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Firgura 43. Ilustração de “João e Maria”, Susanne Jansen (Alemanha, 1965-)

1.1.3. O leitor implícito

No capítulo dedicado às definições de Literatura Infantil, do livro “Crítica, Teoria e Literatura Infantil” (1ª edição de 1991), Peter Hunt16 organiza uma série de critérios que poderiam ser utilizados – e que o foram em algum momento da crítica – para a legitimação desse segmento como autêntica “literatura”. Hunt acredita que,

15 For me children’s literature cannot be understood as the passive reflection of changing values and conceptions of the child (images of childhood); instead I see it as one of the central means through which we regulate our relationship to language and images as such. So often has it seemed to be the case that what is at stake is in an image of the child is not the child first and then the image, but the child as the most fitting representative for the gratifying plenitude of the image itself.

16 Peter Hunt (Inglaterra, 1945 - ) é professor emérito na Universidade de Cardiff, UK. Foi pioneiro no estudo da literatura infantil nos níveis superiores de ensino. Ministra disciplinas sobre a literatura infantil, priorizando seu aspecto literário sobre o pedagógico. É autor de vasta produção sobre o tema. Sua obra é internacionalmente difundida.

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“automaticamente todos os leitores infantis e todos os livros para criança” do campo da Literatura (HUNT, 2010, p. 82).

Quando comparada a outros textos, considera-se a literatura “mais elevada”,

“mais densa”, “mais carregada”, “especial”, “à parte” e assim por diante.

Considera-se, também, que ela seja o “melhor” que uma cultura pode oferecer.

Parece haver nisso duas maneiras de dizer a mesma coisa, mas elas dão origem a um tipo de esquizofrenia – como temos visto – entre as pessoas ligadas ao “universo do livro infantil”, uma vez que a “literatura” é vista como não “adequada” para crianças – sem questionar a aptidão que as crianças têm para com a literatura, mas que esta não se relaciona com o universo infantil (HUNT, 2010, p. 83-84).

Outro critério é aquele imposto pela concepção de literatura como uma expressão artística não-funcional. Sob a perspectiva de que os “bons livros infantis”

assim são julgados quando atendem a interesses de grupos específicos – educadores, alfabetizadores etc. – então, “novamente por definição, aquilo que é inútil não pode ser bom para a criança leitora” (HUNT, 2010, p. 90).

Ambos os exemplos citados acima mostram como a própria definição do que é literário parece expulsar do seu campo a literatura infantil na medida em que entra em conflito com a definição de infância. A dificuldade da legitimação do aspecto infantil no campo literário torna-se, nesse contexto, uma questão de poder, como bem definiram as críticas literárias brasileiras:

Falar à criança, no Ocidente, pelo menos, é dirigir-se não a uma classe, já que não detém poder algum, mas a uma minoria que, como outras, não tem direito a voz, não dita seus valores, mas, ao contrário, deve ser conduzida pelos valores daqueles que têm autoridade para tal: os adultos. São esses que possuem saber e experiência suficientes para que a sociedade lhes outorgue a função de condutores daqueles seres que nada sabem e, por isso, devem ser-lhes submissos: as crianças (PALO e OLIVEIRA, 1992, p. 5).

Em linha semelhante, Hunt argumenta que a “autoridade arbitrária” da instituição literária impõe seus valores, ou barreiras, no acolhimento da literatura infantil. Se essa permanece às margens daquela, é por uma questão de poder.

39 A noção de “cânone” ou “corrente principal” é uma construção social. Esse

“cânone” tem sido influenciado pelas universidades e, para que a literatura infantil aceda a essa condição privilegiada, deve se tornar parte da estrutura de poder ou essa estrutura precisa mudar (HUNT, 2010, p. 87-88).

Sem decretar o empreendimento da definição da literatura infantil como perdido, Hunt indica algumas reflexões frequentemente ignoradas pelos estudiosos do campo. Uma delas é a consideração do leitor e de sua perspectiva de leitura. Não se trata, como propôs Cecília Meireles (1984), de dar ao leitor mirim o poder de julgamento, mas de esclarecer, no trato da literatura infantil, de qual ponto de vista partem as reflexões, visto que a experiência literária nunca será a mesma entre leitores distintos.

Hunt elenca três situações de leitura que precisam ser diferenciadas: o adulto que lê o livro destinado ao adulto, o adulto que lê o livro destinado à criança, e a criança que lê o livro destinado à criança. E alerta que as “diferenças entre essas situações são fundamentais para a nossa discussão. A crítica tende a falar delas como se fossem iguais – mas não são, exceto de uma maneira um tanto perigosamente ilusória” (HUNT, 2010, p. 78).

Além de ter claro qual a perspectiva que se adota na crítica da narrativa infantil, também deve-se considerar os impactos que o “público implícito” gera sobre tal leitura.

Ou seja, ainda que um livro infantil seja dotado de complexa literariedade, os elementos peritextuais que o qualificam como “infantil” geram um impacto no modo como um adulto realizará sua leitura.

...quando o adulto lê textos infantis, quase sempre o estará fazendo em nome de uma criança, para recomendar ou censurar por alguma razão pessoal ou profissional. Os critérios aqui utilizados certamente supõem o público implícito e levam a um juízo intelectual quanto ao livro em questão ser ou não apropriado a esse público. Logo, os critérios para o primeiro devem ser: a preferência pessoal (política, sexual, temática); a conveniência do conteúdo (como o adulto o percebe) para o uso que será dado ao texto (formação de habilidades, educação social, diversão); e, talvez o mais fácil, a complexidade linguística (HUNT, 2010, p. 80).

Os critérios de leitura apontados por Hunt nos levam aos problemas da relação adulto-infância. Ler em nome de uma criança pressupõe não só valores e juízos, mas também de que maneira o leitor adulto se relaciona com a infância, se por meio da memória de sua própria infância, ou de uma “sensação” de infância, ou ainda, por

40 meio de uma imagem criada da infância. “Até que ponto os leitores conseguem esquecer sua experiência adulta”, pergunta o crítico (HUNT, 2010, p. 81).

Nesse distanciamento entre leitor adulto (que também poderia se estender ao autor de literatura infantil) e a criança, a infância estabelece-se como uma cultura diferenciada ou, usando as palavras de Hunt, uma “anticultura” ou “contracultura”

(HUNT, 2010, p. 92). Desta forma, ler em nome de uma criança acabaria sendo uma impossibilidade, como defendeu Jacqueline Rose. Todavia, Hunt sugere uma brecha:

Quem quer que tenha lido muitos livros para criança quando adulto provavelmente concordará que é o tipo mais gratificante de leitura – e, outra vez, o mais inadvertido por aqueles em dúvida quanto ao status da atividade -, o que envolve aceitação do papel implícito; é quando o leitor se rende ao livro nos termos do próprio livro. Corresponde ao mais próximo que podemos chegar de ler como uma criança; porém, está ainda muito longe da leitura feita por uma criança de verdade (HUNT, 2010, p. 81).

Render-se à metodologia de leitura imposta pelo próprio livro aparece como uma possibilidade, ainda que imperfeita, de passar para um tipo de “estado infantil”

(HUNT, 2010, p. 93). Todavia, nossa questão permanece: haveria uma especificidade no texto literário capaz de configurá-lo como literatura infantil? De que modo a infância caracteriza a literatura infantil?