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3. Abrem-se as porteiras: o sufrágio feminino acontece em terras potiguares

3.1 Lei nº 660, 25 de outubro de 1927

É importante destacar de que forma foi aprovada a Lei nº 660, de 25 de outubro de 1927, em que se estabelecia que no "Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção de sexo50, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei". João Batista Cascudo Rodrigues51 narra como o projeto de elaboração da lei eleitoral do Estado estava sendo

50 Grifo nosso.

51 RODRIGUES, João Batista Cascudo. A mulher brasileira: direitos políticos e civis. Editora Renes: Rio de Janeiro,

discutido na Assembleia Legislativa, e neste não havia a intenção de adicionar o artigo relacionado ao voto feminino. Depois da redação ter sido aprovada, porém, chega um telegrama de Juvenal Lamartine a fim de incluí-lo. Apesar dos meios nada formais, o então Presidente do Estado, José Augusto Bezerra de Medeiros, resolve apoiar Lamartine e manda adicionar a tal emenda, a "grande conquista". O depoimento transcrito por Rodrigues do deputado Adauto da Câmara, que participou da elaboração da lei eleitoral, narrado em “História de Nísia Floresta”, explica:

Éramos o leader da Assembléia Legislativa. O projeto correu todos os trâmites, até a redação final. Aprovada esta, chega do Rio um telegrama de Juvenal Lamartine, a fim de que fizesse incluir uma disposição consagrando a igualdade de direitos dos cidadãos de ambos os sexos. José Augusto, que era então Presidente do Estado, relutou, e replicou a Lamartine, usando, entre outros, o argumento de que a redação final estava aprovada. Lamartine não se deu por vencido e voltou à carga. José Augusto, deixando de lado os seus escrúpulos de exegeta do texto constitucional, arranjou as coisas, para satisfazer a Lamartine, certo como estava de que tudo aquilo era um fogo de artifício... Éramos também redator do órgão oficial, “A República”, e, nesta qualidade, fazíamos a resenha dos trabalhos parlamentares. José Augusto, que vivia mais na “A República do que em Palácio, sugeriu-nos incluir na resenha uma emenda apresentada por nós, instituindo o voto feminino. Assim se fez. Quando a lei foi publicada, lá estava a grande “conquista”, concretizada no art. 77 das Disposições Gerais.52

Tendo, enfim, entrado em vigor a tão sonhada lei, Juvenal Lamartine se esforça para que a notícia de sua grande conquista seja espalhada. Ela foi divulgada em todo o Brasil e também fora do país, na Europa e Estados Unidos. Inúmeros discursos de agradecimento e felicitações são dedicados a "um dos mais esclarecidos propagandistas dos direitos políticos da mulher brasileira", como afirmou a Dra. Cacilda Martins, feminista que fazia parte da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. O Jus Suffragi, órgão oficial da Aliança Internacional, que representava agremiações feministas de quarenta e três nações, publicou e enviou felicitações ao Estado e a Juvenal Lamartine, apontando-o como um nome precursor na América Latina, aquele que lutava para equiparar o Brasil aos “países cultos”. Lamartine foi felicitado diretamente, segundo ele em um telegrama para Adauto da Câmara53, pelo próprio embaixador dos Estados Unidos. Em publicação no jornal A República, exclama-se:

52 RODRIGUES, João Batista Cascudo. A mulher brasileira: direitos políticos e civis. Editora Renes: Rio de Janeiro,

1982. p. 64.

Entre os propagnadores mais esclarecidos e sinceros de seus direitos [das mulheres] se conta do sr. senador Juvenal Lamartine, cuja mentalidade não é extranha ao movimento das mais graves questões sociaes do nosso tempo.

