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Justiça restaurativa e violência doméstica contra a mulher: fundamentos teóricos e aplicações práticas

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Academic year: 2018

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UNIVERDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

COORDENAÇÃO DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E ELABORAÇÃO DE MONOGRAFIA JURÍDICA

MARÍLIA IZA NOGUEIRA NUNES

JUSTIÇA RESTAURATIVA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHER: FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÕES PRÁTICAS

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MARÍLIA IZA NOGUEIRA NUNES

JUSTIÇA RESTAURATIVA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHER: FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÕES PRÁTICAS

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito

Orientador (a): Prof. Dr. Gustavo César Machado Cabral

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Biblioteca Universitária

Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

N926j Nunes, Marília Iza Nogueira.

Justiça Restaurativa e Violência Doméstica contra a Mulher : Fundamentos Teóricos e Aplicações Práticas / Marília Iza Nogueira Nunes. – 2016.

67 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2016.

Orientação: Prof. Dr. Gustavo César Machado Cabral.

1. Justiça Restaurativa. 2. Violência Doméstica. 3. Mediação. I. Título.

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MARÍLIA IZA NOGUEIRA NUNES

JUSTIÇA RESTAURATIVA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHER: FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÕES PRÁTICAS

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Aprovada em ___/___/_____.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________ Prof. Dr. Gustavo César Machado Cabral (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

__________________________________________________________ Prof.ª. Drª. Raquel Coelho de Freitas

Universidade Federal do Ceará (UFC)

__________________________________________________________ Vanessa de Lima Marques Santiago

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, primeiramente, aos meus pais, pelo esforço diário em dar a melhor educação para mim e para o meu irmão. Que mesmo com o trabalho exaustivo nunca deixaram de oferecer carinho e apoio. Mãe e pai, obrigada por tudo, sem vocês eu jamais teria conseguido cursar e nem concluir esta faculdade. A minha formatura é uma vitória nossa. Saibam disso.

Agradeço também ao meu orientador, Gustavo Cabral, pela solicitude e pelo incentivo. Ser monitora da sua disciplina foi uma das coisas mais legais que eu fiz na faculdade. O seu modo de agir em sala de aula e a sua gentileza com os alunos são, sem dúvida, uma inspiração, não só para mim, mas para todos os discentes da Faculdade de Direito. Espero que a nossa amizade perdure e que nossos caminhos acadêmicos se cruzem novamente.

Do mesmo modo, agradeço aos membros da banca por terem aceitado o convite, obrigada à professora Raquel Coelho e à mestranda Vanessa Marques. Obrigada ao NUDI-JUS, por meio do qual eu conheci a justiça restaurativa, e pude sonhar com um mundo menos violento onde as pessoas são compreensivas e empáticas umas com as outras. Obrigada a todos do Núcleo de Gênero Pró-mulher, do Ministério Público do Estado do Ceará, pois estagiar nesse local foi uma experiência essencial para compor este trabalho. Gostaria de agradecer à Renata Giongo, que foi muito gentil e solícita ao me enviar um livro que foi muito importante para minha pesquisa.

Obrigada a todos os meus amigos de faculdade, vocês fizeram os meus dias melhores. Obrigada Marjorie, Cícero, Ivna, Ivina, Mariana, Alícia, Rebeca, Andressa, Gabriel e Bruno. Agradecimento especial à Camila por me alertar na vida e por me emprestar um livro que me ajudou muito na monografia. Agradeço também à Pryscila pelas nossas conversas sobre feminismo e por ter fornecido vários materiais legais que foram muito úteis na pesquisa. Precisamos retomar nosso grupo de estudos.

Agradeço ainda à Débora pela amizade e pelos livros que você me emprestou ao longo da faculdade. Amanda, obriga pela amizade e pela ajuda prestada na formatação desta monografia, eu não teria conseguido sem você. Obrigada ainda a Fabi, Estela, Luana e Bia pelo apoio e pela amizade. Renato, obrigada pelo carinho e pelo apoio emocional. Sempre acho que tenho muita sorte em ter te conhecido. Ah, e obrigada por me ajudar com o abstract!

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RESUMO

A violência doméstica contra a mulher constitui um dos maiores problemas de ordem social e penal enfrentados pelo Brasil. Mesmo com a sanção da Lei nº 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha, os índices de violência continuam elevados. Os motivos são diversos: má aplicação da lei, falta de estrutura física para um atendimento adequado, despreparo dos operadores do direito em lidar com o caso. Outro fator relevante é a inadequação do sistema criminal tradicional em resolver crimes dessa natureza, em razão da resposta penal pouco variada, resumindo-se ao cárcere. Diante desse quadro, a justiça restaurativa apresenta-se como alternativa ao atual paradigma retributivo. Este novo método propõe que o crime, antes de ser uma violação estatal, é um problema entre dois indivíduos, sendo necessário que estes se tornem protagonistas do processo. Assim, a vítima é chamada a integrar o procedimento, ajudando-a a superar a vitimização e restaurando a sua autonomia; enquanto o ofensor é incentivado a assumir a responsabilidade pelo delito e reparar a vítima, de forma material ou simbólica. O processo restaurativo não possui forma hermética, mas é basilar que se dialogue a respeito do delito, idealmente estando a vítima e o ofensor frente a frente. Por meio de pesquisa bibliográfica e estudos de caso, buscou-se traçar um modelo teórico condizente com o ordenamento jurídico brasileiro em que a justiça restaurativa fosse utilizada nos casos de violência doméstica contra a mulher. O processo restaurativo escolhido foi a mediação vítima-ofensor, aplicada no momento pós-acusação e pré-instrução. Caso esta seja exitosa, aplicar-se-ia a suspensão condicional do processo, estando condicionada ao cumprimento do que foi acordado no processo de mediação. Conclui-se que, em tese, a justiça restaurativa pode ser um meio eficaz no combate violência doméstica contra a mulher por apresentar respostas mais eficazes e específicas para esses casos. Porém, ante a ausência de experiências nesse sentido, a implementação desse novo paradigma deve ser pensada a longo prazo, visto que requer estudos prévios, instauração de projetos-pilotos, aferição da satisfação das vítimas e dos ofensores em participar dessa experiência, além da difusão da justiça restaurativa, esclarecendo para a população os preceitos inerentes a esta, para que o público compreenda a importância e as finalidades de um processo restaurativo.

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ABSTRACT

Domestic violence against women constitutes one of the greatest social problems faced throughout Brazil. Despite the sanction of the Maria da Penha Law, violence rates remain high. There are several reasons: misapplication of law, lack of proper supporting infrastructure, underpreparedness of the responsible law operators. Another significant factor is the traditional criminal system's inadequacy to solve crimes of this nature, given its low diversity of penal response, limited to imprisonment. From this standpoint, restaurative justice presents itself as an alternative to the current retributive paradigm. This new method poses that crime, prior to constituting state violation, is a problem between two individuals, demanding these to become protagonists in the proceedings. Thus, the victim is called upon to integrate the proceeding, in turn helping him or her to overcome victimization and to regain autonomy; whereas the offender is incentivised to admit responsibility for the offense and to compensate the victim, in a material or symbolic manner. The restaurative process does not possess hermetic form, although it is indispensable to talk about the offense, ideally in a face-to-face scenario among victim and offender. Through bibliographical research and case studies, a theoretical model coherent with the Brazilian judicial system was devised in which restaurative justice is utilized in cases of domestic violence against women. The victim offender mediation was the restaurative process of choice, applied between accusation and instruction. In a successful application, the process would be conditionally suspended, being conditioned to terms accorded to during the mediation process. It is in thesis concluded that restaurative justice can be an efficient means to fight domestic violence against women for it presents more efficient and specific answers to these cases. Nevertheless, in the abscence of experience with this paradigm, its implementation should be conceived into the long term, since it requires previous studies, establishment of pilot projects, surveying the satisfaction of both victim and offender in integrating the experience, in addition to disseminating restaurative justice, explaining its inherent precepts to the population in order for the public to understand the importance and ends of a restaurative process.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CNJ Conselho Nacional de Justiça CP Código Penal

