Lacan, em seu percurso teórico, busca uma retomada ao texto freudiano. Freud possuía uma tradição literária marcante e sua obra revela o recurso ao literal. Segundo Lacan, a perspectiva freudiana já aponta para um sujeito preso e torturado pela linguagem. É assim que, em “A Interpretação dos Sonhos", Freud descreve que os sonhos se exprimem em imagens, imagens que intervém numa escrita a ser lida. O que Freud coloca em primeiro plano nos mecanismos da neurose, nos fenômenos marginais da vida normal e nos sonhos é a condensação e o deslocamento, ou seja, o que em lingüística denomina-se metáfora e metonímia.
Lacan estuda lingüística nos textos de Saussure e Jakobson, e em seu Seminário III introduz, quando trabalha o significante, a questão da metáfora e da metonímia*®, a partir do que Jakobson anota sobre o trabalho de Freud.
Diz Lacan: “A estruturação, a existência lexical do conjunto do aparelho significante, são determinantes para os fenômenos presentes na neurose, pois o significante é o instrumento com o qual se exprime o significado desaparecido.”*^ A partir disto considera que são as leis da linguagem que estão envolvidas na estruturação do sujeito e no campo de suas estruturas clínicas.
“A metáfora supõe que uma significação seja o dado que domina, e que ela infiete, comanda o uso do significante, tão bem que toda espécie de conexão preestabelecida, diria lexical, se acha desatada.”** Na metáfora, a significação retira o significante de suas conexões
idem, p. 61.
Saussure assinala que as relações sintagmáticas apontam para a metonímia, enquanto que as relações associativas apontam para a metáfora.
LACAN, J. As Psicoses (1955-56). Op. cit. p. 252. idem, p. 249.
lexicais. O sentido possível está atrelado ao não-sentido. Pela metáfora percebe-se que os significados só são coerentes a partir da cadeia de significantes. É a partir da estruturação do significante que alguma transferência de sentido é possível e aí está o papel do significante na metáfora.
Por outro lado, há aquilo que remete à articulação, a contigüidade, a noção de causalidade, que é do campo da metonímia. Na metonímia, o que esta trata é de nomear uma
r • 1 ' •*«' 89
coisa por outra, que e seu contmente, ou com a qual se mantem em conexão.
Na linguagem, o que é importante é a oposição que existe entre dois tipos de vínculos, vínculos estes que são internos ao significante. O vínculo posicionai que revela a ordem das palavras e a coexistência sincrônica dos termos, pois a linguagem mostra-se um sistema de coerência posicionai. O vínculo de similaridade que assinala a possibilidade indefinida da função de substituição.
No ponto de partida está a metonímia, que possibilita a metáfora, pois é necessário que haja ordenação significante, articulação formal do significante, significantes em cadeia, para que ocorram as transferências de significado. “A promoção do significante como tal, a emergência dessa subestrutura sempre escondida que é a metonímia, é a condição de toda investigação possível dos distúrbios fiincionais da linguagem na neurose e na psicose.”^ Isto revela porque o paciente vai á análise, é justamente á procura de significados, de sua verdade.
Lacan, para falar da metonímia, apresenta como exemplo: ‘trinta velas’, que relaciona- se com a palavra navio, embora esta palavra permaneça oculta. O que está em jogo na conexão entre navio e vela é a questão significante, e não a questão da realidade, pois há navios que não possuem apenas uma vela, “...é na palavra por palavra dessa conexão que se apoia a metonímia.”^' A metonímia também implica o deslocamento, que Freud apontara em sua obra sobre os sonhos. O deslocamento (Verschiebung) é “...essa virada da significação que a metonímia demonstra...
Lacan inclui aqui a importância do lingüista Roman Jakobson e seu estudo sobre as afasias. LACAN, J. As Psicoses (1955-56). Op. cit. p. 262.
_____. A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud (1957). Op. cit. p. 236.
A formalização da estrutura metonímica é: f{ S . . .S ') S ^ S{-)s
A estrutura mostra que há conexão do significante com o significante, o sentido permanece do outro lado da barra, resistente à significação. A flinção metonímica f(S...S’)S, expressa a conexão de significante (S) ao significante (S’), o que implica (=) que o sentido não foi alcançado (-), havendo a manutenção de S em contigüidade a S’ e em associação ao significado (s)
A metáfora é exemplificada a partir do verso de Victor Hugo, que fala sobre Booz: “Seu feixe não era nem avaro nem odioso...
“Seu feixe” está no lugar de Booz, sendo que o que ocorre entre estes dois significantes é que um substitui o outro, tomando o seu lugar na cadeia significante. É a Booz que se referem as características de ser nem avaro ou odioso, mas que por seu lugar ter sido tomado pelo ‘seu feixe’, sua generosidade se reduz a menos que nada, visto que ao feixe estas qualidades nada representam.
O significante oculto Booz está presente através da conexão ao resto da cadeia. Trata- se da substituição de “uma palavra por outra”^"*. O que está implicado neste recorte é outra questão, a da sexualidade e da paternidade, submersa nos versos.
