• Nenhum resultado encontrado

O primeiro cego e a mulher do primeiro cego (First blind man and First blind man’s wife)

3. ANÁLISE DA ADAPTAÇÃO BLINDNESS

3.2. Análise das mudanças das personagens

3.2.7. O primeiro cego e a mulher do primeiro cego (First blind man and First blind man’s wife)

No livro, a briga da mulher com o primeiro cego acontece quando ele tenta proibi-la de ir com as outras mulheres à camarata dos cegos maus em troca de comida:

Cada qual procede segundo a moral que tem, eu penso assim e não tenciono mudar de ideias, retorquiu agressivo o primeiro cego. [...] Sou tanto como as outras, faço o que elas fizerem, Só fazes o que eu mandar, interrompeu o marido, Deixa-te de autoridades, aqui não te servem de nada, estás tão cego como eu, É uma indecência, Está na tua mão não

seres indecente, a partir de agora não comas, foi a cruel resposta, inesperada em pessoa que até hoje se mostrara dócil e respeitadora do seu marido. (SARAMAGO, 2002, p. 167-168)

No filme, essa briga não é tão inesperada assim. Em uma cena diante do fogo, o primeiro cego tenta relembrar um ano novo que passou com sua esposa antes de se casarem, essa memória é despertada pelo fogo, mostrado ao fundo. Mas as palavras do primeiro cego não alcançam o espaço que separa os dois, que é mostrado visualmente com um close no banco e o espaço entre eles. A mulher não quer ouvir o marido falando desses tempos, e sua justificativa é que não consegue fingir. Nesse instante, a cena se abre e mostra que, na realidade, aquele fogo que lembrava ao marido uma fogueira em um templo, não passa de uma pilha de lixo sendo queimado. A mulher não consegue fingir que aquele fogo é outra coisa senão uma lembrança do lugar desesperador em que se encontram e não o fogo de sua lembrança. Quando a mulher do cego rejeita o marido, se ouve a música característica da cegueira.

A partir dessa cena, vemos a mulher do primeiro cego apática, deitada em seu catre a maior parte do tempo. Talvez esse comportamento não apenas seja efeito da tristeza de sua situação, mas também do medo de se mover em um lugar que não consegue ver. No filme, essa briga não é uma surpresa por ela ter desafiado o marido, mas, sim, porque ela saiu de sua apatia para apoiar as outras mulheres.

Linda Hutcheon diz que, em uma adaptação, não apenas o diretor pode mudar algumas coisas (ou várias) como os próprios atores contribuem nessas mudanças e, muitas vezes, não apenas por intermédio de sua atuação.

[Na cena] eles começam lado a lado, estão banhados pela cálida luz de uma fogueira que crepita aconchegantemente. Tudo ao redor está desfocado, a imagem é romântica e ele tenta reconfortá-la. Havia um texto no roteiro, mas Yusuke me pediu para substituí-lo por uma história real de uma experiência que ele viveu com Yoshino, que aconteceu também na frente de uma fogueira. [...]. Como é sempre mais fácil derrubar do que construir, foi fácil plantar esse conflito entre o casal, mas depois era preciso criar uma solução para ele. [...]. Então, nessa tarde, sentado no set com os atores, o próprio Yusuke me entregou a solução de bandeja: como havia uma lareira na casa do Médico, para onde todas as personagens vão no final, a ideia seria colocar o casal ali, ao lado do fogo, fazer um enquadramento muito parecido com o da cena do muro e então a Mulher do Primeiro Homem Cego, que estaria em silêncio ao lado do marido, talvez pensando sobre os vários acontecimentos pelos quais passou durante as últimas semanas, de repente vira-se para ele e responde à pergunta de semanas atrás: “Eu me lembro daquele dia sim”. Ele sorri levemente. E assim a conexão entre os dois se restabelece. Ponto. (MEIRELLES, 2010, p. 78, 81-82)

No filme, essa personagem mantém algumas características que o narrador do livro condena, como uma moral vazia e o controle sobre a mulher. Mas a tentativa de consolar a mulher diante do fogo ameniza muitas dessas características no filme, transformando a personagem aos olhos do espectador.