DEAM Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

FGC Family Group Conferencing

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada JECRIM Juizado Especial Criminal

JVDFM Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher NUDEM Núcleo de Defesa da Mulher

ONG Organização Não-Governamental ONU Organização das Nações Unidas STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 9

2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: ASPECTOS CONCEITUAIS E CRIMINOLÓGICOS ... 11

2.1 Violência contra a mulher e violência doméstica contra a mulher: necessária diferenciação e classificação ... 11

2.2 Lei Maria da Penha: reflexões sobre os 10 anos de vigência ... 15

2.3 Abordagem criminológica da violência doméstica e familiar contra a mulher ... 20

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA: CONCEITOS FUNDAMENTAIS E SUA APLICABILIDADE ... 25

3.1 Fundamentos teóricos e conceitos básicos ... 25

3.2 Princípios da Justiça Restaurativa ... 28

3.3. Principais processos restaurativos e seu momento de aplicação ... 30

3.4. Lei nº 9.099/95 e violência doméstica contra a mulher: houve a aplicação de métodos restaurativos? ... 34

4 A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: LIMITES E POSSIBILIDADES. ... 39

4.1. Por que utilizar a Justiça Restaurativa nos casos de violência doméstica contra a mulher? ... 40

4.2 Mediação: método prático escolhido... 42

4.2.1 Justiça Restaurativa e Mediação Penal ... 43

4.2.2 A Lei 13.140/15 como instrumento das práticas restaurativas no Brasil ... 48

4.3 Racionalização teórica: aplicação da Justiça Restaurativa aos casos de violência doméstica contra a mulher no direito brasileiro... 50

4.3.1 A Justiça restaurativa aliada ao direito processual penal brasileiro ... 50

4.3.2 Momento processual adequado para a mediação... 54

4.3.3 Possíveis formas de reparação por parte do ofensor: a experiência de grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica contra a mulher ... 56

5 CONCLUSÃO ... 59

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1 INTRODUÇÃO

Durante séculos, as mulheres permaneceram amplamente subjugadas ao domínio masculino, sequer possuindo direitos sociais e políticos. A partir do século XIX, o feminismo ganhou força, chegando ao ápice no século XX, momento em que muitas mulheres adquiriram independência financeira e passaram a se opor firmemente contra o machismo, lutando por garantias e direitos igualitários. As conquistas foram amplas, variando desde o direito a votar e a ser votada, até direitos reprodutivos. Porém, ainda hoje, diversas formas de opressão ainda persistem nas sociedades ocidentais, dentre as quais a violência contra a mulher em ambiente doméstico e familiar, especialmente no Brasil. Apesar dos esforços de organismos internacionais e dos próprios Estados em aprovar legislações específicas, realizar convenções, conferências, tratados, os índices de violência ainda são alarmantes.

No Brasil, mesmo com a sanção da Lei nº 11.340/06, não houve redução significativa dos índices de mulheres vítimas de violência. Um dos possíveis fatores refere-se a abordagem predominantemente penal proposta pela lei. Sabe-se que o atual sistema penal, possui diversas falhas, dentre elas a resposta penal pouco variada, mostrando-se hermética, visto que desconsidera as nuances do caso concreto. Diante desse quadro, a justiça restaurativa surge como uma possível forma de enfrentamento a violência doméstica contra a mulher, posto que apresenta respostas penais que se coadunam com a natureza relacional desses crimes.

Este trabalho tem por objetivo propor um modelo de enfrentamento à violência doméstica contra a mulher em que seja utilizada a justiça restaurativa, através da mediação vítima-ofensor, sendo o cumprimento do acordo, o requisito para a manutenção da suspensão condicional do processo. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica e estudos de caso, destacando a concepção das vítimas, dos ofensores e dos operadores do direito sobre o tratamento da violência doméstica no país. A pesquisa justifica-se pelo próprio fato de ainda milhares de brasileiras sofrerem com a violência perpetrada pelos seus (ex) maridos, (ex) companheiros, (ex) namorados, pais, irmãos motivadas por sentimentos de posse, pelas relações de poder desiguais, pela dependência econômico-financeira, enfim, pelo próprio patriarcalismo ainda arraigado na sociedade brasileira. Assim, buscar novas formas de enfrentamento pode ajudar as mulheres a quebrar o ciclo da violência e conscientizar os homens sobre a gravidade desse tipo de delito.

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cometidos no âmbito doméstico e considerados leves, excluindo-se lesões corporais graves e gravíssimas, tentativas de feminicídio e crimes sexuais. Posteriormente, apresenta-se um panorama sobre a Lei Maria da Penha, apontado as principais inovações trazidas por esta e as principais falhas em sua aplicação. Por fim, cabe destacar o embate entre a criminologia feminista e a criminologia crítica, posto que a Lei nº 11.340/06 vedou a utilização de dispositivos despenalizadores da Lei nº 9.099/95. Tal discussão é de suma importância, visto que a justiça restaurativa propõe soluções não aflitivas, diversas do atual modelo retributivo.

No segundo capítulo, são apresentadas as bases teóricas da justiça restaurativa, destacando as origens e os princípios desse novo método. Em seguida são descritos os principais processos restaurativos, quais sejam: a mediação vítima-ofensor, as conferências de família e os círculos restaurativos; é por meio destes que a justiça restaurativa é aplicada ao caso concreto, destacando que estes não são os únicos processos, mas são os mais difundidos. Mais a diante, são analisados os momentos processuais adequados para a intervenção de uma prática restaurativa, com destaque para o momento pós-acusação e pré-instrução, que será utilizado no modelo restaurativo proposto no terceiro capítulo. Por fim, é feito um estudo sobre a aplicação da Lei nº 9.099/95 aos casos de violência doméstica contra a mulher, buscando distanciá-la do modelo restaurativo, apesar de esta prever soluções despenalizadoras para esse tipo de delito.

O terceiro capítulo inicia-se com as motivações para a utilização da justiça restaurativa em casos de violência doméstica contra a mulher, com destaque para a natureza relacional do delito, já que este atinge de forma reflexa os demais membros da família, especialmente os filhos do casal. Além disso, muitas mulheres continuam a conviver com os agressores e nenhum trabalho psicossocial é realizado, sendo o risco da reincidência iminente. Assim, o estabelecimento de um diálogo entre a vítima e o ofensor pode ser benéfico, já que, por vezes, as mulheres desejam um espaço de fala como forma de superar a vitimização. Muitas delas não desejam que o infrator seja preso, desejam apenas que a violência cesse e que os agressores as deixem em paz.

Assim, os preceitos da justiça restaurativa mostram-se condizentes com os anseios dessas mulheres. Diante disso, propõe-se um modelo de enfrentamento a violência doméstica contra a mulher em que seja utilizada a justiça restaurativa. O processo eleito foi a mediação vítima-ofensor aplicada de forma voluntária, após o oferecimento da denúncia e antes da instrução, sendo o encaminhamento realizado pelo Ministério Público. Caso a mediação seja bem-sucedida, o acordo obtido seria homologado pelo juiz e o seu cumprimento seria o requisito para a manutenção da suspensão condicional do processo.

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substituir o modelo vigente, já que tornar o processo restaurativo obrigatório vai contra o princípio da voluntariedade, essencial para o sucesso dessas práticas. Por fim, apresenta-se a experiência de grupo de homens autores de violência doméstica, como uma das possíveis respostas penais a esses casos. Assim, a justiça restaurativa apresenta-se como uma alternativa, como mais uma opção para que a vítima decida qual caminho melhor atende os seus interesses, ajudando-a a superar a situação de violência.

