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Com ações bem menos programáticas que a de um movimento cultural-social, que incluem saraus, conferências, encontros, debates, publicações coletivas, João Antônio buscou, “às vezes em ações coletivas, e, muita vez, solitariamente”, o leitor como parceiro. Com a diferença imensa de que seu ponto de partida é daquele que está no sistema literário ou na cena, enfim, fora da periferia.

Dessa forma, em um de seus manifestos, “O leitor como parceiro”, de 1976, João Antônio expõe algumas de suas preocupações sobre a literatura, a leitura, o mercado e a parceria: “Pus-me a campo – já que o leitor brasileiro (isso apregoam) não existe, é necessário fazê-lo” (ANTÔNIO, 2002, p. 159).

Na curta passagem, é possível identificar alguma correspondência com a idéia da parceria, no sentido proposto no capítulo anterior: modo de produção do discurso malandro, por meio da qual fica evidente sua vocação para a colaboração e o diálogo. O autor escreveu propondo luta, à sua maneira e estilo, “contra o tabu do autor nacional não ser lido”. Porque reconhece que, sem a leitura, pode não existir obra, tampouco o autor, muito menos o leitor. Daí a clareza de que o discurso literário como propõe, obrigatoriamente, passa por uma noção de parceria, para existir, para sobreviver.

Esse modo de produção pressupõe, ainda, segundo João Antônio, “conversa sobre a obra, mas o ideal é que ouça muito o parceiro, o leitor. Que jamais se estabeleça um clima formal, doutoral, beletrístico, mas de debate, discussão, questionamento e amizade” (ANTÔNIO, 2002, p. 130). São características que validam a concepção de parceria como um ato de diálogo, que presume troca e atrito.

A idéia do leitor como parceiro permite-nos aproximar os discursos, marginais ou malandros, produzidos por sujeitos e momentos históricos distintos. Essa característica do

discurso ganha ressonância (e complexidade) no que o jornalista Marcos Zibordi (2004) chama de “projeto pedagógico”, que reside no discurso de autores da literatura marginal da periferia. Em sua dissertação Jornalismo alternativo e literatura marginal em ‘Caros Amigos’, o autor estudou Ato I e II e, nesse conjunto, trabalhou com três características: a trajetória de vida dos escritores (com recorrência de elementos biográficos nas narrativas e o uso de gírias), a memória “ressentida” da produção e o projeto pedagógico – que nos interessa ler em parceria com João Antônio.

Zibordi (2004) toma como exemplo o texto “Uma carta em construção”, de José Rocha Albuquerque (Ato II), que começa:

Saudações.

Há algum tempo escrevo poemas com as mesmas mãos com que trabalho de ajudante de pedreiro.

Pra muita gente pode parecer exótico, pode parecer surreal. Mas o que tem de estranho? Pobre não tem sensibilidade? Não pode escrever, desenhar, pintar, interpretar?

E se eu fosse um catador de papelão, mudaria alguma coisa?

Se trabalho como ajudante de pedreiro não é por opção e sim por falta dela (ALBUQUERQUE, 2002, p. 4).

Por opção, em “O leitor como parceiro”, João Antônio põe o escritor na posição de operário das palavras, dimensionando a precariedade da categoria no trabalho de um feirante ou camelô. Opina: “Pronto o livro, o autor brasileiro não deve fugir à realidade de que é um vendedor de cebolas ou batatas” (ANTÔNIO, 2002, p. 159). Ironiza a condição marginal da literatura nas prioridades do brasileiro, põe tudo na mesma vala e reconhece: “Também por isso, há de se sair a campo e divulgar o que se sabe fazer” (ANTÔNIO, 2002, p. 159-160). Em outras palavras, diz ele que é “preciso arregaçar as mangas” e ir ao encontro desse leitor.

João Antônio, entretanto, tem dificuldades de aproximar-se desse usuário desconhecido por autores e pelas estatísticas. Então, faz propostas que parecem nada encontrar:

Parece-me um dado fundamental num país em que não existem fartas informações concretas sobre a natureza do público.

(...) Parece-me mais inteligente e objetivo procurar leitores, motivá-los, falar-lhes, ouvi-los, compreendê-los. (...)

Já se disse e se escreveu que este é um país de rico mercado desconhecido – também em potencial de leitores. No meu caso pessoal,

entendo o leitor como um parceiro, e é com essa idéia que vou procurá-lo (ANTÔNIO, 2002, p. 160-161).

O texto apresenta essa busca, argumentos de um projeto de literatura e leitura, e sustenta, insistentemente, a parceria como meio de chegar ao leitor. Um sujeito que, para João Antônio, estaria nas escolas, nas universidades e nos colégios: formando-se.

