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Lei nº 9.099/95 e violência doméstica contra a mulher: houve a aplicação de métodos

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA: CONCEITOS FUNDAMENTAIS E SUA

3.4. Lei nº 9.099/95 e violência doméstica contra a mulher: houve a aplicação de métodos

A sanção da Lei nº 9.099/95 encontra respaldo legal na Constituição Federal de 1988, que em seu art. 98, I prevê a criação dos juizados especiais criminais para julgar crimes

de menor potencial ofensivo:

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;

Assim, a Lei dos Juizados Especiais Criminais (JECRIM) nasceu com dois objetivos no que tange a política criminal: o implemento da lógica despenalizadora no Brasil para crimes de menor potencial ofensivo, prevendo para estes formas alternativas ao cárcere, como a composição civil, sendo a conciliação uma etapa anterior, seguida da transação penal e, por fim, da suspensão condicional do processo; e a consequente economia processual, visto que os processos teriam ritos mais céleres e ao final não seria atribuída a pena de prisão. Além disso, as varas criminais teriam mais prioridade para tratar dos crimes de maior potencial ofensivo (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2013, p. 21).

No início, a referida lei foi vista com bons olhos por pesquisadores e grupos feministas, pois os novos dispositivos poderiam agilizar a responsabilização de autores de agressão. Além disso, para outros delitos, o JECRIM seria importante “para conferir agilidade aos processos judiciais, para desafogar a justiça tradicional, para despenalizar pequenos delitos e para acelerar a resolução de disputas em torno de interesses específicos” (MORGADO, 2013, p. 266). O problema surgiu com o conceito de crime de menor potencial ofensivo, que acabou por englobar, indistintamente, crimes contra a pessoa.

O conceito de menor potencial ofensivo previsto na lei é meramente quantitativo, enquadrando-se neste, os crimes cuja a pena máxima é de até dois anos (art. 61). Ocorre que este conceito não é adequado para a aferir a ofensividade do delito. Como dito no capítulo anterior, a criminologia feminista apontou o machismo presente no Direito Penal, cuja a pena é estabelecida com base na reprovabilidade social que o crime gera. No caso da violência doméstica contra a mulher, por exemplo, as penas sempre foram baixas, representando que o legislador penalista naturaliza a conduta e não lhe concede a devida gravidade.

Porém, como sabemos, a violência doméstica e familiar é sim uma conduta grave para a mulher, que se vê traída e machucada por um homem que ela confiava, que lhe causa não só dores físicas, mas principalmente emocionais, destruindo a autoestima, podendo gerar graves problemas psicológicos para a vítima. Como se não bastasse, a agressão atinge, de maneira reflexa, os familiares dos envolvidos, especialmente os filhos, que crescem presenciando situações de violência e as naturalizam, podendo reproduzir o mesmo

comportamento no futuro: o menino pensará que é normal agredir a sua companheira, e a menina pensará que é normal para uma mulher aguentar esse tipo de situação, que é um ônus advindo com o matrimônio. Assim, a violência acaba por reverberar indefinidamente na sociedade brasileira (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2013, p. 29).

Assim, ao estabelecer o conceito de crime de menor potencial ofensivo e determinar que a competência para os julgar seria do JECRIM, o legislador, de forma negligente, acabou por remeter para esse juízo a maioria dos casos de violência doméstica contra mulher, pois grande parte do enquadramento penal dessa conduta corresponde aos delitos de lesão corporal leve e ameaça, cujas penas máximas não ultrapassam dois anos (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2013, p. 30).

O rebaixamento dos crimes ocorridos no âmbito doméstico contra a mulher ao patamar de delito de menor potencial ofensivo acarretou na banalização dessas condutas, o que foi ainda agravado pela publicação da Lei nº 9.714/98,

responsável por instituir quatro novas modalidades de sanções restritivas de direitos: a prestação pecuniária em favor da vítima, a perda de bens e valores, a proibição de frequentar determinados lugares e a prestação de outra natureza, tendo ainda modificado as condições de aplicabilidade das penas alternativas (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2013, p. 23).