2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: ASPECTOS CONCEITUAIS E CRIMINOLÓGICOS

No primeiro tópico, abordaremos os conceitos de violência contra a mulher e de violência doméstica contra a mulher, estabelecendo as diferenças e a tipologia dessas duas formas de violência, com o intuito de delimitar o objeto deste trabalho, bem como esclarecer terminologias que por vezes são utilizadas de maneira equívoca. No tópico seguinte, discutiremos sobre a eficácia da Lei Maria da Penha, avaliando a sua implementação em diversas cidades brasileiras, mas focando na cidade do Rio de Janeiro, já que esta apresenta mais dados estatísticos e mais pesquisas sobre a temática. Por fim, trataremos sobre os aspectos criminológicos dessa forma de violência, ressaltando especificamente o embate entre a criminologia feminista e a criminologia crítica.

2.1 Violência contra a mulher e violência doméstica contra a mulher: necessária diferenciação e classificação

À primeira vista, tais termos parecem ter o mesmo significado, e por vezes são usados como sinônimos. Porém, com um olhar mais acurado, verificamos serem duas expressões distintas, na qual a segunda está contida na primeira, sendo esta, gênero, e a aquela espécie (SAFFIOTI, 2002, p. 322).

Segundo Piovesan (2012, p. 289), a violência contra a mulher constitui qualquer conduta, seja ação ou omissão, que discrimine, agrida ou coaja a vítima pelo simples fato de ela ser mulher, causando-lhe “dano, morte, constrangimento, limitação, sofrimento físico, sexual, moral, psicológico, social, político ou econômico ou perda patrimonial”, podendo a violência acontecer tanto em espaços públicos, quanto privados.

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violência contra a mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.

A IV Conferência Mundial da Mulher, evento ocorrido em 1995, sediada em Pequim e promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU), estabelece que violência contra a mulher é “qualquer ato de violência que tem por base o gênero e que resulta ou pode resultar em dano ou sofrimento de natureza física, sexual ou psicológica, inclusive ameaças, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade quer se produzem na vida pública ou privada” (CAVALCANTI, 2007, p.38).

De posse dessas definições, podemos concluir que violência contra a mulher é qualquer conduta baseada no gênero que cause sofrimento físico, sexual, psicológico, moral e patrimonial à mulher, seja no âmbito público ou privado.

Quanto aos tipos de violência, existem muitas classificações possíveis. A Convenção de Belém do Pará (1994), em seu art. 2º, determina que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica, classificando ainda em quais locais ela ocorre e quem são os agentes que praticam os referidos tipos de violência. Neste momento, vale destacar o inteiro teor do artigo, vejamos:

Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica:

a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual; b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e

c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

Já Cavalcanti (2007, p.40), classifica os tipos de violência contra a mulher em violência física, psicológica, sexual, moral, patrimonial, espiritual, institucional, de gênero ou raça, e, por fim, violência doméstica e familiar. Discordamos dessa classificação, pois a autora enumera tipologias que facilmente encaixam-se em tipos mais genéricos, sem qualquer prejuízo didático. É o caso da violência espiritual, entendida como o ato de “destruir as crenças culturais ou religiosas de uma mulher ou obrigar que aceite um determinado sistema de crenças”, tipo derivado da violência psicológica.

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violência doméstica um tipo de violência e sim caracteriza o lugar em que ela ocorre e quem a perpetra.

Conforme preleciona a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, entendemos que existem duas classificações para a violência contra a mulher, uma quanto a tipologia e outra quanto ao âmbito de incidência. Quanto ao tipo de violência empregada, podemos classificá-lo como violência física, sexual, psicológica, e ainda incluir a violência moral e patrimonial. Quanto ao âmbito de incidência, este pode ocorrer na esfera doméstica, na qual o agressor é alguém de convivência da mulher, com a qual ela estabelece uma relação de intimidade; na esfera social ou comunitária, qual seja aquela perpetrada por terceiros, desconhecido das mulheres, mas também motivados pela discriminação de gênero, pelo patriarcalismo e pela misoginia; e, por fim, aquela que ocorre na esfera estatal, sendo esta perpetrada ou tolerada pelo Estado.

Esta classificação compila o que se deseja demonstrar nesse tópico inicial: a diferença entre violência contra a mulher e a violência doméstica contra a mulher, bem como que a primeira é gênero, da qual a segunda é espécie. Com essa distribuição, ao observarmos um caso concreto, podemos aferir qual o tipo de violência empregada e em que âmbito ocorreu essa violação de direitos.

Assim, o legislador, quando da criação da Lei nº 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha1, fez uma escolha acertada ao dizer, em seu art. 7º, que são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher a violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral, posto que esses quatro tipos de violência são passíveis de ocorrer na esfera familiar.

Feita essas análises, é imprescindível definirmos, mesmo que brevemente, cada um dos tipos de violência. Como uma das temáticas desse trabalho é especificamente a violência doméstica contra a mulher, ao discorrer sobre as formas de violência, destacaremos a sua incidência no ambiente doméstico e familiar.

Assim, por violência física cabe destacar conceito proposto por Casique e Furegato (2006, p.140)

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A violência física é entendida como toda ação que implica o uso da força contra a mulher em qualquer idade e circunstância, podendo manifestar-se por pancadas, chutes, beliscões, mordidas, lançamento de objetos, empurrões, bofetadas, surras, lesões com arma branca, arranhões, socos na cabeça, feridas, queimaduras, fraturas, lesões abdominais e qualquer outro ato que atente contra a integridade física, produzindo marcas ou não no corpo.

De acordo com a pesquisa realizada pelo DataSenado (2015, p. 08) com vítimas de violência doméstica, observa-se o predomínio das agressões físicas, ocorrendo em 66% dos casos. Em sua forma mais grave, a violência física pode levar à morte da mulher. Segundo Blay (2008, p. 82), a separação, o ciúme e as suspeitas de adultério foram a segunda maior causa de assassinato de mulheres em 2000, no estado de São Paulo. Assim, grande parte dos casos de feminicídio já advém de um histórico de violência doméstica, sendo o momento da separação, o mais propício para que o agressor atente contra a vida da vítima.

A violência psicológica, é entendida como uma agressão emocional que atinge diretamente o íntimo da mulher, é aquela que menospreza, diminui e humilha, deixando sequelas mais graves que própria agressão física. É aquela que ocorre através de ameaças, insultos, chantagens que buscam abalar o psicológico da vítima, que por vezes acaba sendo acometida de síndromes de ordem psicológica, como depressão, ansiedade, distúrbios do sono, síndrome do pânico, baixa auto-estima, entre outros. Esse tipo de violência é o mais difícil de identificar, já que não deixa marcas visíveis, e é visto pela própria sociedade como uma forma menos grave do que a violência física, sendo a conduta muita das vezes menosprezada quando a vítima comparece às delegacias para relatar situações desse tipo. (CASIQUE; FUREGATO, 2006, p. 140).

Quanto à violência sexual, esta é entendida como toda ação que obriga a mulher praticar qualquer ato sexual contra a sua vontade, seja por meio de ameaça, coação ou uso da força. Essa é uma das formas mais graves de violência contra as mulheres, pois machuca e humilha a tal ponto que retira da vítima a coragem de denunciar o agressor. Esta é recorrente mesmo em relações interpessoais, por conta ideia de que o ato sexual é um dever matrimonial da mulher para com o homem, devendo ela satisfazê-lo sexualmente, sempre que este o desejar. Tal pensamento caracteriza a opressão de gênero, advinda do poder patriarcal, no qual a mulher é um mero objeto de satisfação masculina (BORIN, 2007, p. 53).