Quando se escrever a historia dessa memoravel reforma dos nossos costumes, que se annuncia com a admissão da mulher nos pleitos eleitoraes, nas assembléas deliberantes, nos encargos do governo, o nome de S. Ex. será saudado como do grande pioneiro, cuja educação liberal semeou o caminho do triumpho.54

E todos esses esforços renderam frutos. A imagem de Lamartine, até os dias de hoje, está relacionada à ideia de progresso, como um antecipador de novos tempos, aquele que projetou o nome da terra potiguar além das fronteiras do país. E, principalmente, como um dos grandes nomes da campanha sufragista brasileira. No livro publicado em comemoração ao seu centenário, composto de quatorze textos escritos por diferentes pessoas, em diferentes épocas, e que abordam cada um uma faceta do indivíduo Lamartine, a sua relação com o feminismo e a luta sufragista é citada em oito deles. Um especificamente, escrito por Edgar Barbosa, é exclusivo sobre o tema. Ele aclama que “antes de qualquer homem de Estado brasileiro, Juvenal Lamartine foi o precursor da mudança no ‘status’ feminino, alforriando a mulher da servidão secular, sem que ela perdesse ou renunciasse aos deveres que lhe corriam no dualismo doméstico”55.

Logo que a lei eleitoral entra em vigor, mulheres em todo o Estado comparecem ao alistamento eleitoral. Segundo Rodrigues56, são elas, até fevereiro de 1928: Sras. Beatriz Leite Morais e Elisa da Rocha Gurgel (29-11 e 16-12, em Mossoró); srta. Marta de Medeiros (10-12, em Acari); sra. Maria Salomé Diógenes Pinto e senhorita Hilda Lopes de Oliveira (14-12, em Apodi); Concita Câmara, Belém Câmara, Áurea Magalhães, Maria José, Luísa de Oliveira, Maria Leopoldina, Carolina Wanderley e Ermelinda Teixeira de Mello (inscritas no mês de dezembro, em Natal); senhoritas Joana Cacilda Bessa e Francisca Dantas, senhoras Clotilde Correia Ramalho e Carolina Fernandes de Negreiros (31-12, em Pau dos Ferros) e a senhorita Maria de Lurdes Lamartine, filha do próprio Juvenal Lamartine de Faria.

A partir de novembro de 1927, os jornais passam a fazer campanha em suas páginas para o alistamento eleitoral feminino. Tanto n’A República quanto n’O Mossoroense aparecem anúncios convocando-as a se alistarem, da mesma forma que o faziam quando da divulgação

54 O RIO Grande do Norte e o voto feminino, A República, Natal, 17 nov. 1927.

55 BARBOSA, Edgar. Juvenal Lamartine e o voto feminino. In: Juvenal Lamartine de Faria: 1874/1956. Natal: [s.n.],

1994. p. 32.

56 RODRIGUES, João Batista Cascudo. A mulher brasileira: direitos políticos e civis. Editora Renes: Rio de Janeiro,

de chapas políticas em épocas eleitorais. Em 2 de setembro de 1928, ao se realizarem as eleições para prefeitos, intendentes e vagas existentes na Assembleia Legislativa do Estado, foram circulados boletins nas quatro seções eleitorais de Mossoró conclamando: “Alistae-vos mulheres mossoroenses!”. Foi esta eleição, inclusive, que consagrou a primeira mulher eleita para um cargo executivo no Brasil e na América Latina, Alzira Soriano, eleita prefeita do município de Lajes.

Anúncio em O Mossoroense57

Além disso, publicaram reportagens e entrevistas com algumas das novas eleitoras, especialmente Celina Vianna, considerada a primeira mulher na América Latina a ter conquistado o direito de votar. No boletim a que nos referimos anteriormente, ela invoca as mulheres mossoroenses a formar “uma legião nobre e aguerrida ao lado do Ex. Sr. Dr. Juvenal Lamartine – o maior dos brasileiros na defeza dos direitos politicos da mulher em nosso Paiz”58. Em entrevista dada ao jornal O Nordeste em 22 de setembro de 1928, Celina Vianna defende a urgência de um “combate efficiente de propaganda e esclarecimento sobre o feminismo, o bom

57 Fonte: O Mossoroense, Mossoró, 12 ago. 1928.

feminismo, o verdadeiro feminismo”, aquele que o movimento sufragista brasileiro adota e do qual viemos falando desde então, o feminismo bem-comportado. Como ela destaca, naquele momento o voto feminino era “ordem do dia”, e cabia aos seus defensores potiguares colocarem as cartas na mesa da maneira que os aprouvessem. As mulheres deveriam ser colaboradoras dos homens, não estarem em guerra com eles e, dessa forma, colaborar com a comunidade e moralizar a política, sempre em busca do progresso feminino.