Diante disso, nas condenações ao pagamento de prestação pecuniária, a justiça passou a converter o valor em cestas básicas. Diante desse fato, Masumeci (2000, p. 02 apud MORGADO, 2013, p. 266), faz uma reflexão:

O acusado (nas situações de violência doméstica) é convocado para comparecer a um JECRIM – Juizado Especial Criminal, onde poderá efetuar uma composição civil (reparação de danos com o consentimento da vítima) ou uma transação penal (caso seja frustrada a composição civil). De modo geral, a transação penal resulta em pagamento de multa, ou de uma ou mais cestas básicas a uma instituição assistencial, conforme o delito e o poder aquisitivo do acusado. Em nenhum dos dois casos o agressor perde a primariedade. Ileso, ele recebe, indiretamente, a informação de que o preço da violência é baixo. Não custa caro espancar a mulher. A sociedade, por sua vez, recebe a mensagem de que a violência pode ser negociada. Como um bem danificado, ela é conversível em valor monetário ou em espécie. Ao fim desse percurso, a vítima compreende, então de forma oblíqua e dolorosa, que não vale a pena pedir ajuda.

Além disso, os dispositivos despenalizadores não tiveram como finalidade dar mais humanidade ao processo penal; o único objetivo almejado foi a não instauração do procedimento. Assim, o processo de conciliação entre a vítima e o ofensor, sob a égide de Lei nº 9.099/95, mostrou-se fracassado, pois não havia tempo nem espaço para a construção de uma solução por parte dos envolvidos. Muitos dos acordos eram induzidos pelos servidores públicos,

posto que manter as “prateleiras vazias” era mais importante do que o resolver o mérito da causa (SICA, 2007, p. 51; GUTIERRIZ, 2012, p. 86).

Diante desse fracasso no tratamento da violência doméstica contra a mulher por parte do JECRIM, a sociedade civil e os movimentos sociais passaram a reivindicar novas formas de enfrentamento a esse tipo de delito. Quando a Lei Maria da Penha foi sancionada, o legislador quis afastar-se totalmente das práticas dos Juizados Especiais Criminais, como uma forma de estabelecer um novo momento, uma nova ordem para os crimes cometidos no âmbito doméstico, e assim, vedou a utilização dos dispositivos previstos na Lei nº 9.099/95, desencorajando o fomento de práticas reparadoras para os casos de mulheres em situação de violência.

Uma das principais preocupações deste trabalho, é que aplicação da justiça restaurativa para os casos de violência contra a mulher não seja entendida como um retrocesso ao tempo da aplicação da Lei 9.099/95. Primeiramente, a escolha da conciliação como método para dirimir o conflito penal entre as partes não foi acertada. A mediação penal, também conhecida como mediação vítima-ofensor, seria a melhor opção para um processo de composição entre as partes, para comprovar esse entendimento, vale conceituar e apontar as diferenças entre mediação e conciliação.

A expressão mediação tem origem no termo latino mediar ou mediare, que significa interpor-se, abrir, dividir ao meio. A mediação surgiu como um meio de estabelecer canais de diálogo entre partes conflitantes, através de um terceiro neutro, para possibilitar a resolução de um conflito, cujos litigantes não tem capacidade de resolvê-lo por si só (FERREIRA, 2006 p. 73; SICA, 2007, p. 46).

Francisco Amado Ferreira (2006, p. 74), ao explicar as origens da mediação, a distingue, de imediato, da conciliação:

Desde que dois indivíduos entraram em conflito e surgiu um terceiro a tentar estabelecer entre eles uma comunicação, no sentido de discutirem as soluções possíveis para o conflito, eis que surgiu a mediação. Quando esse terceiro foi mais além, sugerindo (primeiro nível de conciliação) ou propondo soluções (segundo nível de conciliação) para a crise, augurando alcançar – através de uma espécie de “diplomacia itinerante” entre as partes ou da organização de um foro de discussão, negociação, e decisão coletiva – o restabelecimento das relações em crise, eis que surgiu a conciliação.