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2012, p. 118).

Por fim, a violência moral, conforme o art. 7º da Lei Maria da Penha, constitui as condutas caracterizadas pelos crimes de calúnia, injúria e difamação, ou seja, são atos que atingem diretamente a honra interna da vítima e a sua honra perante a sociedade. Utilizar palavras de baixo calão contra a vítima, espalhar boatos sobre a conduta sexual desta, são as principais formas desse tipo de violência.

Dito isso, o presente trabalho se propõe a refletir sobre a aplicação da justiça restaurativa aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, como forma de complementar e melhorar os dispositivos já instituídos pela Lei Maria da Penha, com o intuito de coibir e diminuir a ocorrência desses crimes do Brasil.

Assim, cabe esclarecer que a proposta de utilização da justiça restaurativa aplica-se aos delitos considerados leves, tais como lesão corporal leve, ameaça, crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), contravenções penais, entre outros. O modelo proposto não comporta aplicação a crimes de lesões corporais graves ou gravíssimas, tentativas de feminicídio e crimes sexuais devido à gravidade desses atos e às penas elevadas, assim estes não serão objetos de estudo deste trabalho.

2.2 Lei Maria da Penha: reflexões sobre os 10 anos de vigência

A sanção da Lei nº 11.340/06 foi fruto dos esforços dos movimentos feministas brasileiros, que desde os anos 70 vêm lutando por reformas políticas e jurídicas em relação a violência doméstica e buscavam uma legislação que sistematizasse todas essas conquistas, tais como a criação de Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulheres (DEAMs), a previsão de novas agravantes ou qualificadoras de crimes cometidos no âmbito doméstica e familiar, a revogação de dispositivos como os crimes de adultério e de sedução, entre outras (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 143).

A Lei Maria da Penha teve seu texto legislativo inspirado na Lei Orgânica nº 1/2004, legislação espanhola que foi uma das pioneiras em compilar medidas de combate da violência doméstica contra a mulher (MACHADO, 2014, p. 60). Nos moldes desta, a Lei nº 11.340/06, trouxe várias inovações, tanto de caráter penal, quanto extrapenal, buscando uma articulação entre as áreas cível e penal do Direito, com setores da saúde e assistência social, trabalho e previdência social, criando assim uma rede de atendimento à mulher, permitindo-a sair da situação de violência (PASINATO, 2015, p. 534). Dentre todas, cabe destacar:

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competência cível e penal, no qual em um só lugar e de maneira mais célere a mulher poderia resolver os problemas de natureza cível decorrentes da violência (divórcio, alimentos, guarda) sem ter que ser encaminhada para uma Vara de Família onde passaria por mais processos burocráticos, causando um maior desgaste emocional na mulher que se vê nessa situação devido à violência sofrida (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 148);

b) a instituição de medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, previstas no art. 22 da Lei, como a manutenção de determinada distância da ofendida, afastamento do lar, proibição de se aproximar de familiares e de frequentar determinados lugares, restrição ou suspensão de visitas à dependentes menores. Tais medidas visam resguardar a integridade física da vítima e impedir a continuidade delitiva sem encarcerar o infrator, a menos que este as descumpra, estando sujeito à prisão preventiva (art. 22, §1º). O art. 23 prevê também medidas voltadas ao encaminhamento de mulheres em situação de violência para programas de proteção e atendimento, como recondução ao lar, acolhimento em casa-abrigo, separação de corpos (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 148);

c) a retirada dos atos de violência doméstica do rol dos crimes de menor potencial ofensivo constituiu um dos maiores ganhos com advento da Lei Maria da Penha. Apesar da maioria dos delitos serem considerados leves nos moldes penais, as consequências deste são muito graves, como traumas psicológicos e desestruturação do núcleo familiar. Assim, a exclusão da adjetivação desse tipo de agressão como de menor potencial ofensivo, trouxe maior reprovabilidade social à conduta e a tornou penalmente mais relevante (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 147).

Quanto ao último item, a Lei Maria da Penha fez mais do que retirar a violência doméstica do rol dos delitos de menor potencial ofensivo, ela proibiu a utilização de qualquer dispositivo despenalizador da Lei nº 9.099/95 (art. 17 e 41), o que causou um embate entre a criminologia crítica e a criminologia feminista que será melhor tratado no próximo tópico.

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condições para que saiam da situação de violência” (PASINATO, 2015, p. 535).

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) traçou um panorama sobre as práticas institucionais dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM) e dos Núcleos de Defesa da Mulher (NUDEM), órgão que comporta a atuação da Defensoria Pública, percorrendo vários Juizados da cidade do Rio de Janeiro, inclusive os da região metropolitana. Foram feitas investigações também nas cidades de Belém, Porto Alegre, Lajeado, São Paulo, Campo Grande e Maceió (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 42).

O estudo procurou avaliar diversos aspectos, desde a estrutura do prédio do Juizado até o atendimento às vítimas. O resultado não foi nada animador. Para a realização do próprio estudo, os analistas técnicos encontraram dificuldades, como a recusa dos juízes em atendê-los, alegações de que os pesquisadores não poderiam acompanhar as audiências, por ser um processo que corre em segredo de justiça, recusa por parte de Defensores Públicos em realizar entrevistas (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 48).

Quanto à estrutura física dos Juizados observou-se que a precarização é uma constante: “são lugares apertados, cartórios abarrotados, salas de audiência pequenas, salas de espera estreitas e por vezes inexistentes. Nota-se, sobretudo, um descuido com as instalações das Defensorias Públicas, que nem sempre são contempladas com as melhorias” (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 55). Por outro lado, em um outro Juizado visitado, observou-se que a estrutura do prédio era muito boa, mas não havia uma equipe técnica (juiz, promotor e defensores) especializada, as funções eram desempenhadas pelos servidores do Juizado Especial Criminal (JECRIM). Cabe destacar ainda as condições estruturais do espaço da Defensoria Pública, pois, conforme os pesquisadores, sempre parece em pior estado em comparação com as instalações do Juizado. Em uma das sedes visitadas, verificou-se que era

uma casa com estrutura ruim, baixa iluminação, ventilação e espaço para receber os assistidos, tinha uma média de setenta pessoas na espera para serem atendidas. A Defensoria é tumultuada e barulhenta, um ambiente não muito agradável. Uma senhora reclamava que “o lugar é muito sufocante” (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 57).

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(…) uma coisa péssima é o atendimento um do lado do outro, todo mundo, escutando tudo, e de repente o caso que você tá passando ali vira o caso de todo mundo. Todo mundo começa a comentar. Então assim, é uma coisa horrorosa isso! Em todo lugar que fui é assim, é um do lado do outro. Com exceção da Delegacia da Mulher, que é um pouco mais distante. (…) Então eu tô falando pra vocês por que sou uma pessoa com doutorado e eu trabalho nessa área, sou assistente social. Trabalho nessa área. Então o negócio tá péssimo. Inclusive já recebi a Maria da Penha na minha empresa pra falar da lei, mas infelizmente quando a gente vai atender as pessoas pra orientar que tem que buscar a delegacia da mulher, que tem que vir aqui, a gente… eu fico até com pena da pessoa, fico com pena porque eu sei que o negócio não vai pra frente (…) (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 57).

Tais problemas caracterizam um tipo de violência ainda pouco falado: a violência institucional. Mulheres que conseguem romper o silêncio e procurar a ajuda das autoridades esbarram na estrutura precária, machista e tradicional do Poder Judiciário. Essa postura se perpetua em cada órgão de atendimento às mulheres, desde a delegacia onde o policial minimiza a agressão sofrida, até aquele que decide o caso, reproduzindo o discurso patriarcal presente em toda a sociedade (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 52).

