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3. ANÁLISE DA ADAPTAÇÃO BLINDNESS

3.2. Análise das mudanças das personagens

3.2.1. O ladrão de carros (The thief).

No livro, o ladrão de carros é apresentado como alguém que é “explorado pelos verdadeiros donos do negócio, que esses é que se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre” (SARAMAGO, 2002, p. 25). O ladrão não tinha nenhuma intenção de roubar o carro do cego quando lhe ofereceu ajuda para levá-lo em casa, estava apenas seguindo um sentimento de generosidade e altruísmo que são “duas das melhores características do género humano” (SARAMAGO, 2002, p. 25), apenas lhe veio a idéia de roubar o carro quando já estavam chegando ao seu destino. O narrador conjectura que, talvez, se o primeiro cego tivesse aceitodo sua oferta de ficar esperando até que sua mulher voltasse, não teria perdido o carro, pois o ladrão não teria coragem de o roubar.

No filme, o ladrão (the thief) se comporta de modo diferente. Podemos ver que logo quando ele aparece, olha para a situação e para os demais que estão lá com um olhar pensativo, e, ao contrário dos outros dois pedestres que estão realmente preocupados, ele se aproxima com cautela. Isso pode indicar que já naquele momento ele estava pensando se seria possível se aproveitar da situação. Quando se prontifica a ajudar o cego, sua atitude é um tanto quanto

desesperada, não permitindo que ninguém o impeça de levar o outro para casa, sua risada nervosa.

O modo como ele deixa o cego sozinho na calçada enquanto vai estacionar o carro, não apenas é uma antecipação para o espectador do que acontecerá em seguida (o roubo do carro, pois parece que naquele é o momento em que ele é roubado), como também mostra que os sentimentos de generosidade e altruísmo da outra personagem não estão presentes. Podemos ver isso também quando o ladrão, se aproveitando da cegueira do outro, faz gestos estranhos em sua frente, em um humor pessoal que tem como base o sofrimento alheio. Mesmo esse, tal como a personagem do livro, também oferece para ficar com o cego e esperar o retorno de sua mulher. Mas não há como saber se, ao aceitar essa oferta, o cego teria seu carro roubado assim mesmo ou não.

No livro, depois que o ladrão rouba o carro do cego, tem um ataque de nervos, provocado pelo remorso:

Mas era também o remorso, expressão agravada duma consciência, como antes foi dito, ou, se quisermos descreve-lo em termos sugestivos, uma consciência com dentes para morder, que estava a pôr-lhe diante dos olhos a imagem desamparada do cego quando fechava a porta. (SARAMAGO, p. 26-27, 2002)

Para se acalmar e não fazer nada no trânsito que pudesse chamar a atenção da polícia, o ladrão de carros resolve dar uma volta, é quando cega.

No filme vemos que o que faz o ladrão abandonar o carro não é a consciência pesada, e, sim, a polícia, que o tinha mandando encostar. Desesperado, ele foge por uma rua fechada e abandona o produto de seu roubo.

No livro, quando o ladrão de carros é levado para a casa depois de cegar, por um policial, sua mulher, apesar de assustada por ver seu marido sendo trazido pelo braço por um policial, o aceita:

E a mulher, que deveria ter ficado aliviada porque o agente, afinal, vinha apenas de acompanhante, percebeu a dimensão da fatalidade que lhe entrava em casa quando um marido desfeito em lágrimas lhe caiu nos braços dizendo o que já sabemos. (SARAMAGO, 2002, p. 35)

No filme, a mulher, por medo do policial, rejeita o marido, mesmo depois de saber que ele está cego.

Woman: Can I help you?

Officer: This man says he’s your husband. He can’t see.

Woman: I don’t fucking care what he’s done. You can just turn around... Thief: Just open de fucking door!

Woman: Officer, I don’t know this man! Thief: Forget he’s a cop! Let me in! Officer: All right.

Woman: Get out! Fucker! (Grifo nosso)13

Depois de trancado junto com os outros cegos no manicômio, e depois de ter tido a coxa perfurada pelo salto do sapato da rapariga de óculos escuros, no livro, o cego, sozinho, vai buscar ajuda. Durante sua caminhada para o que ele acreditava ser ajuda, mas, na verdade, é a morte, ocorre uma transformação nele, talvez causada pela febre e pela dor, ou talvez pelo destino que inconscientemente conhecia:

De súbito, sem que ele contasse, a consciência acordou e censurou-o

asperamente por ter sido capaz de roubar o automóvel a um pobre cego; [...] Assombrava-o o espírito lógico que estava descobrindo na sua

pessoa, a rapidez do raciocínio, via-se a si mesmo diferente, outro

homem, e se não fosse este azar da perna estaria disposto a jurar que nunca em toda a sua vida se sentira tão bem (SARAMAGO, p. 78-

80).(Grifo nosso)

Já no filme, na sua caminhada podemos ver que o ladrão está com extrema dor, mas nada diz que houve uma mudança nele.

Thief: You fuckers. Are you in pain? Hey, look at me! Hey fuckers.14

13

“Mulher: Posso ser útil?/Policial: Esse homem diz ser seu marido. Ele está cego./Mulher: Eu não ligo para o que ele fez. Você pode dar meia volta.../Ladrão: Apenas abra a maldita porta!/Mulher: Policial, eu não conheço esse homem/Ladrão: Esqueça que ele é um policial! Me deixe entrar!/Polcial: Tudo bem./Mulher: Saía daqui, maldito!” (tradução nossa)

Se compararmos o ladrão de carros com o Thief, podemos ver que apesar de agirem do mesmo modo, são personagens completamente diferentes. Ambas as personagens contribuem do mesmo modo para a ação da história: levar o primeiro cego a sua casa e depois, através da sua morte, despertar a culpa na consciência da rapariga de óculos escuro:

And it’s not easy knowing that you’ve killed someone. Like I did.15

A culpa foi minha, chorava ela, e era verdade, não se podia negar. (SARAMAGO, p. 84, 2002)

Também contribuiu para mostrar como a cegueira atinge a todos e os transforma em iguais. Não importa se é um médico ou um ladrão, ambos estão na mesma situação desesperadora.

Mas o ladrão de carros, no livro, toca em uma questão que não foi do interesse do diretor em trazer ao filme por meio dessa personagem, a exploração, já que o ladrão de carros é explorado pelos verdadeiros donos do negócio e a complexidade moral, uma vez que ele, apesar de ladrão, apresenta generosidade e altruísmo. Essas questões serão trazidas pelo rei da ala 3 e pela rapariga de óculos escuros, como veremos adiante.