Em entrevista ao jornal O Mossoroense, quando questionada “qual a idéa que faz do feminismo”, Celina resume seu – e o da Associação de Eleitoras Norte-Riograndense da qual era Secretária Geral e que tinha fortes ligações com a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino - posicionamento dessa forma:

Não ouso confundir o feminismo com o suffragismo. Quero o primeiro, proporcionando á mulher uma educação necessaria ao desenvolvimento de sua intelligencia, uma cultura profissional que a torne apta para se manter, sabendo ser forte e digna na lucta pela vida, sem desnaturar-lhe a belleza do sexo, a suavidade e a graça que a ella pertencem. Não vejo no suffragio, senão a consequencia dessa aspiração para o completivo da acção da mulher como membro consciente do apparelhamento administractivo de sua Patria. Esse sem aquelle é mesmo que pôr nas mãos do operario instrumentos desconhecidos...59

O perfil dessas novas eleitoras é bastante homogêneo, principalmente se considerarmos as restrições ao voto que já existiam antes, como a comprovação de renda e alfabetização. Muitas eram professoras, como Celina Guimarães Vianna, que se tornou a cara do movimento no Estado, e Maria Sylvia de Vasconcellos, ambas ocupando os cargos de professoras na Escola Normal Primária de Mossoró. Outras eram pessoas públicas ligadas à literatura, como a intelectual (e também professora) Maria Carolina Wanderley, fundadora da revista Via-Láctea; poetisa, ela é autora de Alma em Versos (1919) e Rimário infantil (1926).

Ou, ainda, várias dessas mulheres estavam relacionadas a grandes nomes da terra norte- riograndense, como era o óbvio caso da filha de Lamartine, Maria de Lurdes Lamartine, e da Dona Beatriz Leite de Moraes, professora da cadeira elementar masculina, também anexa à Escola Normal mossoroense, esposa do Tenente Laurentino Teixeira de Moraes, delegado de polícia de Mossoró. O caso de D. Alzira Soriano de Souza, sobre quem falamos anteriormente, é o mais emblemático. Viúva do Dr. Thomaz Sorianno Filho, líder político da localidade de

Lajes que falecera, toma então seu lugar no comando político da região ao ser eleita prefeita da sua cidade. Refletindo o movimento sufragista nacional, as eleitoras do Rio Grande do Norte faziam parte da elite potiguar, conservadora, apesar de se dizer progressista.

O sufrágio feminino no Rio Grande do Norte, portanto, se deu a partir de uma manobra política, a fim de se tornar peça de campanhas e ter apelo propagandístico. Não se deve, porém, eliminar sua importância. Ele foi possível a partir da articulação de grupos feministas, de vanguardas femininas, seguindo uma estratégia de luta específica. Além de acontecer, é claro, dentro de um contexto propício, no qual já não era incomum verem-se mulheres ocupando profissões liberais, em áreas consideradas masculinas e pioneiras em diversos âmbitos. Foi um movimento conservador, sim. Elitista, sim. Esteve reservado, por muito tempo, a uma parcela pequena de todo um universo feminino que povoava o Brasil do início do século XX. Isto não torna o objetivo mais fácil, só muda os meios através dos quais as militantes brasileiras conseguiram conquistá-lo. Não foi um feminismo radical, ligado a setores progressistas da sociedade; nem, muito menos, tentou revolucionar a relação de poder entre os sexos. Apesar disso tudo, a conquista da cidadania política, mesmo que naquele momento restrita a poucas mulheres, foi um passo essencial para a reclamação das demais demandas femininas. Provou, principalmente, que as mulheres poderiam atuar na vida pública, espaço privilegiado de luta em um regime democrático.