3.3. Animalização

Durante o livro, é comum a aproximação do animal com o ser humano. Os cegos são comparados a rebanhos, tanto quando chegam ao manicômio quanto no momento em que saem. No primeiro caso, são como um rebanho de encaminhando ao matadouro:

Os gritos tinham diminuído, agora ouviam-se ruídos confusos no átrio, eram os cegos, trazidos em rebanho, que esbarravam uns nos outros, comprimiam-se no vão das portas, uns poucos perderam o sentido e foram parar a outras camaratas, mas a maioria, aos tropeços, agarrados em cachos ou disparados um a um, agitando aflitivamente as mãos em jeito de quem está a afogar-se, entraram na camarata em turbilhão, como se viessem a ser empurrados de fora por uma maquina arroladora. (SARAMAGO, 2002, p. 72-73)

Na cena da abertura do livro, os carros se parecem com cavalos:

Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos

nervosos que sentissem vir no ar a chibata. (SARAMAGO, 2002, p.

11). (Grifo nosso)

O trânsito, no livro, é descrito como animalesco, afastando as pessoas, que lá estavam, da humanidade. No filme, essa descrição não existe, mas o barulho ensurdecedor das buzinas dos carros e das pessoas gritando uma com as outras, mostra que elas, apesar de não estarem de afastando da humanidade por sua animalização, afasta-se da humanidade à medida que certos sentimentos não estão presentes, como a solidariedade, na maioria delas. A narrativa inicia-se com uma cena no transito de uma cidade grande. O barulho incessante de buzina e de motores roncando, ao mesmo tempo que dá a idéia de uma cidade moderna, também sugere ao espectador um distanciamento entre as pessoas.

Também há outros momentos da narrativa onde os humanos são comparados com animais, como, além do rebanho de cegos, os cegos liderado pelo cego da pistola, que são comparados a porcos:

O que as aterrorizava não era tanto a violação, mas a orgia, a desvergonha, a previsão da noite terrível, quinze mulheres esparramadas nas camas e no chão, os homens a ir de umas para

outras, resfolegando como porcos. (SARAMAGO, 2002, p. 184)

Ou até mesmo quando os cegos saem do manicômio e são novamente comparados a um rebanho, mas não um que está indo para um matadouro, mas um que, desamparado, não tem um pastor para que cuide dele.

Também ocorre ao contrário. Há um animal, na narrativa, que se afasta dessa sua natureza e se aproxima da natureza humana: o cão das lágrimas. No livro, esse cão encontra a mulher quando ela, sozinha, chora, pois está perdida e não consegue voltar para o seu grupo, depois de ter se separado deles para buscar alimentos. Nesse momento, em um gesto de conforto, o cão lhe lambe as lágrimas. Nessa cena, vemos o elemento água sendo usado como simbolismo de união (como será feito mais algumas vezes na narrativa, e será analisado mais adiante, e não apenas isso): é somente depois de ter encontrado o cão é que a mulher do médico consegue se localizar novamente, percebendo que há perto dela um mapa da cidade. Esse cão, simbolicamente, lhe serve como guia, permitindo-lhe voltar para o seu grupo. E ao mesmo tempo contrasta com os humanos-animais que a mulher tinha se deparado até aquele momentos, os cegos do cego da pistola e os cegos no supermercado que lhe farejaram a comida.

No filme, a mulher do médico não se perde, ela não foi sozinha buscar alimento para seu grupo, a marido a acompanha. Ela não chora porque está perdida, mas, sim, por desespero e desamparo. O ato confortador do cachorro do livro se repete, e também o contraste com os cegos animalizados que ela encontrou, mas ele não serve como guia.