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Assim, a parceria se mostra central na organização da jogatina como mote narrativo. Ela ganha ainda mais intensidade, como característica discursiva, caso aproximada da análise de Bruno Zeni (2004) sobre a literatura de João Antônio em Malagueta, Perus e Bacanaço.

A ficção de João Antônio comporta, segundo Zeni, um projeto de “comunhão na marginalidade”, que se dá numa São Paulo invertida, avessa à oficial. Essa comunhão se torna possível no espaço utópico da literatura. Para isso, utiliza alguns conceitos. Um deles é a análise de Candido sobre Malagueta, Perus e Bacanaço no artigo “Na noite enxovalhada”:

Não se trata, portanto, de mais um autor que usa como pitoresco, como coisa externa a si próprio, a fala peculiar dos incultos. Trata-se de um narrador culto que usa a sua cultura para diminuir as distâncias, irmanando a sua voz à dos marginais que povoam a noite cheia de angústia e

transgressão, numa cidade documentariamente real, e que no entanto ganha uma segunda natureza no reino da transfiguração criadora (CANDIDO apud ANTÔNIO, 2004, p. 11).

Além da literatura, na qual a experiência marginal pode ser inscrita no campo cultural, à semelhança da noite boêmia, a fala de Candido aponta outro elemento: a aproximação fraternal entre narrador e personagens marginais. Essa análise sobre a condição fraternal é ainda expandida para a relação dos malandros do conto principal de Malagueta, Perus e Bacanaço. Explica Zeni (2004, p. 20): “é no companheirismo do amigo ou do parceiro de jogo que os protagonistas de João Antônio vão encontrar um outro que, como um irmão, seja ao mesmo tempo elemento de identificação e de diferenciação”.

O pesquisador usa o ensaio “Existe uma função fraterna?” de Maria Rita Kehl, no qual a autora recupera a idéia de fratria para “chamar atenção para o caráter necessário, não contingente, da participação do semelhante no processo de tornar-se sujeito” (KEHL, 2000, p. 31). A fratria seria como modo social de constituição do eu na contemporaneidade sob a perspectiva fraterna da “semelhança na diferença” –, porque a fratria pode se pautar pela intolerância da diferença. Trata-se de uma condição que não existe sem a prerrogativa da função paterna, derivada da leitura do mito freudiano sobre o assassinato do pai da horda primitiva cometido pelos irmãos; funda-se aí a Lei e a culpa – a passagem da “barbárie para a civilização”. Na função paterna, localizam-se relações verticais de autoridade nos espaços de organização da sociedade.

Se o ato dos irmãos, no mito das origens, institui a função paterna, é a partir da cultura da linguagem, que esta função continua operando. O pai real, e as diversas autoridades que podem substituí-lo, não fazem mais que transmitir a Lei – à qual também estão sujeitos....assujeitados. Separar o pai (real) do pai simbólico equivale, na ontongênese, ao assassinato primordial; refazer na vida pessoal o percurso da horda primitiva à coletividade civilizada que não se realizada sem a participação do semelhante (KEHL, 2000, p. 35).

Dessa forma, qualifica-se uma importante discussão sobre parceria em João Antônio (no caso, com o leitor), buscada pelo próprio autor, e que veremos no próximo capítulo. Mas, desde já, podemos pensar que, mais do que uma ética malandra (marginal) – que evitamos ao máximo neste trabalho por vulnerável ser às leituras e condições históricas –, existe um código de tolerância gerado a partir dessa relação de parceria, que se constrói pelo

semelhante. Nesse caso, um código construído na marginalidade. Damos ênfase, então, à parceria como modo de produção do discurso, pautado por essa tolerância, móvel e fraterna.

Mais que isso: a partir dessa leitura crítica sobre João Antônio, entrou em cena a mirada que Kehl então utilizou para entender o “esforço civilizatório” empreendido pelo rap dos Racionais MC’s na periferia de São Paulo, que se daria por uma função fraterna, em que, mesmo diferentes, irmãos lidariam com a “transmissão de saberes e experiências” num “modo de circulação horizontal”, por meio dos “encontros e embates entre semelhantes”, nos quais “a submissão voluntária aos discursos da autoridade é relativizada, inclusive pela própria multiplicidade de enunciados de saber” (KEHL, 2000, p. 44).

Zeni, contudo, utiliza o conceito de “função fraterna” reelaborado pela psicanalista, mas não esclarece haver possível relação entre os modos como os diferentes artistas (João Antônio e Mano Brown, dos Racionais) lidam com esse vínculo, que acarreta, sem dúvida, na sua parceria com leitores, ouvintes e seguidores. Se a parceria designa um modo de produção que passa pelo coletivo, sobretudo no caso das experiências criativas marginais, esse componente não pode ser descartado. Sabemos que a coletividade é parâmetro para o rap, assim como para João Antônio literatura não se dá sem parceria com o leitor e matéria (marginal, musical, mundana, vivida). Caso exista tolerância como código gerado a partir dessa relação de parceria, que se constrói pelo semelhante (diferente), talvez haja uma parceria com a marginalidade que eventualmente não consigamos nomear. Isto é: o samba de Bezerra da Silva pode ter mais respostas, pois trouxe uma outra leitura de malandro, como bandido, para o samba de partido alto na década de 1980. Assim, avaliamos que “Dedo-duro” tem algo a dizer, já que sua existência mostra uma flexibilização no campo marginal inscrito pelo autor ou, ainda, uma tolerância para além do “campo da vida na linguagem”. Essa condição pode ser apropriada de outras formas que não só a de uma leitura em que tudo pode no mundo do crime, marginal etc. Mas esse é um outro debate.

De qualquer modo, uma de nossas questões, a parceria na marginalidade como uma característica do discurso malandro, fica ainda mais exacerbada. A parceria é potencializada nessa comunhão, caracterizada na literatura de João Antônio por meio da “interlocução entre autor, personagens e leitor, em que todos se aproximam fraternalmente, sem perder suas singularidades, construindo um lugar de encontro àqueles que se sentem sem lugar” (ZENI, 2004, p. 147).

Ratificamos que João Antônio, nessa condição fraternal, estabeleceu parceria direta com os malandros em “Malagueta, Perus e Bacanaço”, na construção do discurso que busca a

“participação do semelhante”, e o que há de música (no corpo-a-corpo com o jogo) numa voz marginalizada pela escrita.