No texto de Albuquerque (2002), encontramos uma outra dimensão desse problema, que não escapa de uma mesma preocupação com a leitura, já não mais com o leitor consumidor de livros, mas com aquele que “não pode pagar 5 reais pela revista”:

Estou tentando publicar artesanalmente uns livros de poemas, feitos em xerox, mas o dinheiro nunca sobra, aliás, sempre falta. Escrevi dois infantis e um com poemas, abordando uma temática social cujo título, Voz Incômoda, já diz tudo.

Estou pesquisando lugares com preços de cópias mais baratos, para tentar vender depois apenas para cobrir os custos. Por aqui jamais conseguirei vender um livreto acima de 2 reais. Por isso, não almejo publicar um livro por uma grande editora, pois aqui ninguém poderia comprar (ALBUQUERQUE, 2002, p. 4).

“Uma carta em construção” é um indicativo desse projeto pedagógico, atento à condição marginal do leitor e, por isso, imbuído de fazer da literatura um ato político: “juntar o pessoal no mutirão, no arrastão das letras, organizar a periferia” (ZIBORD, 2004, p. 80).

Na carta, propõe Albuquerque: “Tentar criar nessa massa o hábito da leitura, fazer o pessoal desligar um pouco a televisão. A televisão que nos faz rir de nossa própria desgraça e, muitas vezes, sem perceber. Um mecanismo tão sutil de emburrecimento”.

O projeto pedagógico, portanto, “refere-se à construção de um discurso que pretende ‘ensinar’ ou ‘ampliar’ a capacidade crítica do público” (ZIBORD, 2004, apud NASCIMENTO, 2006, p. 35).

Correlata a essa proposta, conclui João Antônio em “O leitor como parceiro”:

Mas me reservo a certeza de que a literatura brasileira deve ser toda de participação frente à realidade do povo e da terra: aí, sua limpeza, dignidade, missão. Um dos fundamentos da literatura, desde a Bíblia, é melhorar o homem, o epicentro de qualquer arte séria e que mereça esse nome. No caso brasileiro, ainda não temos uma literatura à altura dos dramas nacionais. Mas talvez já comecemos a ter consciência dessa precariedade – um miserê não

apenas literário, mas jornalístico, cinematográfico, teatral, musical e cultural (até no sentido antropológico: comer, morar, viver) (ANTÔNIO, 2002, p. 161).

Sublinhadas as semelhanças dos projetos literários que residem em “Uma carta em construção” e “O leitor como parceiro”, voltamos ao leitor. João Antônio morre em 1996 nesse estado de suspensão, avaliamos, na busca de um leitor que não conhece. Sabe que não é o merduncho, o marginal, o malandro, o pingente, tipos sobre os quais escreveu; como se tivesse composto canções sem intérpretes.

Albuquerque, por sua vez, sabe quem é esse parceiro e reconhece, com isso, as dificuldades de construir literatura, no campo marginal:

No caso, não se trata apenas de um escritor marginal, mas também de leitores marginalizados.

E, enquanto escrevo esta carta para vocês, me pergunto se vão publicar algum poema meu e qual a finalidade de escrever também. Qual o meu intuito, já que os leitores marginalizados não podem pagar 5 reais pela revista? (ALBUQUERQUE, 2002, p. 4)

Daí, confirmam-se o porquê da importância das ações programáticas, das conexões extraliterárias, da atitude e, porque não, da mobilidade discursiva que perpassa o movimento, possibilitando-lhe parceiros mais heterogêneos que o rap, e a literatura seria então um campo que abarca mais e diferentes vozes que a música rap.

Contudo, num exercício de imaginação crítica, podemos observar que João Antônio encontrou um parceiro, que não apenas recebeu sua literatura (supostamente datada), mas percebeu sua poética, seu discurso, dialogando com ela, atribuindo um outro sentido à sua produção. O parceiro é Ferréz, um leitor marginal. Um parceiro desse escritor, e não de Rubem Fonseca, que estreou no mesmo ano que João Antônio, 1963, cuja obra também narra o submundo. “O submundo de João Antônio é, sobretudo, um recorte social, um grupo à margem”, pontua Rodrigo Lacerda (2006). “Na obra de Rubem Fonseca, de saída, já não se tem um recorte social tão nítido. Não há, programaticamente, como em João Antônio, a opção de dar voz a uma classe específica, ou mesmo uma categoria, a dos marginalizados, fossem de que classe fossem” (LACERDA, 2006, p. 438).

Assim, a parceria de Ferréz promove alguma mudança, à qual João Antônio parece tomar parte e Rocha (2004), na “Dialética da marginalidade”, associar-se, às avessas, como crítico.

O futuro (agora) é diferente do que supõe Lacerda?

O futuro, parece, afinou-se melhor ao projeto literário de Rubem Fonseca. A disseminação da violência na sociedade brasileira, a banalização dos horrores em nossas cidades, grandes, médias e até nas pequenas, o potencial dramático da violência quando vista e descrita, curta e grossa, sem maiores elaborações expressivas, tudo isso contribuiu. O realismo visual, historicamente, provou-se mais duradouro que a preocupação de João Antônio com a essência por trás da sonoridade das palavras (LACERDA, 2006, p. 440).

O que temos é um conflito, porque, para Rocha (2004), o conto “O cobrador”, de Rubem Fonseca, foi um “autêntico prenúncio da atual dialética da marginalidade”. Ao mesmo tempo esclarece-nos:

Paulo Lins e Ferréz explicitam o verdadeiro salto qualitativo da dialética da marginalidade, superando definitivamente a brutalidade dos cobradores de Rubem Fonseca, pois a violência somente reforça a desigualdade social. De um lado, legitima a repressão policial, que já afeta cotidianamente a população das áreas mais pobres. De outro lado, estimula as correntes mais reacionárias da sociedade civil, perfeitamente representadas por programas de televisão como o já referido ‘Cidade alerta’ e derivados, sempre prontos a exigir a pena de morte e o aumento do aparato repressivo. É como se o sistema se beneficiasse da violência e até mesmo contasse com ela, a fim de justificar sua própria necessidade.

A alternativa, portanto, é converter a violência cotidiana em força simbólica, por intermédio de uma produção cultural vista como modelo de organização comunitária (ROCHA, 2004).

Sem respostas para esse conflito (de parcerias, de projetos e de discursos), vemos que o futuro-agora, senão tão diferente, põe em cena, por meio da literatura marginal, o próprio olhar no seu lugar de direito. E dá, pela parceria (recepção e leitura), novo sentido à obra de João Antônio, então dissociada desse campo marginal segundo a “Dialética da marginalidade”.

Em 2002, acreditávamos que, para legitimar sua proposta de uma literatura marginal, Ferréz criou uma genealogia, elegendo como precursores dois escritores brasileiros (João Antônio e Plínio Marcos) e um russo (Gorki), além de um gênero da cultura popular, a literatura de cordel.

Não é uma idéia excludente, como vimos, mas não abarca o que classificamos como modo de produção dessa literatura, nesse caso, semelhante ao discurso malandro. Essa proposta literária não se valida pela tradição, pelo cânone. Fica em pé, caminha e avança por causa da adesão de mais e mais parceiros marginais. Constitui-se pela colaboração.

Hoje, enxergamos o ato de Ferréz como parte de uma tática, segundo Michel de Certeau (2007), “de fortificar ao máximo a posição do mais fraco” ou ainda como a “a arte do fraco”, porque não se organiza pelo postulado de um poder.

A tática não tem por lugar senão o do outro. (...) Este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar o vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É a astúcia (CERTEAU, 2007, p. 100-101).

Nesse sentido, é possível estreitar um pouco mais a relação dos malandros do samba, de João Antônio e de escritores marginais da periferia, justamente porque a idéia de fortificar a posição do mais fraco está no cerne das produções dos marginalizados que fazem arte com a palavra.

Correndo riscos, podemos até fazer uma leitura de João Antônio como o “fraco” nesse campo cultural. Nos anos 1990, ele praticamente não existia nas prateleiras: “a obra literária ‘de direito’ estava praticamente fora de circulação, quase todos os livros esgotados, suas melhores editoras falidas ou esquecidas de sua importância” (LACERDA, 2006, p. 431).

Ou seja, sem os parceiros marginais postos em cena nos saraus, nas publicações, nos blogs, nas palestras, nas suas quebradas, o autor teria consumidores supostamente motivados pelas atrativas reedições da editora Cosac Naify, organizadas a partir dos anos 2000 por Rodrigo Lacerda, com o intuito de também contribuir para o não-esquecimento do escritor. Além disso, a organização do Acervo João Antônio, sob a coordenação da Unesp de Assis, também permitiu a revalorização da obra do autor nos últimos dez anos.

De qualquer modo, nossa aposta permanece: há um campo discursivo (e crítico) – que envolve as produções examinadas – mais forte, mais perene, que as dicotomias: malandro/marginal, forte/fraco, bom/mau.

Sendo assim, não excluímos a mirada de 2002, mais atenta aos aspectos imediatos – não menos importantes – da ligação entre João Antônio e a literatura marginal (na voz de

Ferréz), como veremos na última leitura deste trabalho acerca do primeiro texto público que trata dessa parceria.