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Lagoa das Pedras e Encantado do Bom Jardim

No documento UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS (páginas 86-90)

2.5 PROCESSOS DE ORGANIZAÇÃO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO

2.5.1 Formação Histórica

2.5.1.2 Lagoa das Pedras e Encantado do Bom Jardim

As Comunidades dos Remanescentes de Quilombo de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, município de Tamboril, no Estado do Ceará, são formadas por duas comunidades tradicionais negras e rurais, ambas originadas pelos descendentes de duas famílias negras da região, com ancestrais escravos. Trata-se das famílias-tronco POSSIDÔNIO e IRÉ, cujos descendentes se misturaram ao longo do tempo através de trocas matrimoniais formais e informais.

Por mais de um século de entrelaçamentos familiares entre as duas famílias POSSIDÔNIO e IRÉ e com outras famílias da região, por meio de casamentos, ou relacionamentos extras conjugais, várias mudanças aconteceram, inclusive os sobrenomes das famílias, sem que perdessem o vínculo com as origens quilombolas.

A maioria dos Possidônio assinam com o sobrenome “Ferreira dos Santos”, enquanto a maioria dos Iré assinam com o sobrenome “Ribeiro de Souza”, mas o vínculo com a ancestralidade negra e escrava está garantida não somente por esses sobrenomes, mas sobretudo pela genealogia das famílias

(MARQUES, 2009, p. 17).72

A família Possidônio, conforme consta no relatório Antropológico (p. 23), teve origem em uma escravizada, por nome de Maria da Conceição, apelidada por “Prisca”. Ela foi escravizada do Tenente Coronel José Felipe Ribeiro Campos, na fazenda Campo Nobre, no município de Tamboril. Prisca era uma escrava doméstica, não tinha marido, mas teve três filhos. Um se chamava Pocedonio Ferreira Lima, do qual se originou a família Possidônio.

A família Irê, por sua vez, originou-se a partir da escravizada Maria Simplício de Sousa, apelidada por Maria Irê. A mesma foi escrava do Cel. João Carlos, na região de Serra das Matas, mais precisamente na localidade de Morros, no município de Tamboril (p. 28).

Os descendentes de Maria da Conceição (Prisca) e Maria Simplício de Sousa (Maria Irê), após suas alforrias, migraram das respectivas fazendas, onde foram escravizadas, para outas comunidades próximas, na busca de trabalhos para sobreviverem. Até então não se conheciam, mas na década de 1920 chegaram às terras do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, onde passaram a trabalhar para o proprietário Francisco Holanda Mello e depois, a partir de 1933, para o Cel. Antonio Zeferino Veras. No Bom Jardim e Lagoa das Pedras os descendentes da família Iré se misturaram com os descendentes da família Possidônio, através de trocas matrimoniais formais e informais (p. 29).

Para o antropólogo José da Guia Marques, responsável pela elaboração do RTID das Comunidades dos Remanescentes de Quilombo de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, nessa comunidade surgem fortes lideranças do movimento pela organização das comunidades no Ceará:

(...) desde que tomaram consciência de suas genealogias e da trágica realidade de seu povo, procuraram lutar pelo resgate da identidade étnico- racial e das origens históricas de suas comunidades, da ancestralidade de seus parentes e dos direitos territoriais de sua gente. Seu José Renato Ferreira dos Santos, conhecido como Baiano, tem sido o grande incentivador da organização do povo quilombola, não só em sua comunidade, mas no município de Tamboril e em todo o estado do Ceará. Desde 2007 lidera a Comissão Estadual dos Quilombolas Rurais do Ceará – CEQUIRCE. (MARQUES, 2009, p. 84).

72 Essas informações estão no Laudo Antropológico das comunidades Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, foi elaborado por MARQUES, J. da G. Relatório Antropológico de Reconhecimento e Delimitação do Território das comunidades de remanescentes de quilombolas Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras. Fortaleza: INCRA/SR-02/F/F4 CE, 2009.

Percebe-se que o processo de organização das Comunidades dos Remanescentes de Quilombo de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras foi motivado pelo desejo dos moradores de se reencontrarem com sua história, ou seja a história de sua ancestralidade. A defesa do resgate de uma identidade étnico-racial é uma manifestação coletiva, dado o nível de consciência dos remanescentes de quilombolas.