O autor ressalta ainda que, diferentemente da mediação, na conciliação a presença de um terceiro conciliador é prescindível, podendo as partes se conciliarem sem qualquer intermediação humana.

do conflito em si. Enquanto na mediação incentiva-se a gestão dos conflitos de modo construtivo, tendo o mediador um papel mais neutro, que apenas facilita a discussão entre as partes, encorajando a expressão das emoções como elemento útil na resolução do conflito, buscando precipuamente o bem-estar entre as partes, e aumentando a capacidade dessas de gerir as consequências do conflito. Já na conciliação, o conflito é visto como um problema que deve ser resolvido, tendo o conciliador um papel muito mais diretivo, conduzindo as partes a uma solução que beneficie a todos. Assim a ideia de sucesso em uma conciliação é que os litigantes cheguem a um acordo (SICA, 2007, p 48).

Dito isso, verificamos que a proposta da mediação difere da conciliação aplicada às medidas despenalizadoras do JECRIM, pelo fato da conciliação visar a obtenção de um acordo, a própria resolução do conflito fica preterida em relação a outros objetivos, que em tese deveriam ser secundários, como o desafogamento do poder judiciário e a celeridade processual. A conciliação pode ser útil em casos meramente pecuniários, mas em delitos contra a pessoa, a sua eficiência é questionável.

A mediação, diferentemente, tem por finalidade a resolução do conflito em si, sendo o diálogo e a compreensão parte imprescindível desse processo, na qual a figura do mediador serve para possibilitar a conversa entre a vítima e o acusado, sendo estes incentivados a expor seus sentimentos e por meio dessa experiência buscar uma solução para o conflito.

Assim, não só nos casos de violência contra a mulher, mas também nos casos violência contra qualquer pessoa, a conciliação não se mostra como meio adequado para a resolução do conflito devido a sua própria natureza, conforme dito anteriormente; a mediação coaduna-se muito mais com esse tipo de delito, onde as feridas não só externas, mas também psicológicas.

Outro equívoco na utilização do JECRIM para tratar da violência doméstica contra a mulher diz respeito a utilização de penas de prestação pecuniária. A justiça restaurativa até prevê a possibilidade de reparação monetária, mas nos casos de violência doméstica, não é adequada a reparação de natureza material ou pecuniária, por trazer a ideia de que a violência pode ser negociada. Além disso, grande parte dos agressores são hipossuficientes, não tendo condições arcar com uma multa de alto valor sem comprometer o orçamento familiar. A exceção fica por conta da violência patrimonial, que ocorre quando o agressor destrói objetos pessoais, materiais de trabalho, depreda a residência da vítima, atos geralmente condizentes com o crime de dano, previsto no art. 163 do CP. Nesses casos entendemos que é sim devida uma reparação material, que pode ou não ser cumulada com uma simbólica.

legislação específica sobre violência doméstica contra a mulher. A referida lei, que não foi feita com esta finalidade, acabou por abarcar uma questão delicada por pura negligência do legislador às questões de gênero. Porém, atualmente, como o advento da Lei Maria da Penha, essa questão evoluiu bastante, sendo objeto de discussão nos mais diversos setores sociais, inclusive em redes sociais. Os delitos cometidos no âmbito doméstico ganharam certa reprovabilidade, ainda que insuficiente para coibi-lo. Diante disso, uma possível aplicação da justiça restaurativa, aliada às conquistas já obtidas poderiam ser um instrumento de maior efetivação dos direitos das mulheres e uma forma de diminuir ainda mais os índices de violência.

Diante do exposto, apesar de o JECRIM prevê práticas despenalizadoras que se coadunam com a justiça restaurativa, esta não foi completamente implementada por aquele, visto que não houve foco no momento de encontro e diálogo entre vítima e ofensor. Além disso, não há previsão da figura do mediador qualificado e treinado para exercer essa função, que muitas vezes era exercida pelo juiz, sem que este tivesse passado por qualquer treinamento. Muito menos, a qualquer menção a atuação da comunidade, que foi deixada de lado. Porém, avanços podem ser colocados para resolver os problemas dos Juizados Especiais Criminais, e muitos deles perpassam pela utilização mais efetiva da justiça restaurativa (AZEVEDO, R., 2005, p. 134).

Dito isto, o próximo capítulo abordará a aplicação da justiça restaurativa aos casos de violência doméstica contra a mulher, frisando a utilização da mediação vítima-ofensor e de dispositivos despenalizadores, como a suspensão condicional do processo.

4 A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA