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A leitura como actividade voluntária

Parte I A leitura como problema antropológico

2. Sobre o conceito de leitura: as práticas da leitura

2.6. A leitura como actividade voluntária

Por último, Barthes e Compagnon concebem a leitura como uma actividade

voluntária. Se, durante muito tempo, a leitura foi considerada como via de instrução

(moral) ou distracção, hoje ela pode ser concebida «como “uma actividade voluntária”, desenvolvida sem espírito de troca, de rentabilização, apenas pelo prazer do leitor. A leitura pode, portanto, assumir um cariz anti-social (crianças que são repreendidas por se absorverem demasiado na leitura» (1987: 186-187). A leitura desenvolve a faculdade da imaginação. Com Marcel Proust (ainda neste capítulo e no próximo) veremos que a leitura, mesmo a solitária, não é anti-social. Ela provoca uma distância que, ao separar- nos da vida quotidiana tal como comummente a vivemos, nos aproxima e nos introduz na vida de forma (re)criada.

Esse carácter voluntário da leitura está associado ao prazer de ler, ao desenvolvimento do imaginário, à satisfação do ego. No livro intitulado O prazer da

leitura, Marcel Proust mostra-nos o que pensa sobre o lugar (isto é, o papel

insubstituível) que os livros e a leitura ocupam na vida. Proust dedicou-se seriamente à questão do prazer que a leitura nos dá, a essa evasão que ela provoca em nós. Afirmando o prazer tão intenso da sua leitura – o acto de nela se refugiar – Proust diz que «não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgamos passar sem tê-los vivido, aqueles que passamos sem um livro preferido» (1997: 5); ou mesmo quando expressa a sua fruição, o seu desejo de ler, a sua busca de refúgio, quando narra o facto de ter como companheiros da sua leitura, «os pratos pintados pendurados nas paredes, o calendário cuja folha da véspera fora recentemente arrancada, o relógio de pêndulo e o lume que falam sem pedir que se lhes responda e cuja suave linguagem vazia de sentido não vem, como as palavras dos homens, entrar em conflito com as palavras que uma pessoa está a ler» (1997: 7).

Nessas belíssimas passagens dessa obra, Proust narra cenas da sua vida, da sua infância, a recordação da felicidade dos tempos dedicados à leitura em que estava separado das pessoas, das coisas, do quotidiano. Portanto, um espaço e um tempo de leitura solitária e silenciosa, onde a única disposição é a concentração espiritual: «Nessa álea, o silêncio era profundo, o risco de ser descoberto era quase nulo; […] arriscando- me a ser castigado se fosse descoberto e à insónia que, terminado o livro, se iria talvez

prolongar durante toda a noite, assim que meus pais se deitavam eu voltava a acender a minha vela» (Proust, 1997: 20-23).

É interessante constatar que, de algum modo, Barthes e Compagnon denunciam os comportamentos anti-sociais ligados à leitura – expressão do isolamento e da volúpia – tomando a fruição da leitura como suspeita, pois esta leitura de desejo, tal como é concebida por Proust, tem «um aspecto ambíguo: é possessiva» e associa-se a um «acto de domínio» (Barthes e Compagnon, 1987: 196). Essa leitura voluntária (de prazer) em vez de se reduzir à pura satisfação de um leitor solitário e demasiado ensimesmado – a um leitor que pensa no “eu mesmo” e não num si mesmo como um outro à maneira Ricœuriana (o que não cremos acontecer na leitura tal como Proust a concebe) –, deve

abrir-se à alteridade; tornar-se na via de criação de um si mesmo enriquecido pelo

mundo dos textos que a literatura lhe dá a pensar. Deste modo, o leitor, ao sentir-se afectado pela força da palavra-mundo, vai-se se tornando num sujeito em metamorfose. Através da própria (des)estabilização sofrida, vai-se dando uma abertura.

Ao formar o espírito, a experiência da leitura educa o homem para a acção humana no mundo. Pois, como temos vindo a salientar, a leitura põe em questão aquilo que somos. A experiência da leitura torna-se, neste sentido, numa experiência de transformação do sujeito leitor. Abre-o não somente ao seu mundo íntimo (através da (des)estabilização e da perda de si), mas também ao mundo do outro. Ao mundo do outro porque a palavra que se toma na leitura não é a minha nem a tua palavra. É a

nossa palavra. Os textos, as obras, tem como referência o mundo. E o mundo é comum.

Esta comunidade leva-nos a um reconhecimento do outro. Por mais que possa parecer que a leitura solitária e silenciosa é anti-social, nem sempre é verdade. Quando leitores diferentes partilham essa zona de confluência gerada pelo mundo dos textos – nesse excesso de sentido e de sentir que esse mundo abre através dos acontecimentos e das vivências narradas – agimos de acordo com a nossa singularidade; ou seja, algo acontece connosco ao lermos. (Des)identificamo-nos, perdemo-nos para nos (re)encontrarmos. Só assim nos podemos abrir à experiência do outro. Outrar. Agindo mediante um conjunto complexo de conhecimento, de sentimento, de vontade.

