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Legitimando propostas de reformulação processual em tempos de “crise” do sistema penal

Regra 3 (R3): A execução imediata em primeira instância de uma condenação soberana imposta pelo Tribunal do Júri (P1), em julgamento refeito contra o qual não caiba no

6. A LEGITIMIDADE SUPRADOGMÁTICA DA EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA CRIMINAL

6.1. Legitimando propostas de reformulação processual em tempos de “crise” do sistema penal

Constantemente surgem novos fatos e eventos que fazem repensar a maneira como se faz ou se entende o Direito Penal. Rebeliões carcerárias violentas, crimes brutais, indignidade das instalações carcerárias, violações institucionais de direitos fundamentais, abusos policiais e tantas outras questões tornam inevitável o discurso de que haveria uma crise no sistema penal que o deslegitimaria, bem como todas as propostas que visassem fortalecê-lo, como, por exemplo, a execução provisória ou antecipada da pena.

Zaffaroni defende que não se poderia falar de uma crise do sistema penal, compreendida a expressão como uma falência ou descrédito temporário e relacionado a um determinado sistema em dado momento histórico, já que os elementos responsáveis pela dita crise não seriam conjunturais e sim “estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais”161.

Por essa linha ideológica caminharam os teóricos da criminologia crítica, que identificam pontos fundamentalmente colapsais dentro do sistema penal e o veem como um aparelho de controle e higienização das classes marginalizadas. Alessandro Baratta, nessa mesma perspectiva, desenvolve uma linha político-criminal alternativa que se dirige da máxima contração até a superação do sistema penal, tido por ele como um sistema “capilar e totalizador de controle do desvio, através de instrumentos administrados por uma autoridade superior e distante das classes sobre as quais, sobretudo, este aparato repressivo exerce a própria ação”162.

Construiu-se, então, a ideia de que as críticas ao sistema penal deveriam conduzir o pesquisador a uma conclusão necessariamente abolicionista, ou, no mínimo, à dita teoria agnóstica da pena que, embora a entenda como um fenômeno inevitável das sociedades atuais, compartilha da expectativa abolicionista de superação do modelo sancionatório163. Vê-se com desdém acadêmico todos aqueles que procuram trabalhar com reformulações do sistema penal, afirmando-se que qualquer discurso de justificação ou legitimação da pena é simples desculpa para a expansão ilegítima do poder punitivo164.

161 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 15. 162 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 205-206.

163 CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

Decerto que não se podem ignorar tais críticas. O estudo das ciências criminais, sejam eles com enfoque material, processual ou de política criminal, não pode abster-se das contribuições da Criminologia, já que ela é a fonte estrutural de todo o estudo penal. Diz Claus Roxin que “transformar conhecimentos criminológicos em exigências político-criminais, e estas em regras jurídicas, da lex lata ou ferenda, é um processo, em cada uma de suas etapas, necessário e importante para a obtenção do socialmente correto”165.

Contudo, não parece que a absorção das constatações científicas da criminologia conduza, necessariamente, a uma perspectiva que deslegitime completamente um poder punitivo estatal, ou, ainda, que esteja em conflito com toda e qualquer proposta que implique uma reformulação do sistema penal com uma maior racionalidade do procedimento de apuração e sanção.

A superação do Direito Penal ainda não é uma ideia cogitável, por mais críticas que possa haver acerca de sua operacionalização nas sociedades pós-modernas e periféricas. Como disse Phillipe Robert, “(n)uma sociedade sem Estado domina a violência pela constante manutenção e restabelecimento dum (relativo) equilíbrio de forças entre os clãs, mediante a operação do mecanismo vindicativo”166.

Por mais que o conteúdo das incriminações possa variar de um país para o outro, é inegável que a violência e a violação de regras são algo típico e esperado nas relações sociais. Não necessariamente sob uma perspectiva hobbesiana de um homem naturalmente e essencialmente mau, mas compreendendo a complexidade das relações humanas e o relevante papel que os delitos exercem no seu desenvolvimento, mostrando-se civilizatória a instituição de mecanismos de controle para a manutenção de uma coexistência pacífica. Diz Lima que “somente no paraíso é que poderíamos pensar em abrir mão do controle social, e, ainda que este esteja circunscrito por limites fundamentais, sua atuação é essencial para possibilitar a coexistência das liberdades”167.

Ainda sob essa ótica, uma sociedade democrática não pode abrir mão da estatização do controle, pois a força dissuasiva da pena se basearia no desequilíbrio formal entre o apenador e o apenado168. Basta observar as comunidades que são controladas por formas de poder alternativo, ou determinadas localidades em que a atuação do sistema é falha ou insuficiente,

165 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 82.

166 ROBERT, Philippe. Sociologia do Crime. Trad. Luis Alberto Salton Peretti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 27. 167 LIMA, Alberto Jorge Correia de Barros. Op. cit., 2012, p. 25.

para se verificar o descontrole e o caos social que se instalam na ausência de um sistema penal estatizado eficiente.

Embora tenha havido uma evolução nos procedimentos punitivos em busca de uma maior racionalização e humanização de sua execução, não se nega que haja uma violência intrínseca à pena. Entretanto, o sistema penal não se resume a pura violência, já que advém de uma regularidade normativa que pretende moderar e controlar a força. A regulação e a intermediação da pena pelo Estado Juiz, ao fim de um processo organizado por fórmulas, distinguiriam a pena da violência pura e simples169.

Esta digressão serve para demonstrar como não se deve sumariamente descartar toda e qualquer perspectiva de reformulação do processo penal por entendê-la como expressão de um poder punitivo ilegítimo, já que a busca por uma racionalização e uma melhor estruturação do sistema são justamente tentativas de se regular normativamente a violência intrínseca da pena, e, assim, legitimá-la materialmente.

As alterações devem ser sempre esmiuçadas e justificadas numa perspectiva dúplice, tanto sob uma ótica dogmática e constitucional, quanto numa perspectiva supralegal, levando a compreender a razão cultural, social e política de certos comandos e propostas, sempre a problematizá-los no contexto do choque de interesses da história, como já havia proposto Bettiol170.

Assim, deve-se raciocinar sobre a definição de novos momentos iniciais de cumprimento da pena de modo que, superada sua compatibilidade dogmática, abordada exaustivamente nos capítulos anteriores, busque-se justificar sua funcionalidade e imprescindibilidade como instrumento político criminal, analisando de que forma ela potencialmente irá intervir no trato com a criminalidade.

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