A pouca importância que é dada a esse tipo de violência, a falta de estrutura para o atendimento humanizado, a demora na prestação jurisdicional, o próprio pensamento patriarcal difundido nos órgãos judiciais; todos esses fatores geram uma descrença por parte das mulheres de que o caso delas será solucionado de forma satisfatória, culminando na chamada cifra oculta, fração correspondente às mulheres que não reportam a violência sofrida às autoridades policiais, seja por medo da reação do agressor, seja por medo da própria violência institucional que certamente ela sofrerá ao ser obrigada a peregrinar de órgão em órgão para obter uma resposta penal, que na maioria dos casos é insatisfatória e demorada. O depoimento de uma das vítimas entrevistadas relata de forma emblemática o sentimento de várias mulheres que recorrem ao JVDFM:

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atendimentos ruins, eu também tive alguns atendimentos bons... e neles a gente até percebe que a doutora quer ajudar, mas fica sem ter uma ação realmente efetiva, eficaz. E aqui nesse Juizado parece que as coisas são empurradas pela barriga. O meu caso foi em 2010! Já é 2014 e até agora nada! E agora que tá chegando perto da prescrição, daqui a pouco eu não tenho mais o que fazer. As juízas desse juizado, olha...! Elas empurram tudo com a barriga! (…). Essa é a minha sugestão! Que as juízas tenham mais respeito com as vítimas porque são elas quem precisam de ajuda! (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 52-53)

Assim, diante da postura de juízes e promotores relatada pela vítima, faz-se necessário atentarmos para o fato de que mesmo que sejam realizadas transformações físico-operacionais, a violência institucional contra as mulheres ainda pode persistir, sendo necessária uma mudança mais profunda no Poder Judiciário, com a inserção de valores feministas nas instituições que lidam com a violência doméstica contra a mulher (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 55).

Mesmo com a vigência da Lei Maria da Penha, não se observa a diminuição dos casos de violência contra a mulher, sendo o número de processos elevadíssimo em cada um dos Juizados estudados. A comarca da cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2011, possuía em seu acervo um total de 49.229 processos. Nas demais comarcas do estado tem-se um total de 66.571 ações que versam sobre esse tipo de violência (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 63). Dados do Dossiê Mulher (2015, p. 11) demonstram que no ano de 2014, em todo o estado do Rio de Janeiro, 64% das vítimas de lesão corporal dolosa eram mulheres; da mesma forma nos crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), as mulheres também são a maioria das vítimas (73,6%), no crime de ameaça tal informação também se repete, sendo que 65,5% das vítimas são mulheres.

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149).

Diante disso percebemos o quão grave é a situação da violência doméstica no Brasil. Um contingente enorme de mulheres denuncia o caso às autoridades o que gera a quantidade de procedimentos informados anteriormente, mas, por outro lado, um número de mulheres igual ou ainda maior não denuncia o caso, o que faz com percebamos a magnitude desse fenômeno em nossa sociedade e que as práticas adotadas atualmente não estão sendo eficazes para a diminuição desse tipo de violência.

Desse modo, chegamos ao impasse entre a criminologia feminista e a criminologia crítica no Brasil, no que se refere a adequação da resposta penal a esse tipo de violência. O principal embate diz respeito às alterações dos tipos penais advindas com a Lei nº 11.340/06, que instituiu agravantes e majorantes aos crimes cometidos contra as mulheres no âmbito doméstico, bem como obstruiu a utilização de institutos diversificacionistas, tais quais a composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo (CAMPOS; CARVALHO, 2013 p. 149). A temática será melhor discutida no próximo tópico.

2.3 Abordagem criminológica da violência doméstica e familiar contra a mulher

Observa-se que há uma tendência dominante nas sociedades contemporâneas, no sentido de fortalecimento do Direito Penal, com a criação de novos tipos penais e de agravamento dos já existentes. Um dos motivos é o reconhecimento da gravidade de condutas delitivas que antes eram consideradas de menor importância, como é o caso da violência doméstica. Assim, grupos historicamente oprimidos passaram buscar uma ampliação do Direito Penal para que este também protegesse seus interesses específicos (AZEVEDO, 2008, p. 114).

No entanto, uma das maiores falhas no atual sistema penal é a resposta pouco variada ao ato tipificado, resumindo-se ao encarceramento. De acordo com Foucault (2013, p. 217-218), a pena de prisão nasceu como uma resposta mais humanizada e racional frente aos suplícios que ocorriam antigamente. Nos três últimos séculos, a prisão tornou-se a resposta padrão a todos os tipos de delitos. Desde o seu nascimento, vem-se questionando a sua efetividade naquilo em que o monopólio da violência estatal se propõe a fazer, qual seja: punir, coibir a violência por meio do exemplo e ressocializar.

Diante desse quadro é que surge a criminologia crítica, cujo objeto de estudo é o próprio sistema de punitividade,

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sobre as populações vulneráveis (criminalização secundária) e os instrumentos perversos que transformam a execução das penas em fontes de reprodução de estigmas (CAMPOS; CARVALHO, 2013, p. 151).

Por outro lado, desde a década de setenta, feministas vêm desenvolvendo estudos sobre a relação entre as mulheres e o sistema penal, analisando o papel feminino tanto na qualidade de vítima, quanto na de autora de delitos. Com isso, constatou-se a existência de uma dupla violência contra a mulher. A primeira corresponde a invisibilidade e a desvalorização dos delitos cometidos contra as mulheres por motivos de gênero. Os crimes cometidos no âmbito doméstico sempre foram desconsiderados na lógica penal; até pouco tempo, muitos nem eram considerados crimes, estando restritos às relações privadas. No Brasil, diversos assassinos de mulheres foram absolvidos sob os argumentos da “violenta emoção e legítima defesa da honra” (BLAY, 2008, p. 44). Inserida nessa lógica perversa encontra-se ainda a revitimização da mulher que procura as autoridades para relatar as agressões sofridas, mas é menosprezada e mal atendida pelos operadores do direito, conforme exposto anteriormente.

A segunda corresponde ao agravamento das penas quando a mulher é o sujeito ativo do delito. A esposa que mata o marido, a mãe que comete infanticídio, a mulher que abandona o filho recém-nascido. Há sempre uma carga pejorativa sobre as mulheres que cometem crimes violentos, devido ao rompimento do paradigma da submissão e docilidade feminina (BLAY, 2008, p. 73). Assim, a criminologia feminista busca não só a tipificação dos delitos cometidos contra as mulheres, mas também busca romper com o pensamento machista arraigado no sistema de justiça penal.

A Lei Maria da Penha proporcionou o embate entre essas duas visões criminológicas de vanguarda, ao vedar a utilização de institutos despenalizadores previstos na Lei 9.099/95, por meio de seu art. 41. Tal visão foi pautada na banalização da violência doméstica decorrente da aplicação errônea desses institutos. Tal vedação não vem se mostrando benéfica para diminuir os índices de violência contra a mulher, como veremos a seguir.

Entendemos que as ações extrapenais constantes na Lei Maria da Penha constituem importantes mecanismos de combate à violência doméstica, já que preveem planejamento de políticas públicas, controle de publicidade sexista, incentivos a realização de pesquisas, bem como ao levantamento de dados estatísticos, que sempre se mostraram deficientes nessa área, programas de proteção e atendimento à vítima, entre outros (CAMPOS; CARVALHO, 2013, p. 144). Porém, a solução estritamente penal prevista pela Lei nº 11.340/06 para as denúncias realizadas pelas mulheres não vêm se mostrando eficaz.