“É portanto entre o significante do nome próprio de um homem e aquele que o abole metaforicamente que se produz a centelha poética, aqui tanto mais eficaz em realizar a significação da paternidade quanto ela reproduz o acontecimento mítico onde Freud reconstruiu o curso, no inconsciente de todo homem, do mistério patemal.”^^
A metáfora, então, localiza-se no ponto em que o sentido se produz no sem-sentido, pois o fato de um significante poder ser substituído por outro significante, expressa a autonomia e supremacia do significante.
idem, p. 237. idem, p. 238. idem, p. 238.
Lacan retoma Freud, que já afirmara a observação, no trabalho do sonho, da condensação (Verdichíung) “...é a estrutura de sobreimposição dos significantes onde a metáfora se origina...”^
A metáfora pode ser simbolizada por: /
É através da substituição do significante ao significante que surge um efeito de significação. Em uma fixnção (f S), o significante S é substituído por outro significante S’, o que implica (=) efeito de sigtüficação. Ocorre aqui a transposição da barra, cujo signo é (+), passagem do significante ao significado (s). Para que a metáfora possa ocorrer, a substituição de um significante por outro, é necessário que o significante tenha caído ao fiindo
(unterdrück). Embora tenha caído ao fiindo, não desaparece, pois é ele que possibilita a
metáfora. É o que acontece com Booz, o nome próprio está caído ao fundo.
Outro ponto importante apresentado por Freud, e posto em evidência por Lacan na obra sobre os sonhos e que remete à estrutura da linguagem, é a questão da escritura. O que Freud articula é a letra; “...a letra do discurso, em sua textura, em seus empregos, em sua imanência á matéria em causa. E isto tem a ver com o inconsciente, pois o sonho se apresenta como um enigma em imagens, imagens com valor de significante, e a partir daí o que se busca é analisar o significante no discurso. Através da leitura da estrutura da linguagem do sonho é possível sua interpretação. Nos sonhos, as duas vertentes da incidência do significante sobre o significado se reencontram, na condensação e no deslocamento. O trabalho dos sonhos obedece às leis significantes, por ser objeto de escrita, e o que Freud pretende com a análise dos sonhos é apontar as leis do inconsciente. Lacan acrescenta que a tópica do inconsciente é a
S
mesma que é definida pelo algoritmo; —
s
As leis do inconsciente implicam na co-presença dos elementos da cadeia significante horizontal e de suas contigüidades verticais. Aparecendo, então, as duas estruturas fundamentais, metonímia e metáfora.
^ idem, p. 242.
O mecanismo da metáfora é o mesmo que determina o mecanismo do sintoma, enquanto produtor de sentido do ponto de vista analítico. Enquanto a metonímia aponta para a questão do desejo, no que ele é deslizável.
Lacan assinala que a descoberta de Freud, embora seja anterior à da lingüística moderna, dá à oposição do significante e do significado o alcance devido: “...a saber que o significante tem função ativa na determinação dos efeitos onde o significável aparece como sujeitando-se à sua marca, tomando-se por essa paixão o significado.”^* Ao retomar Freud, Lacan também faz uma releitura da lingüística, formulando uma articulação entre estes dois campos teóricos.
É com a obra de Lacan que a “natureza do homem” passa a ser efeito da estrutura de linguagem, em um retomar a posteriori, pois isto já estava em Freud, pois o que seus textos buscam são as leis que regem o inconsciente, os efeitos que aparecem no nível da cadeia significante, efeitos advindos da substituição e da combinação do significante, a partir das vertentes geradoras do significado, metáfora e metonímia. “...os efeitos da substituição e de combinação do significante nas dimensões respectivamente sincrônica e diacrônica em que eles
aparecem no discurso.”^ >
Neste capítulo com o retomar dos textos da lingüística e o percurso na obra de Freud, o que se pretende é fazer um assinalamento quanto a importância da questão significante e sua articulação com o inconsciente. Inconsciente que se apresenta como tema sendo construído durante a obra fi-eudiana, tema retomado por Lacan que sustenta que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Advém daí a importância do campo da linguagem e de suas leis de metáfora e metonímia.
O que Lacan articula então, a partir da estrutura da linguagem, é o sujeito, sujeito enquanto efeito de significante. E, para tanto, procura a fiinção de corte no discurso, corte que aparece na barra entre o significante e o significado. O corte na cadeia significante possibilita verificar a estrutura do sujeito, como este sujeito se constitui enquanto sujeito do inconsciente.
_____. A Significação do Falo (1958). In: Escritos. São Paulo, Editora Perspectiva, 1966. p. 265. ^ _____. Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente Freudiano (1960). In: Escritos. São Paulo, Editora Perspectiva, 1966. p. 282.
A partir destas considerações sobre a importância da estrutura de linguagem, do significante, é que se pode articular a questão da identificação ao significante.
Em nome de que nome cujo agora me some se em nome eu soletrei? Abre em nome do rei.