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A legitimação pelo procedimento: o controle difuso e o direito de todo cidadão de

CAPÍTULO 5 – A RECONSTRUÇÃO DO CONTROLE CONCRETO E DIFUSO DE

5.5 A legitimação pelo procedimento: o controle difuso e o direito de todo cidadão de

Numa perspectiva habermasiana, é legítimo aquilo em torno do que os participantes podem unir-se por si mesmos, sem depender de outrem, ou seja, quando há o assentimento fundamentado de todos em uma deliberação racional, sob as condições das suas teorias do discurso e da ação comunicativa.379

Nesse sentido, Jürgen Habermas vê como problemática a existência do controle judicial de constitucionalidade380, ao menos do ponto de vista da separação entre os poderes, e acrescenta que “a concorrência do tribunal constitucional como legislador legitimado democraticamente pode agravar-se no âmbito do controle abstrato de normas.”381 O filósofo

alemão também pondera que “o controle abstrato de normas é função indiscutível do legislador. Por isso, não é inteiramente destituído de sentido reservar essa função, mesmo em segunda instância, a um autocontrole do legislador, o qual pode assumir proporções de um processo judicial”. Assim, conclui que “a transmissão dessa competência para um tribunal constitucional implica uma fundamentação complexa”.382

Nessa linha argumentativa, Habermas afirma que a Constituição determina procedimentos políticos, segundo os quais os cidadãos devem assumir o seu direito de

379 “- Em primeiro lugar, constatamos que só pode ser tido por legítimo aquilo em torno do qual os participantes da deliberação livre podem unir-se por si mesmos, sem depender de ninguém – portanto, aquilo que encontra o assentimento fundamentado de todos, sob as condições de um discurso racional. Isso não exclui, naturalmente a possibilidade do falibilismo, pois a busca da única resposta correta não é capaz de garantir, por si mesma, um resultado correto. Somente o caráter discursivo do processo de deliberação é capaz de fundamentar a possibilidade de autocorreção reiteradas e, destarte, a perspectiva de resultados racionalmente aceitáveis. – Em segundo lugar, constatamos que os participantes se comprometem, através de um questionamento específico, a assumir o direito moderno como medium para regular sua convivência. Ora, o modo de legitimação de um assentimento geral obtido sob condições do discurso, e a ideia de leis obrigatórias que abrem espaço para iguais liberdades subjetivas fazem jus ao conceito kantiano de autonomia política: aqui ninguém é livre, enquanto houver um único cidadão impedido de gozar da igual liberdade sob as leis que todos os cidadãos se deram a si mesmos, seguindo uma deliberação racional.” (HABERMAS, Jürgen. Era das transições. (trad. Flávio Siebeneichler). Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 2003. p. 162)

380 Além disso, Habermas ressalta que a existência de tribunais constitucionais não é autoevidente e reflete que “é sempre útil considerar se o reexame desta decisão parlamentar também poderia dar-se na forma de um autocontrole do legislador, organizado em forma de tribunal, e institucionalizado, por exemplo, numa comissão parlamentar que incluir juristas especializados.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. (trad. Flávio Beno Siebeneichler). v. 1. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 2010. pp. 298/300)

381 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. (trad. Flávio Beno Siebeneichler). v. 1. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 2010. pp. 299/300.

382 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. (trad. Flávio Beno Siebeneichler). v. 1. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 2010. pp. 301.

autodeterminação e perseguir cooperativamente o projeto de produzir condições justas de vida. Assim, somente condições processuais de gênese democrática das leis assegurariam legitimidade ao direito. Com base nessa compreensão democrática, Habermas conclui que “é possível encontrar um sentido para as competências do tribunal constitucional, que corresponde à intenção da divisão dos poderes no interior do Estado de Direito”, qual seja, “o tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos”.383

Em outra perspectiva e com matriz filosófica diversa, Samuel Freeman afirma que a maior crítica democrática que existe no controle de constitucionalidade não deve ser o fato de que os juízes não são eleitos. O problema é que esse poder limita os direitos democráticos dos cidadãos de, como iguais, participar e influenciar os processos políticos de tomada de decisão que afetam significativamente suas vidas.384 No Brasil, as circunstâncias indicam que é melhor que o ingresso dos juízes na carreira não se dê por eleição. Todavia, mesmo que eles fossem eleitos e prestassem contas à maioria, as objeções ao controle de constitucionalidade permaneceriam.