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colapso desde o seu nascimento para a maioria das infrações penais, imagine para os casos de violência doméstica, cuja vítima e o ofensor têm, ou em algum momento tiveram um relacionamento afetivo, coabitaram, dessa relação adveio filhos, por exemplo. Diferentemente dos crimes eventuais, a violência doméstica tem motivações completamente distintas. Se em um furto o motivo é a simples obtenção de uma vantagem pecuniária, em um crime de lesão corporal dolosa qualificada pela violência doméstica, por exemplo, as razões perpassam diversos fatores, tais como o ciúme, o sentimento de posse, o próprio machismo e o patriarcalismo difundidos na sociedade, que insistem em colocar a mulher em um papel inferior ao homem (CAVALCANTI, 2007, p. 51). Some-se a isso o uso abusivo de álcool e drogas por parte dos infratores, que é recorrente nos casos de violência doméstica contra a mulher.

Ao pensarmos no processo penal sob a égide da Lei Maria da Penha, verificamos um predomínio da violência física (66%), seguida da violência psicológica (48%), segundo pesquisa realizada pelo DataSenado (2015, p. 08). Em relatos de violência atendidos pela Central de Atendimento à Mulher (LIGUE 180) nos anos de 2006 a 2015, verificou-se que 56,72% dos casos eram de violência física, seguidos por 27,14% dos casos de violência psicológica (BRASÍLIA, 2015, p. 07).

Dos casos de violência física, os crimes mais recorrentes são de lesão corporal dolosa (RIO DE JANEIRO, 2015, p. 11), mais precisamente os crimes de lesão corporal leve (GARBIN et. al., 2006, p. 2570). Tanto o é que a Lei nº 11.340/06 estabeleceu a qualificadora do §9º do art. 129 do Código Penal (CP) para os casos de lesão corporal leve cometidos no âmbito doméstico, estabelecendo pena de 03 (três) meses a 03 (três) anos de detenção, na tentativa de recrudescer a resposta penal a esse tipo de crime. No que tange a violência psicológica, o delito predominante nesses casos é o de ameaça (RIO DE JANEIRO, 2015, p. 11), previsto no art. 147 do CP, cuja a pena é de 01 (um) a 06 (seis) meses de detenção.

Diante disso, verifica-se que na maioria dos casos, o agressor, ao ser condenado, terá o regime aberto como regime inicial, posto que a pena geralmente não excede 04 (quatro) anos (art. 33, §2º, “c” do CP) e mesmo que os delitos no âmbito da violência doméstica sejam reiterados, é difícil aferir a reincidência nos moldes do CP. Assim, como o réu geralmente é primário, elege-se a pena mínima como a mais adequada.

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da Lei de Execução Penal, participar de cursos, não frequentar determinados lugares; porém, devido falta de infraestrutura e de monitoramento, o réu acaba por somente ir à Vara de Execução Penal assinar uma frequência e relatar as suas atividades.

Diante do exposto, verificamos um paradoxo no tratamento penal dos crimes cometidos em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher: o recrudescimento penal proposto e esperado para esses tipos de caso não ocorre, já que o agressor não é efetivamente encarcerado como alguns grupos feministas desejam e, por outro viés, a este não é proposta outras formas de punição e ressocialização voltadas especificamente para a cessação da violência doméstica. Assim, a pena prevista para esses crimes carece de caráter intimidatório e deixa transparecer a ideia de impunidade. O agressor, em termos de execução penal, recebe o mesmo tratamento que um indivíduo condenado por um crime de furto, por exemplo.

Carmen Hein Campos e Salo de Carvalho (2013, p. 150), consideram essa questão como ponto de reflexão no embate entre criminologia feminista e criminologia crítica no âmbito da Lei Maria da Penha, no sentido de retirar o rótulo de punitivista desta, já que a Lei nº 11.340/06 não é responsável pelo encarceramento massivo. Porém, essa visão faz com que o tratamento penal proposto por ela entre em colapso: se a Lei não se caracteriza faticamente por um viés punitivo e nem permite a utilização dos institutos diversificacionistas, o que ela é afinal? Esse paradoxo mostrou-se prejudicial para o combate à violência doméstica contra a mulher, posto que a resposta penal ao infrator ficou descoberta, não se aplicando de maneira efetiva nem um, nem o outro método.

A própria Lei Maria da Penha traz apenas um dispositivo (art. 35, V) referente à um tratamento diferenciado ao agressor, determinando que os entes federados poderão criar e promover, no limite de suas competências, centros de educação e reabilitação para os agressores. Pasmem para a palavra “poderão”, significando que tal política pública não é obrigatória, podendo os estados simplesmente não cumpri-la.

Outra questão relevante diz respeito ao desejo das vítimas em relação à instauração do procedimento penal. Na pesquisa realizada pelo IPEA, somente 20% das entrevistadas disseram que a melhor solução seria aplicar a pena e prender o ofensor; os outros 80% diluem-se em ofendidas que acham que a solução não está na perdiluem-secução penal. Desdiluem-ses 80%, 40% acreditam que o problema deve ser resolvido com a ajuda de psicólogos e assistentes sociais, sem condenar; 30% pensam que a melhor solução é frequentar grupos de agressores para se conscientizar; e 10% acreditam que a condenação de prestar serviços à comunidade seja a melhor resposta para esses crimes (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 80).

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motivo essas mulheres procuram o poder público? Conforme dito anteriormente, muitas mulheres só procuram as autoridades em último caso, funcionando o direito penal como ultima ratio, muitas delas procuram a ajuda de familiares e amigos para resolver o problema, antes de ir à delegacia (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 81).

É interessante ressaltar que a Espanha vem enfrentando problemas semelhantes, no que tange a efetivação da Lei Orgânica nº 1/2004. Esta foi uma das legislações que mais gerou expectativas, mas os resultados obtidos não foram satisfatórios. O Judiciário reclama que foi responsabilizado pelo combate à violência doméstica, critica-se ainda a cumulação de competências cíveis e criminais dos JVDFM, além da excessiva vitimização da mulher, considerando-a sempre inocente e o homem como superior e agressor. Diante dessa série de críticas, estudiosos afirmam que meios alternativos deveriam ser estimulados, tais como a mediação penal, sempre visando atender os interesses da vítima (MACHADO, 2014, p. 70).

Um relatório elaborado por membros do Consejo Nacional del Poder Judicial, aponta para a necessidade de reformas legislativas, visando maior assistência à vítima tanto no processo criminal, quanto cível. Além disso, propõe-se a antecipação do programa de reabilitação do autor para a fase instrutória, devido à demora na obtenção da sentença, sendo este avaliado para fins de redução de pena. Frisa-se também o repasse de recursos por parte do Executivo, para que os programas de atendimento à vítima e ao ofensor sejam efetivados (MACHADO, 2014, p. 72).

Observa-se que o modelo espanhol de mudança está pautado na inserção de formas de fortalecimento da vítima, por meio do devido acompanhamento processual, e pelo envio dos agressores a programas de reabilitação conforme o caso concreto. No Brasil, necessita-se de mudanças semelhantes, buscando-se implementar a Lei nº 11.340/06 como um todo, não apenas o seu aspecto penal. Quanto a este, a necessidade de flexibilização do art. 41 da Lei Maria da Penha é premente, posto que “a obsessão pelo castigo, independentemente do que pensam as próprias vítimas teria efeito perverso, suprimindo de forma genérica a autonomia da mulher” (MACHADO, 2014, p. 75).

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entanto, a criminologia feminista absorveu várias contribuições da criminologia crítica, especialmente no que diz respeito ao debate sobre a utilização do sistema penal por parte das mulheres. Assim, apesar de algumas incoerências, entende-se ser possível que ambos coexistam, já que a perspectiva de um sistema absolutamente coerente não condiz com a realidade contemporânea (CAMPOS; CARVALHO, 2013, p. 166). Nas palavras de Alessandro Baratta (1999, p. 43 apud SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 53), “a criminologia crítica e a feminista não podem ser duas coisas diversas; devem, necessariamente, construir uma única”.

