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2.2 O Fim do Passe e suas Conseqüências

2.2.1 Lei do passe: do início ao epitáfio

Em 1998, quando a Lei Pelé extinguiu o passe, através da redação contida no seu art.

28, § 2° - “(...) o vínculo esportivo é acessório do contrato de trabalho, e com ele se extingue”

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- tal instituto caminhava para sua quarta década de existência. Oficialmente deixou de existir

em 25 de março de 2001, como previsto no art. 93, caput da Lei Pelé:

“o disposto no art. 28, § 2o, desta Lei somente produzirá efeitos jurídicos a partir de 26 de março de 2001, respeitados os direitos adquiridos decorrentes dos contratos de trabalho e vínculos desportivos de atletas profissionais pactuados com base na legislação anterior”.

Vale ressaltar que tal situação de adaptação foi uma exigência dos clubes, que queriam

um tempo para ordenar seus orçamentos para a perda do seu ativo mais importante.

Obviamente, como veremos mais adiante, quase nenhum clube conseguiu se ordenar.

Quando foi extinto, o instituto do Passe completou uma longa jornada no Mundo

Desportivo que durou oficialmente 37 anos, desde que nasceu através do Decreto n. 53.820/64

e depois foi regulamentado pela Lei n. 6.354/76 que ficou conhecida como a “lei do passe”. A

distante origem do passe, contexto histórico em que surgiu e a própria estrutura hierárquica do

desporto nacional à época, talvez expliquem porque um instituto tão antigo continuou

regulando as relações de trabalho no futebol, mesmo após o advento da Constituição de 88.

A longa e elitizada história das leis desportivas no país alijou do processo de

apreciação as questões que envolviam os direitos dos atletas. O estado mantinha-se afastado

da relação entre clubes e atletas, e era a Confederação Brasileira de Desporto

83

quem

82 Redação original, posteriormente modificada pela Lei n. 10.672/2003 - “§ 2° O vínculo desportivo do atleta

com a entidade desportiva contratante tem natureza acessória ao respectivo vínculo trabalhista, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais:

I - com o término da vigência do contrato de trabalho desportivo; ou

II - com o pagamento da cláusula penal nos termos do caput deste artigo; ou ainda

III - com a rescisão decorrente do inadimplemento salarial de responsabilidade da entidade desportiva empregadora prevista nesta Lei.

determinava as regras inerentes ao funcionamento do futebol e fixava as características do

contrato do atleta profissional. Sobre a ideologia dominante na CBD nesta época, assim nos

conta José Miguel Acosta Soares:

(...) A entidade, que desde sua origem congregava apenas os interesses dos dirigentes dos clubes, manteve sua natureza mesmo depois de sua oficialização, deixando os jogadores do lado de fora, sem qualquer espaço de atuação, onde eram tratados quase como um mal necessário do esporte. (...)84

Em que pese o surgimento de alguns sindicatos de atletas a partir do final da década de

40

85

, a situação de poder no meio do futebol era capitaneada pela CBD, quando em 24 de

março de 1964, como um dos seus últimos atos, o governo João Goulart promulgou o Decreto

n. 53.820/64 que “converteu em lei as práticas que já eram usuais no futebol, inclusive

instituindo oficialmente o 'passe' no futebol

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”. Diga-se de passagem, que além de legalizar o

“passe” (entendido como o valor que o clube cobrava para transferir um de seus jogadores

para outro clube), a lei determinava que os atletas teriam uma participação em cima do valor

do seu passe, que ficou conhecida como “luvas”.