Niklas Luhmann, na obra Legitimação pelo Procedimento, propõe que, para ser legítimo, o ato estatal de tomada de decisão deve proporcionar a participação ativa daqueles que serão por ela atingidos, ainda que num futuro incerto.385

Levando-se em consideração a discussão de legitimidade democrática, sob todas essas perspectivas, poder-se-ia indagar: Se o principal déficit democrático do controle de constitucionalidade é o fato de que ele limita os direitos de participação democrática dos cidadãos de influenciar na tomada de decisão, poder-se-ia afirmar que a crítica democrática

383 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. (trad. Flávio Beno Siebeneichler). v. 1. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 2010. pp. 326.

384“To formulate the basic problem of judicial review in terms of its being contrary to majoritarianism and electorally accountable policymaking focuses upon symptoms of what must be a deeper problem. Constitutionally, federal judges in the United States are appointed by the executive, with life tenure subject to good behavior. There are good reasons for this practice, some having to do with judicial review. But the fact that federal judges are not accountable to the majority is an institutional fact about the constitution of our national government. Judges could be elected to office for a set term, as they are in many states' systems, and reservations about judicial review would remain. The basic problem with judicial review is not that judges are not electorally accountable to majority will. Instead it must be that the exercise of this power works as a constraint upon the equal right of citizens in a democracy to take part in and influence the government decision-making processes that significantly affect their lives.” (FREEMAN, Samuel. Constitutional Democracy and the Legitimacy of Judicial Review. Law and Philosophy, v. 9, n. 4, pp. 327-370, nov. 1990. p. 333)

385 Nesse sentido, Niklas Luhmann: “Assim o interessado pode participar duma forma racional e atuar num presente sempre atual, ainda que viva para um futuro incerto. A decisão não recai sobre ele como uma surpresa inesperada, como sorte ou desgraça que se aguarda com perplexidade sem se poder tomar posição, mas como resultado de um processo de decisão, na medida em que uma pessoa se pode preparar para ele pela participação e ação” (LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília : Universidade de Brasília, 1980. p. 187).

atinge o controle de constitucionalidade brasileiro como um todo? O controle concentrado e abstrato de constitucionalidade proporciona a participação de todos os atingidos? E o controle difuso e concreto?

Assim, é preciso perquirir se o déficit de legitimidade democrática não estaria – ou, ao menos, se não seria mais grave – no controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, já que neste modelo seriam maiores os riscos de que o Judiciário, pela Corte Constitucional, invada um espaço de decisão política que deveria ser reservado aos demais Poderes Constituídos e à sociedade, considerando que os efeitos da decisão judicial, nesta modalidade de controle de constitucionalidade, serão gerais e abstratos, de forma semelhante a uma lei editada pelo Parlamento.

De outro lado, no controle difuso e concreto de constitucionalidade, a decisão judicial é dada sobre um determinado caso concreto, num processo em que as partes puderam participar, produzir provas, apresentar suas alegações e influenciar no processo decisório. Com base nessa perspectiva, o controle difuso de constitucionalidade, realizado de forma pontual pelas diversas instâncias judiciais, e que permite a participação daqueles que serão atingidos pela decisão, talvez seja mais consentâneo com uma postura de respeito e consideração à autonomia pública dos cidadãos e à necessidade de não interferência demasiada no processo de evolução social.