Diante dessas reflexões, a justiça restaurativa coloca-se como uma nova abordagem aos casos de violência doméstica contra a mulher, coadunando-se com a peculiaridade desses delitos. A proposta de um modelo que valoriza a vítima, buscando reestabelecer a autonomia desta; ao mesmo tempo em que prevê uma resposta menos estigmatizante ao infrator merece ser analisada sob a perspectiva de gênero. Assim, no próximo capítulo serão discutidas as bases teóricas da justiça restaurativa, descrevendo suas origens, princípios e métodos.

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA: CONCEITOS FUNDAMENTAIS E SUA APLICABILIDADE

Neste capítulo, serão discutidas as origens, os fundamentos e os princípios da justiça restaurativa, bem como os principais programas restaurativos, quais sejam: a mediação vítima-ofensor, as conferências de família e os círculos restaurativos. Além disso, apontaremos os momentos processuais adequados para uma intervenção da justiça restaurativa no sistema de justiça penal. Por fim, será feito um estudo sobre a Lei nº 9.099/95, avaliando se houve a aplicação de mecanismos restaurativos, especialmente no que diz respeito aos casos de violência doméstica contra a mulher.

3.1 Fundamentos teóricos e conceitos básicos

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[…] as prisões não reduzem a taxa de criminalidade – mesmo que se aumente, multiplique ou transforme as prisões, a criminalidade permanece a mesma ou aumenta; a detenção provoca reincidência; a prisão fabrica delinquentes em razão das condições a que submete os apenados; a prisão favorece a organização de delinquentes solidários entre si e hierarquizados; os que são libertados da prisão estão condenados a reincidência, devido às condições de vigilância a que são submetidos; por fim, a prisão indiretamente, delinquência, pois faz as famílias dos apenados caírem na miséria (PALLAMOLLA, 2009, p. 31).

Somente nos anos 90 é que a justiça restaurativa ganha a atenção dos pesquisadores como uma possível resolução aos problemas advindos do sistema de justiça tradicional. Antes, já existiam valores e processos restaurativos, mas não estavam consolidados sob o mesmo nome. Braithwaite foi o primeiro a difundir as ideias restaurativas nos Estados Unidos, que rapidamente chegaram à Europa (PALLAMOLLA, 2009, p. 34).

O novo modelo aproxima-se do abolicionismo, movimento também surgido na época, sendo uma ramificação da Criminologia Crítica. A justiça restaurativa e o abolicionismo compartilham a tendência de superação do atual processo penal, concedendo à vítima e à comunidade maior participação no processo (democratização do direito penal) com o fito de que o infrator compreenda o dano causado por ele. Por outro lado, para Braithwaite, a justiça restaurativa difere do abolicionismo por prevê ainda a utilização do cárcere para determinados crimes, valendo-se do princípio da ultima ratio do Direito Penal, e a preservação de algumas garantias processuais e penais. Já o abolicionismo prevê uma total substituição do processo penal, e mais além, de todo o sistema penal (PALLAMOLLA, 2009, p. 35).

No entanto, na visão de Howard Zehr (2014, p. 89) o paradigma retributivo está em vias de modificação, visto que são inúmeros os epiciclos que o sustentam. Epiciclos são espécies de “remendos” que visam manter o paradigma vigente. O modelo retributivo em si é violento e estabelecia punições severas, os chamados suplícios (FOUCAULT, 2013, p. 13). Para sustentá-lo criou-se a pena de prisão, que é mais racionalizada, já que o tempo de permanência no cárcere é dosado conforme a gravidade do delito, trazendo ares de razoabilidade e de cientificidade, condizentes com a época em que foi instaurada. Porém, logo este epiciclo mostrou-se ineficiente, buscando-se, assim, outros meios de sustentar o paradigma. São exemplos: as chamadas penas alternativas, a sentenças de serviço comunitário, o monitoramento eletrônico, e até mesmo a indenização e assistência às vítimas.

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[…] uma violação nas relações entre o infrator, a vítima e a comunidade, cumprindo, por isso, à Justiça identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa violação e do trauma causado e que deve ser restaurado. Incumbe, assim, à Justiça oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem a um acordo, como sujeitos centrais do processo, sendo ela, a Justiça, avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado (PINTO, 2005, p. 21).

Assim, o crime antes de ser uma violação ao Estado, é uma violação do ofensor contra a vítima e que, de maneira reflexa, atinge a comunidade. Com essa perspectiva, a justiça restaurativa dialoga com a vitimologia, trazendo a vítima de volta às discussões do direito penal, pois com a política de proteção dos bens jurídicos, negligenciou-se o dano causado à vítima e a necessidade de reparação (PALLAMOLLA, 2009, p. 46).

Essa mitigação da proteção aos bens jurídicos para dar mais atenção aos desejos da vítima, não representa um retorno à época da justiça privada e da vingança. Ao buscar o diálogo e formas de reparação colocando a vítima como um agente capaz de decidir a respeito do delito, não dará a ela a liberdade de escolher as mais duras penas ao ofensor sob o aval do Estado. Os direitos humanos evoluíram bastante e um retrocesso desse tipo não seria tolerado. O que se busca promover são formas de diálogo e reparação que ajudem a vítima a superar a vitimização. Porém, não se pode falar, que a justiça restaurativa é um movimento restrito às vítimas, visto que também se preocupa com o destino do ofensor e da comunidade envolvida no delito (PALLAMOLLA, 2009, p. 46).

Diante disso, apesar da dificuldade em estabelecer as origens e os fundamentos da justiça restaurativa, visto que ainda é uma teoria em formação, “é uma prática ou, mais precisamente, um conjunto de práticas em busca de uma teoria” (SICA, 2007, p.10), a justiça restaurativa

baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime.

Com a difusão da justiça restaurativa pelo mundo, o Conselho da União Europeia criou a Rede Europeia de Pontos de Contacto Nacionais para a Justiça Restaurativa e em seu art. 2º estabeleceu que

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vítima, a comunidade e o refractor constitui um princípio orientador geral no processo de justiça penal. O conceito de justiça restaurativa abrange um conjunto de ideias que é relevante para diversas formas de sancionamento e de tratamento de conflitos nas várias fases do processo penal ou com ele relacionados (UNIÃO EUROPEIA, 2002, p. 05).

Feito esses esclarecimentos, trataremos agora sobre os princípios que norteiam a justiça restaurativa com o intuito de esclarecer ainda mais sobre os processos e técnicas desse novo olhar sobre o crime e a justiça.

3.2 Princípios da Justiça Restaurativa

A justiça restaurativa rege-se por vários princípios, que são determinantes para construção de uprocesso condizente com as propostas restaurativas. Porém, inexiste consenso na doutrina, que aponta diversos princípios diferentes, mas que não são divergentes entre si (GUTIERREZ, 2012, p. 79). Para Francisco Amado Ferreira (2006, p. 29), a justiça restaurativa orienta-se pelos princípios do voluntarismo, da consensualidade, da complementariedade, da confidencialidade, da celeridade, da economia de custos, da mediação e da disciplina.

