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LECTOR IN FABULA: REFLEXÕES SOBRE INTERPRETAÇÃO LECTOR IN FABULA: REFLECTIONS ON INTERPRETATION

Darcilia M. P. Simões UERJ/CNPq/SELEPROT

darciliasimoes@gmail.com

Justificativa

Considerando a vastíssima obra de nosso

homenageado, o semioticista italiano Umberto Eco, alguns leitores poderão se fazer essa pergunta. No entanto, a eleição de Lector in Fabula (primeira edição, 1979) — como tema deste artigo — advém de se tratar de um volume dedicado à importância da colaboração entre autor e leitor na produção da interpretação de textos. Neste livro, Eco se restringe à investigação exclusiva dos fenômenos verbais, o que facilita nosso recorte ao propor uma reflexão sobre a interpretação de textos.

Obviamente, as limitações de uma comunicação em encontro acadêmico não permitem esgotar-se um texto tão rico quanto Lector in Fabula, por isso, fixei o foco nas relações entre o texto, a cooperação do leitor e os limites da interpretação.

Com a ajuda do dicionário, percebe-se que esse título permitiu que estudioso transitasse desde a ficção até a crítica, no que diz respeito ao trabalho cooperativo de autor, texto e leitor na produção de uma obra. Vejam-se as informações dicionarizadas.

No Dicionário Aurélio Eletrônico,

fabula. [Do lat. fabula.] Substantivo feminino. 1. Historieta de ficção, de cunho popular ou artístico. 2. Narração breve, de caráter alegórico, em verso ou em prosa, destinada a ilustrar um preceito: as fábulas de

La Fontaine. [Cf., nessas acepçs., apólogo.] 3.

Mitologia, lenda: os deuses da fábula. 4. Narração de coisas imaginárias; ficção: “Martius demonstrou que a história do Brasil seria fábula ou romance se lhe faltassem as bases da etnografia regional, e da etnografia geral” (E. Roquete-Pinto, Seixos Rolados, p. 257). 5. V. fabulação (2). 6. Fig. Assunto de crítica ou mofa. 7. V. enredo (5). 8. Bras. Quantia ou importância muito elevada; grande soma de dinheiro:

Gastou uma fábula com o carro. [Tb. se diz, nesta

acepç., fábulas, mas sem artigo.] [Dim. irreg.: fabela. Cf. fabula, do v. fabular.]

No Dicionário Houaiss Eletrônico, tem-se:

fabula  substantivo feminino. 1 Rubrica: literatura. Curta narrativa, em prosa ou verso, com personagens animais que agem como seres humanos, e que ilustra um preceito moral. Ex.: as f. de Esopo. 2 Rubrica: literatura. Narração de aventuras e de fatos (imaginários ou não); fabulação. 3 Rubrica: literatura. História narrada das ações dos deuses e heróis greco- romanos; mitologia. 4 Derivação: por extensão de sentido. Fato inventado; invencionice. Ex.: aquilo é

pura. 5 Derivação: sentido figurado. Pessoa ou fato

que dá margem a crítica ou zombaria. Ex.: sua vida

amorosa é a f. da cidade. 6 Derivação: por extensão

de sentido. Regionalismo: Brasil. Uso: informal. Avultada quantia em dinheiro. Exs.: o colar custou

Segundo o Dicionário Latino-Português,

2. fābŭla, -ae [fari], f. 1. Conversação; objeto ou assunto de conversação; narração. 2. Narração dialogada e posta em cena; peça teatral. 3. Narração mentirosa ou fictícia; fábula, apólogo; historieta. 4. Conto; história; mentira; peta. 5. Sombra; ser sem realidade; palavra vã. (Torrinha, 1942)

Dada a informação lexicográfica, confronto-a com a definição de Eco ([1979] 1986, p. 85):

Fábula é o esquema fundamental da narração, a lógica das ações e a sintaxe das personagens, o curso de eventos ordenado temporalmente. Pode também não constituir uma sequencia de ações humanas e pode referir-se a uma série de eventos que dizem respeito a objetos inanimados, ou também a ideias.