Para Renato Baiano, quando se refere às etapas de conquista do território, ele afirma que a comunidade sabe o que quer e conhece os seus direitos,

(...) já era uma expectativa e agora é uma grande vitória. Foi também um resgate para as famílias do que já era delas, além de contribuir para fortalecer a criação do território do nosso povo, esse nível de consciência vem da luta e da formação política que a comunidade tem. Não importa apenas conquistar o território, mas também entender que é um direito historicamente negado e que agora está assegurado na Constituição Federal de 1988.73

O direito à área requisitada pelos remanescentes de quilombolas da comunidade Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, para Renato Baiano, é justo, pois as famílias Possidônio e Iré, desde a década de 30 do século XX, trabalham na área pleiteada como território quilombola. Ao longo de décadas desenvolvem atividades rurais (agricultura e pecuária), com métodos de subsistências, com foco na manutenção de suas famílias. A caça e a pesca fazem parte dessas atividades de subsistência. Para Marques (2009, p. 109), os ancestrais dessas comunidades foram expulsos, tiveram seus espaços de trabalhos reduzidos por posseiros que se dizem donos.

Conforme Renato Baiano, os descendentes das famílias tronco, após as alforrias ou a própria abolição (1884) foram se aglomerando na Fazenda Bom Jardim, trabalhando no sistema de parceria nas terras do Cel. Antonio Zeferino Veras.

Para os mais antigos o Coronel era como um pai. Eles eram explorados, trabalhavam três dias por semana, sem receber nada, mas mesmo assim achavam o dono da fazenda um protetor. Cel. Antonio Zeferino Veras pouco antes de sua morte decidiu doar pequenas partes de suas terras, situadas na Fazenda Bom Jardim, para 12 famílias de descendentes dos troncos familiares Possidônio e Iré, representadas por aqueles chefes de família que sempre lhe serviram e obedeceram durante todo o tempo em que viveram e trabalharam em suas terras. O dito coronel veio a falecer antes de concretizar formalmente a doação dos lotes de terras às famílias quilombolas, porém

essa doação foi concretizada e registrada em cartório pela filha e herdeira do Cel. Zeferino, Sra. Maria Antonieta Coelho Veras Sousa. Posteriormente a herdeira do Cel. Zeferino, Dona Antonieta Veras, passou a vender para terceiros as demais áreas de terras pertencentes à antiga Fazenda Bom Jardim, áreas estas que eram utilizadas tradicionalmente pelos remanescentes quilombolas para a produção de roças, caça, pesca e extrativismo, ficando os mesmos confinados em seus pequenos lotes de terras “doados” pelo coronel verbalmente e, referendados formalmente por sua filha e herdeira após a morte do coronel, e na área do Assentamento Lagoa das Pedras. Sem área de expansão e sem direito de acesso a antigas áreas de produção de roças, de caça, pesca e coleta, agora nas mãos de terceiros, os quilombolas passaram a se ressentir da falta de terra para trabalhar e para garantir a sobrevivência de suas famílias e a reprodução física, social, econômica e cultural de suas comunidades, conforme estabelece o Decreto 4.887/2003.

Os atuais Remanescentes de Quilombolas de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras reivindicam a devolução da terra ao seu domínio e posse, por entenderem que são os verdadeiros donos, pois carregam na memória coletiva as marcas da ocupação e uso do território pelos seus antepassados, que comprovam e legitimam o seu direito de “herança”. Para Renato Baiano, “a reconquista do território não será fácil, mas a comunidade decidiu e vamos lutar pelos nossos direitos até o fim”.

Conforme o RTID, o território proposto pela comunidade é de uma área de 1.959,74 hectares. A comunidade em assembleia aprovou a área do território e encaminhou para o INCRA/CE que terá que realizar o processo de negociação e aquisição.

Renato Baiano afirma “que a luta pela conquista do território surgiu quando a comunidade se conscientizou dos seus direitos”, também foi importante o reencontro identitário, a valorização da ancestralidade, o respeito a cultura afro e o reconhecimento da importância dos negros e negras na construção do Brasil. Hoje a comunidade reconhece e vive valores humanos que a história havia apagado da memória dos afrodescendentes cearenses.

No que se refere as questões religiosa, os remanescentes de quilombolas das comunidades de Encantado do Bom Jardim e Lagoa das Pedras se definem como católicos, mas não há nenhum templo no interior dessas comunidades. Há apenas uma pequena capela em homenagem a Santo Antonio na sede da Fazenda Bom Jardim. Conforme Baiano, “há muito tempo os atos religiosos não são realizados nela e sim no salão da associação”.

reuniões sistematicamente para o exercício de suas crenças na sede da associação comunitária, lá celebram novenas, missas, batizados, casamentos, terços, velórios ou outros rituais. Realizam anualmente, no mês de junho, o Festejo de Santo Antonio, com a realização de novenas, quermesses, partilhas. Na última noite tem uma missa e em seguida o leilão de encerramento. O festejo tradicional do padroeiro da comunidade, ocorre uma vez por ano, no mês de junho, encerrando-se no dia 13 de junho.

No documento UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS (páginas 86-90)