pois esses jovens encontram no ato o principal recurso para lidar com a angústia. O trabalho sobre a demanda exige um tempo de espera que, por vezes, não é possível de ser suportado por esses sujeitos sem a precipitação do agir dentro do enquadre psicanalítico.

Iremos abordar dois casos clínicos para abrir essa questão: o de Bianca e o de Bruno. Bianca tinha dezesseis anos e havia traficado droga. Seu atual namorado havia sido preso e, ao tentar levar drogas para ele dentro da penitenciária, Bianca foi pega. Estava em condição de liberdade assistida, de modo que foi encaminhada de sua unidade de referência até a clínica-escola da Universidade de Brasília, o Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos (CAEP/UnB).

Na primeira e única sessão, Bianca me contou sua triste história: fora abandonada pela mãe biológica e adotada por uma família em que o pai a abusava sexualmente. Aos treze anos, engravidou do namorado e deixou sua filha para ser criada pela sua família adotiva. Procurou a mãe biológica, que afirmou que a doou por ela ser negra, fato que faria com que ela fosse rejeitada por toda a família. Buscou incessantemente uma integração com a família biológica, que a rejeitava, tratando-a como uma empregada doméstica. Bianca era insistente: não cessava de tentar se juntar a eles, mesmo sabendo que sempre seria posta de lado. Relatava-me sua história, pedindo,

99 nas entrelinhas, que eu ficasse penalizada. No decorrer da sessão, contava histórias mais pesadas, principalmente quando não encontrava em minhas expressões sinal de pena. Eu, com o desejo inoportuno de lhe mostrar seu inconsciente, apontei de modo prematuro que ela havia repetido com a filha aquilo que acontecera com ela mesma. Percebi a fragilidade de minhas interlocuções e seus efeitos assim que fechei a boca. Ela me respondeu: “Você acha que eu não sinto culpa por isso? Eu não consigo me aproximar dela”.

Sem dúvida, foi uma interpretação selvagem que permitiu pensar sobre a clínica

a posteriori. Bianca me contava de seu desamparo, melhor, da forma como insistia em

reencontrar sua rejeição. Era preciso que, primeiro, ela se engajasse em um tratamento para que as intervenções pudessem ter efeitos. Eu poderia ter trabalhado a demanda, tendo como ponto de partida a angústia de ser rejeitada e colocar-se a ser rejeitada, sem situá-la em posição de vítima, mas sim a partir de sua condição de desamparo. A busca seria por apontar o desamparo mostrado pelo ato, não pelo reconhecimento dele. Bianca colocava o Outro no buraco, deixado pelo seu sofrimento, e dizia com seus atos: “ele me rejeita”. Não percebia que, mesmo colocando o Outro lá, vitimando-se, não havia tamponamento possível. Talvez assim Bianca aceitasse um tempo de espera sem precisar atuar, ou seja, sem ir embora e não mais voltar.

O segundo caso clínico, que chamarei de Bruno, era de um adolescente que estava internado em uma instituição devido ao tráfico de drogas. Houve somente uma sessão, pois o jovem evadiu no fim de semana seguinte durante um saidão15

. Relatou-me um pouco de sua história: era filho único e morava com a mãe, mas agora eles não podiam se ver. Contava-me que iria fugir no fim de semana seguinte, que tinha sido preso ajudando a mãe e que, pelo mesmo motivo, precisava sair. Dizia: “Minha mãe precisa de mim. Olhe, doutora, eu gostaria muito de fazer essa psicologia com a

15 Saidão é quando os adolescentes podem sair da instituição por alguns dias e depois retornar. Os

motivos são vários, como datas comemorativas, porém, o saidão também faz parte do processo de liberdade do adolescente. Antes de ser liberado definitivamente da instituição, ele ganha um saidão a cada quinze dias e depois semanalmente.

100 senhora. Eu vou voltar, mas agora eu vou ajudar minha mãe”. Apertava minha mão, falava como se tivéssemos nos despedindo de um grande encontro e me agradecia pela oportunidade. No momento, não compreendi o que significava a impossibilidade de se encontrar com a mãe. Porém, em uma conversa posterior com a técnica de referência de Bruno, fui informada de que ele traficava drogas a pedido da mãe. À época, já existia uma medida proibitiva de aproximação e contato da mãe com relação a Bruno. O jovem também se recusava a cumprir a medida e, sempre que fugia, voltava para a casa da genitora.

Bruno mostra a dificuldade de iniciar um trabalho psicanalítico no nível de um atendimento clínico individual, pois o paciente está sempre na iminência de agir – no caso dele, significava trabalhar para a mãe. O jovem me dizia que compreendia que a psicologia poderia ajudá-lo. Falou-me: “eu precisava falar com a senhora”. Porém, jogar-se nesse encontro materno era algo do qual ele não podia, ainda, escapar.

Cada nova relação era uma porta aberta para que aquilo que é da ordem do traumático se realizesse. Estar com o analista significava fazer algum tipo de enlace com ele, mas se na relação com o Outro o adolescente se sente à mercê de sua voracidade, como não agir, como não se defender? Por isso, o enquadre deve mostrar sua pertinência e credibilidade.

Em meio a tanta atuação do adolescente, qual é o lugar do analista? Qual o sentido do seu trabalho? Esses casos nos ensinam que um caminho possível para o trabalho inicial com a demanda do adolescente é dar um lugar especial de escuta ao desamparo. Em um primeiro momento, o sofrimento é o que deve estar em jogo para o sujeito se engajar em uma análise. Posteriormente, a demanda de ajuda deve se transformar em um enigma para o sujeito. Se fosse possível separar esses momentos da demanda, nas entrevistas preliminares, teríamos dois. O primeiro seria o de uma demanda que não é por mandato, mas onde o sujeito reconhece seu sofrimento. Conforme visto no capítulo anterior, Freud (1905; 1920a) afirma que uma análise não se

101 sustenta quando a demanda é do outro. O segundo momento seria a transformação do pedido de ajuda em uma demanda de análise, em que o paciente faz uma questão sobre o seu sintoma. Porém, a clínica com adolescentes, principalmente aqueles que priorizam o ato, parece encontrar dificuldades já nesse primeiro momento.

No momento inicial de acolhimento desses adolescentes, o analista deve se debruçar sobre o trabalho com o desamparo, com o sofrimento, seja ele reconhecido ou não pelo sujeito, antes de se precipitar em transformá-lo em uma questão para o paciente, em uma demanda de análise. Coutinho (2006) ressalta que a instauração de um espaço de fala, de acolhimento e de laço com o adolescente deve ser priorizada no tratamento. Acrescentamos que particularmente nesses casos, em função dos traumatismos e fragilidades psíquicas peculiares, isso se torna frequente.

No acolhimento, apostamos no vínculo analítico e na tentativa de convencer o sujeito a entrar na “boca do jacaré”, ou seja, de fazer que a relação entre angústia e ato não seja tão colada, e que haja um espaço de simbolização entre eles. Por vezes, o trabalho sobre o enquadre pode ser o que possibilita mesmo uma análise. Discutiremos mais profundamente o enquadre como possibilitador de enlaçamento no caso a seguir.

5.2. O Caso Tiago: A Angústia do Encontro com o Materno e o Pai como