A partir dessa noção engendrou os conceitos de autor-

modelo e leitor-modelo (conceitos que serão apresentados

adiante), bem como discorreu sobre um processo de “interpretação ideal”, segundo meu entendimento.

Ilustrando com “Édipo Rei”, Eco fala sobre duas leituras possíveis para o texto da tragédia grega. Segundo a competência intertextual do leitor, o texto “Édipo Rei” poderá ser reduzido à história de um rei que abandona o próprio filho com medo da profecia de que este um dia o mataria. E o leitor paulatinamente se desinteressa do texto por não encontrar razão de uma leitura de algo que não lhe diz respeito. Já o leitor-modelo desejado por Eco já seria conhecedor do Mito de Édipo — que é pressuposto para o entendimento da peça teatral em foco — e acompanharia apaixonadamente o desenrolar da trama, sabendo mais que a personagem-tema, refletindo sobre outro enredo em que Édipo, paradoxalmente,

convive com a verdade sem identificá-la a despeito de procurá-la ou rejeita tal hipótese até render-se às evidências. O leitor identifica essa fábula com a história de alguém que, culpado, recusa-se a reconhecer outra história, lendo “de olhos vendados” os signos que a materializam.

Esse recorte do pensamento de Eco e suas lucubrações sobre enunciação e interpretação me proporcionam conforto intelectual. Sua proposta teórica em dois níveis — (i) os códigos e a competência enciclopédica e (ii) uma teoria das regras de geração e interpretação das atualizações discursivas — está presente em minhas pesquisas atuais, na persecução de meios e modos de analisar e ensinar como se produz e como se interpretam os textos.

Segundo o autor, no nível (i):

uma língua (sistema de códigos interconexos), num nível próprio e ideal de institucionalização, permite (ou deveria permitir) prever todas as suas possíveis atualizações discursivas, todos os possíveis usos em circunstâncias e contextos específicos. (Eco, 1986, p. 1-2)

Situando essa perspectiva entre as semióticas textuais de segunda geração, o autor de “Obra Aberta” (1962) se debruça sobre a tentativa de criar uma teoria do discurso fulcrada na teoria pragmática do texto, rejeitando assim as experiências de análises componenciais (pelas teorias de primeira geração), com caráter dicionário, as quais elidiam do quadro teórico o componente enciclopédico.

Volto a Eco

(...) há sistema de significação (e portanto código) quando existe uma possibilidade socialmente convencionada de gerar funções sígnicas, independentemente do fato de serem os funtivos de tais funções unidades discretas, chamadas signos, ou vastas porções discursivas, contanto que a correlação tenha sido estabelecida, precedente e preliminarmente por uma convenção social. (Eco, 1980, p. 2).

Partindo da premissa de que um falante nativo tem possibilidade de inferir um significado para uma expressão isolada, além de poder “adivinhar” seu contexto linguístico e possíveis circunstâncias de enunciação, Eco chama atenção para o fato de que a “expressão possui um significado próprio virtual que permite que o falante adivinhe seu contexto” (ECO, 1986, p. 3), destacando assim a importância do contexto e da(s) circunstância(s) na produção do significado pleno e completo de uma expressão, de um texto.

Dialogando com o edifício teórico de Peirce, Eco busca descrever os rumos de uma pragmática do texto. Parte da ideia de que “toda a vida cotidiana apresenta-se como um retículo textual em que os motivos e as ações” (Idem, p. 30), tanto as expressas com objetivos comunicativos explícitos, como as consequências destas “tornam-se elementos de um tecido semiótico em que qualquer coisa interpreta qualquer outra” (ib.). Acrescenta ainda que um termo, que é incoativamente uma proposição ou um argumento, não signifique tudo o que poderá/poderia ser emitido textualmente. Todavia, considerados os implícitos, os argumentos potenciais, as remotas pressuposições etc., o processo interpretativo impõe a definição de limites, de rumos