Os argumentos daqueles que defendem o passe serão explanados na próxima seção,

quando trataremos da dicotomia clubes x atletas. Porém, é interessante notar que mesmo

diante da Constituição Federal de 88 – que trouxe em seu bojo a reabilitação de princípios que

se encontravam perdidos no ordenamento pátrio, tais como: a dignidade da pessoa humana, a

igualdade, e os direitos sociais

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(em cujo teor foi colocado o ramo do Direito do Trabalho) –

o passe ainda sobreviveu por algo em torno de 10 anos. A força dos clubes na câmara dos

deputados pode ser a explicação que justifica essa demora do legislador em corrigir esse

instituto arcaico no desporto nacional. Na visão de José Miguel Acosta Soares CF de 88

trouxe o argumento/fundamento que faltava para o fim do passe. Para ele:

(...) A nova ordem constitucional não era mais compatível com o envelhecido instituto do “passe”, que mantinha o jogador de futebol em situação que, por analogia, poderia ser equiparada à de um servo medieval, que não podia escolher livremente para quem vender sua força de trabalho. Aquela vinculação definitiva, podendo o atleta ser vendido, emprestado,

84 SOARES, José Miguel Acosta. Op. Cit. p. 44.

85 “A primeira entidade dos atletas, a Associação dos Jogadores de São Paulo, foi criada em 23 de julho de

1947”. (SOARES, José Miguel Acosta. Op. Cit. p. 44)

86 Loc. cit.

87 Os direitos sociais são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas

em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a equalização de situações sociais desiguais. A Constituição inclui o direito dos trabalhadores como espécie de direitos sociais, e o trabalho como primado básico da ordem social (arts. 7º e 193). (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª edição. ed. Malheiros. São Paulo. 1999. p. 290.)

doado, e até mesmo penhorado, não mais tinha espaço na ordem constitucional brasileira88

Se o argumento/fundamento para o fim do passe foi a CF de 88, a gota d'água, que

desencadeou o fim do passe por toda a Europa foi o caso Bosman.

Em 1991, Jean Marc–Bosman era jogador do Royal Football Club de Liège na

Bélgica. Os dirigentes do seu clube apresentaram uma proposta de renovação do seu contrato

com valor de salário 80% mais baixo. Como tinha proposta melhor para jogar num clube

Francês o jogador não aceitou o contrato oferecido. Em represália, os dirigentes do Royal

fixaram o passe do atleta em um valor absurdo, o que inviabilizou qualquer possibilidade de

transferência do jogador. Bosman, então, recorreu à Justiça Desportiva, onde perdeu em todas

as instâncias. E foi na Justiça Comum, depois de cinco anos, que ele conseguiu a vitória.

Durante esse tempo foi mantido pelo sindicato dos jogadores, que tinham interesse na

contenda

89

.

Importante dizer que o julgamento de Bosman foi feito em última instância pelo

Tribunal de Luxemburgo – que era o responsável por questões relativas à União Européia. Ao

final do julgamento, o tribunal determinou, através da lei que ficou conhecida como “Lei

Bosmam” que o passe fosse extinto em todos os 15 países que formavam, então, a União

Européia. Contudo, como nos conta José Miguel Acosta Soares: “(...) os outros 50 países

filiados à União das Associações Européias de Futebol (Uefa) acabaram seguindo a mesma

diretriz”.

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Como vimos, a questão do passe foi uma onda que começou na Europa, alcançando os

regramentos desportivos dos principais países do meio futebolístico em cerca de dez anos. É

emblemático que um único jogador tenha provocado essa onda, que no Brasil foi reforçada

pela CF de 88. Porém, a situação não foi simples como chega a transparecer com a história

que contamos. A dicotomia entre clubes e atletas se tornou cada vez mais evidente, e debates

acalorados foram travados nos meios jurídico-desportivo, até que leis posteriores criaram

alguns institutos e modificaram outros para apaziguar os ânimos de dirigentes que, com o fim

do passe, perderam sua maior fonte de renda. A Lei nº 9.981/00 e a Medida Provisória nº

79/2002, posteriormente convertida em Lei nº 10.672/03 criaram alguns mecanismos (além da

cláusula penal, que já vimos) para equilibrar a situação entre clubes e atletas. E são esses

mecanismos que veremos com mais detalhes a partir de agora.

88 SOARES, José Miguel Acosta. Op. Cit. p. 49.

89 AIDAR, Carlos Miguel Castex. Lei Pelé – Princípais alterações. In: vários autores. Direito Desportivo. ed.

Jurídica Mizuno. Campinas. 2000. p. 18.