O voluntarismo diz respeito à vontade livre, esclarecida e atual das partes em participar de um processo restaurativo, devendo serem informadas sobre seus direitos, sobre o procedimento ao qual irão se submeter e, por fim, sobre as consequências deste. O caráter voluntário da justiça restaurativa é benéfico para o ofensor, pois faz com que ele internalize melhor as consequências de seus atos, tornando-o apto a assumir as responsabilidades pelo delito, além de evitar que este se repita. A voluntariedade na justiça restaurativa é primordial, pois do contrário,

ao tornarmos o processo restaurativo obrigatório, poderemos estar a convertê-lo num acto inútil e traduzível num puro desperdício de tempo e de recursos ou, então, a aumentarmos o risco de as partes celebrarem o acordo 'a qualquer preço' ou mesmo a serem manipuladas e, concomitantemente, incrementarmos a sua sensação de insatisfação e uma maior tendência para o incumprimento dos acordos homologados. Por outro lado, se quisermos proteger verdadeiramente a vítima do contato directo – que ela não deseje – com o autor (vitimização secundária) ou das represálias do mesmo ou de outras pessoas (vitimização terciária), deveremos dar-lhe a possibilidade de escolher entre enfrentar o agressor ou resguardar-se por detrás da figura jurídica do assistente (que lhe faculta o sistema judicial português) ou de outros expedientes legais de protecção (FERREIRA, 2006, p. 31-32).

Dessa forma, o voluntarismo é importante para que os processos restaurativos alcancem os resultados almejados.

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bem-sucedido, as partes chegarão a um acordo que seja benéfico para ambos, diferentemente da justiça tradicional, em que o desfecho é contencioso, sendo estabelecido um ganhador e um perdedor. De certa forma, o acordo celebrado não deixa de ser um negócio jurídico, já que as partes estão obrigadas a cumpri-lo. Segundo Daniel Dana (2001, p. 77-79 apud FERREIRA, 2006, p. 34-35), o acordo deve ser:

a) equilibrado, o que significa atribuir benefícios proporcionais para ambas as partes; b) pormenorizado, o que significa definir claramente os pormenores de quem haverá de fazer o quê, quando, durante quanto tempo, em que condições e com que garantias; c) reduzido a escrito e assinado pelas partes e pelo mediador. Ainda que não absolutamente imprescindíveis, tais elementos podem revelar-se úteis em termos de certeza, garantia jurídica e de segurança interpretativa;

d) renunciante de recurso a outros meios – adversativos ou não –, desde que se prefigurem direitos disponíveis e o acordo firmado entre as partes se mostre pontualmente cumprido

Tais requisitos tornam o acordo exequível, dando a vítima mais segurança jurídica no caso de um descumprimento. Assim, ao propor um diálogo entre as partes, este só produz resultados efetivos se houver um mínimo consenso entre estas, sendo o princípio da consensualidade importante na efetivação da justiça restaurativa.

A confidencialidade corresponde ao sigilo de todos os fatos revelados durante a processo restaurativo, inclusive as sugestões e propostas apresentadas pelo mediador ou pelas partes. Caso o procedimento se mostre infrutífero ou o acordo seja descumprido, o caso voltará a justiça comum e nesta não poderão ser usados os elementos colhidos naquela. A oralidade é uma característica essencial nos procedimentos restaurativos pois favorece a manifestação das partes, não devendo suas declarações serem reduzidas a termo, apenas o acordo final é que terá a forma escrita, como dito anteriormente (FERREIRA, 2006, p. 37).

O princípio da complementariedade diz respeito ao posicionamento da justiça restaurativa como um complemento ao sistema penal tradicional. Ela geralmente é adequada ao processo penal comum, inserindo-se em determinados momentos, trazendo consigo meios menos herméticos de tratar o caso em questão, podendo ser oferecida a suspensão do processo caso a mediação seja bem-sucedida e o acordo seja cumprido. Ferreira (2006, p. 39), defende a aplicação da justiça restaurativa na fase de execução, como forma de redução da pena, por exemplo:

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Já Sica (2007, p. 30), reconhece esse momento de aplicação, mas discorda da sua utilização, visto que acarreta a sobreposição dos dois sistemas, o punitivo e o restaurativo. No item 3.3 trataremos melhor sobre o assunto.

Portanto, como a substituição do paradigma retributivo pelo restaurativo ainda é utópica, a justiça restaurativa utiliza-se da complementariedade para se inserir no sistema penal tradicional, na tentativa de torná-lo menos hermético e mais humanizado.

O princípio da celeridade advém da forma simples e informal com que os procedimentos são conduzidos na justiça restaurativa, que oferecem uma resposta mais célere e eficaz ao conflito do que a justiça oficial. Contudo, não quer dizer que a justiça restaurativa não possua mecanismos padronizados, ela apenas adota ritos estritamente necessários para a resolução do caso (FERREIRA, 2006, p. 40).

A economia de custos é um princípio que decorre da própria celeridade, visto que com menos ritos o processo torna-se menos custoso financeiramente. Esses recursos antes destinados a crimes menos graves, podem ser realocados, utilizando-os em crimes mais graves e assim reduzir os custos materiais do Estado (FERREIRA, 2006, p. 41).

O princípio da mediação diz respeito aos processos restaurativos que se utilizam de meios negociais para resolver o caso. Geralmente, as partes ficam frente a frente para discutir a respeito do crime, sob a supervisão de um terceiro intermediário. Outras práticas restaurativas são variações da mediação, diferenciando-se especialmente pelo número de participantes, que podem envolver os familiares das partes ou membros da comunidade (FERREIRA, 2006, p. 41).

Por fim, o princípio da disciplina corresponde a obediência aos termos acordados pelas partes ao final do processo restaurativo. Esta é importante para trazer credibilidade social ao método. Além disso, o mediador deve se valer da disciplina para conduzir o processo de forma ordeira e coerente (FERREIRA, 2006, p. 42)

Apesar de existirem divergências doutrinárias, os princípios colocados pelo autor mostram-se coerentes e caracterizam de maneira eficaz os preceitos da justiça restaurativa.

3.3. Principais processos restaurativos e seu momento de aplicação

Primeiramente, cabe destacar que não existe apenas uma forma de manifestação da justiça restaurativa, mas sim várias práticas. Segundo Rodrigo de Azevedo,

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ativo envolvimento das partes no processo, a fim de decidirem a melhor forma de abordar as consequências do delito, bem como suas repercussões futuras (AZEVEDO, R., 2005, p. 139)

A Resolução 2002/12 do Conselho Econômico e Social da ONU traz orientações para os países que desejam implementar medidas restaurativas em seus sistemas penais. Desta resolução, vale destacar os conceitos de programa restaurativo, processo restaurativo e resultado restaurativo, estando os três intrinsecamente conectados, vejamos:

1. Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos

2. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles).

3. Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo. Resultados restaurativos incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes, bem assim promover a reintegração da vítima e do ofensor (PINTO, 2005, p. 24).

Diante disso, não há uma definição para o que seja um processo restaurativo, também chamado de conferência restaurativa, apenas diretrizes que se aplicadas corretamente produzem um processo dessa natureza e, consequentemente, um resultado restaurativo. Assim, adaptações e variações são estimuladas para que sejam condizentes ao caso concreto. Porém, existem práticas que são mais difundidas, já tendo sido utilizadas com sucesso em vários países e por conta disso cabe destacá-las (PALLAMOLLA, 2009, p. 105):

a) Mediação vítima-ofensor (VOM – victim-offender mediation): o primeiro programa de mediação vítima-ofensor foi estabelecido em 1974, no Canadá. A prática é bastante difundida no EUA, com 300 programas funcionando atualmente e na Europa com 500 programas. Esse procedimento consiste em promover um encontro entre a vítima e o ofensor para que estes dialoguem sobre o ocorrido, na presença de um terceiro neutro, que pode ser tanto membro da comunidade que tenha recebido treinamento para isso, quanto um profissional qualificado. A própria mediação deve ser tratada como um meio e não como um fim, sendo a obtenção de um acordo o mero resultado de um processo satisfatório (FROESTAD; SHEARING, 2005, p. 82). A mediação vítima-ofensor foi o método escolhido para ser utilizado nos casos de violência doméstica contra a mulher no modelo que estamos propondo e assim será abordada detalhadamente no próximo capítulo.

Referências

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