Com efeito, o déficit democrático e de legitimidade parece não acometer tanto a decisão judicial para o caso individual. Se não existe regra específica que regule o caso concreto inédito, sobre o qual inexistem precedentes judiciais, ou se a aplicação da regra ao caso afronta flagrantemente a Constituição, talvez seja inevitável que o juiz crie uma solução para o caso concreto mesmo que o parlamento não tenha dado uma resposta para essa situação específica, com base em normas constitucionais abstratas. Neste caso, alguém pode até dizer que a autoridade de um juiz, não eleito pelo povo, tem algum déficit democrático, mas a decisão do caso concreto será inevitável. Isto é, no controle difuso de constitucionalidade, apesar de eventual déficit de legitimidade democrática, há uma contingência da qual não se pode escapar.

Entretanto, do ponto de vista democrático – sobretudo na acepção de democracia discursiva –, será mais problemática uma decisão judicial no controle abstrato de constitucionalidade. Neste modelo, a Corte Constitucional não é chamada para julgar um caso concreto, senão para decidir se uma lei editada pelo Parlamento deve ser aplicada ou retirada do ordenamento jurídico, em razão da interpretação dada pelo Judiciário sobre a sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Com efeito, nesta hipótese, o Judiciário não

decide o caso concreto, mas está controlando em abstrato a atividade do Poder Legislativo; a Corte não julga o direito subjetivo de determinada pessoa, pois decide sobre a possibilidade de aplicação ou não de uma norma em abstrato, segundo a sua interpretação; enfim, a Corte Constitucional, em abstrato, sobrepõe a sua interpretação acerca da norma constitucional à interpretação do Poder Legislativo.

No controle difuso, ao revés, existe um amplo debate sobre questões jurídicas constitucionais e infraconstitucionais, e sobre os fatos relacionados, desde a primeira instância judicial até a Corte Constitucional. No princípio, as partes se manifestarão, darão as suas versões, exporão os seus fundamentos, produzirão as suas provas e formularão as suas teses; ao final, o juiz de primeira instância estará obrigado a analisar todas as questões suscitadas pelas partes na sua sentença, sob pena de, em não o fazendo, tê-la cassada pelo tribunal, por falta de fundamentação. Além disso, se as partes não tiverem contentes com a sentença judicial, poderão recorrer dela a uma instância judicial superior. Quando o processo chega ao tribunal, novamente os desembargadores terão de analisar os argumentos da decisão do juiz monocrático e também dos advogados no recurso e nas contrarrazões recursais. A consistência da decisão do tribunal, pelo voto dos seus desembargadores, estará sempre suscetível, ao menos na questão constitucional, de ser reanalisada pelo STF em recurso extraordinário.

Assim, observa-se que, no controle difuso de constitucionalidade, o procedimentalismo que lhe é inerente garante que todos aqueles que serão atingidos pela decisão concreta possam se manifestar e influenciar o processo decisório. Logo, por resolver a questão da constitucionalidade apenas incidentalmente, não atinge as pessoas que não puderam participar do processo. Além disso, no controle difuso, a própria atividade decisória é mais complexa, já que envolve diversas instâncias judiciais e controle interno – pelas instâncias judiciais superiores – do controle de constitucionalidade.

De outro lado, no controle concentrado e abstrato, há a participação de pouquíssimos atores, como já se expôs anteriormente. Portanto, neste modelo de controle, a decisão é tomada sem que os cidadãos e a maioria das instituições sejam ouvidos.

Assim, a participação do Supremo Tribunal Federal é de extrema importância, mas apenas como uma etapa de um processo de interpretação constitucional continuado e compartilhado com as instâncias judiciais inferiores, com o Poder Executivo, com o

parlamento, com as demais instituições e com os cidadãos.386 Por isso, o controle difuso e concreto de constitucionalidade apresenta-se como um instrumento mais adequado e mais democrático, hábil a respeitar esse procedimentalismo legitimador e não reducionista do papel dos demais sujeitos constitucionais.

5.6 Reconstruindo o controle de constitucionalidade: o controle difuso como