Ao ler o mundo – o texto – lendo-me a mim e ao outro de mim mesmo, estou já inscrito na dimensão do agir, não só intimamente, mas também como convite de abertura a um espaço em que as referências se tornam comuns. Então, a minha leitura está marcada pelo acontecer inesperado que não posso controlar e que tem o seu

sentido na acção, na forma que me desenha enquanto sujeito ferido pelo mundo do texto. A leitura como prazer não é sinónimo de fechamento. O leitor isola-se para se (re)encontrar consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Seja qual for a leitura que pratico – literatura, poesia, artes plásticas ou visuais – há uma forma estética aliada a uma forma ética: é a própria beleza de ser (trans)formado pela leitura, desde dentro do mundo do ser, do pensar e do agir.

A questão da leitura como prazer está, também, relacionada com a forma como tocamos os livros, como os manuseamos. A forma como somos por eles afectados: o próprio gesto de os ver e de os manusear, a euforia e evasão que provocam no nosso ser. É o que confessa Manguel quando fala do seu emprego numa livraria depois das aulas, onde os livros o aliciavam a praticar algo que não se reduzia à mera limpeza: «Queriam que eu pegasse neles, os abrisse e inspeccionasse e, por vezes, nem mesmo isso bastava. Algumas vezes furtei um livro tentador; levava-o para casa comigo, escondido no bolso do casaco, pois não me bastava lê-lo; tinha de o possuir, de o chamar meu» (1998: 29).

Torna-se, então, imprescindível estudar o tema da “leitura”, partindo desse conjunto de práticas que histórica e socialmente vêm sendo desenvolvidas: pensar a leitura tendo conhecimento da forma como evoluiu nas suas práticas, nos tempos e espaços diferentes, no formato de inscrição dos textos dados a ler e sua influência no acto de ler; enfim, nas diversas situações de leitura. Barthes e Compagnon souberam preservar o termo leitura, não o reduzindo a um conceito linear e unívoco, mas sim, perspectivando-o como tendo «um significado muito vasto» (1987: 185). Deste modo, estas práticas de leitura revelam-se como uma via imprescindível para a realização de um estudo sobre a leitura pelas ciências sociais e humanas. Como salientámos no início, a palavra “leitura” é plurívoca. Ao pensar a leitura, devemos ter sempre em consideração a complexidade que a sua tematização supõe. Cremos que uma das lacunas da educação e da cultura contemporâneas relativamente ao acto de ler reside no desfasamento e no esquecimento de muitas dessas práticas. No fundo, é o que diz Juan Domingo Arguelles relativamente à leitura em voz alta:

Este é um dos maiores problemas da cultura contemporânea. A euforia de uma ganância (a leitura em silêncio) conduziu-nos a uma perda cultural, pois, ter praticamente abandonado a leitura em voz alta conduziu-nos a renunciar a um dos mais esquisitos prazeres: interpretar e escutar a música das palavras. Nunca, como hoje, a ironia foi mais exacta: graças a esta perda e àquela ganância, hoje temos uma educação da leitura que, sem eufemismo, se pode denominar muda (2003: 127).

De facto, hoje fala-se de uma educação que crie nos educandos o gosto pela leitura, que os ajude a descobrir esse prazer desinteressado que é ler. Prazer que não se reduz nem a obter a recompensa imediata da informação, nem a solucionar problemas situacionais. Mas, perspectivando a questão da leitura na sua outra vertente, isto é, a questão do discurso escrito e a fixação que este permitiu à temporalidade humana, compreende-se que o provérbio latino, verba volent, scripta manet, já citado, na linha de pensamento de Manguel, ganha sentido. Se a comunicação se reduzisse somente à oralidade a conservação da palavra seria mais difícil. É por isso que a escrita prolonga a mensagem para além do espaço e do tempo vivido pelo seu autor. Pensamos com Julían Marías que

numa sociedade analfabeta, a cultura que nela podia ser muito interessante e valiosa, tem de ter uma forma tradicional, fundada na transmissão oral, ou na persistência de monumentos […]. Pois tudo isto tem um carácter que não seria adequado chamar “actual”, mas sim presente. Tudo, igualmente, está aí. A música, as danças, os costumes, os edifícios, as representações plásticas, todos têm um carácter imemorial (1998: 58-59).

Nesta linha, também, Gadamer reconhece que

a tradição escrita não é somente uma porção de um mundo passado, mas está sempre acima deste, na medida em que se elevou à esfera do sentido que ela mesma enuncia. […] Pois o portador da tradição não é este manuscrito como uma parte de então, mas a continuidade da memória. Através dela a tradição se reconverte em uma porção do próprio mundo, e o que ela nos comunica pode chegar imediatamente à linguagem (1977: 469).

A continuidade destas perspectivas leva-nos a pensar a leitura como problema

hermenêutico, a leitura enquanto experiência. A leitura como experiência aberta. De

facto, ao lemos um texto, se essa leitura se manifestar como experiência, lemos a nossa vida no mundo do texto posto à nossa disposição. A nossa tradição vem até nós sob a forma de fusão de horizontes. Como afirma Gadamer na sua análise do modo de ser da literatura, «a única condição sob a qual se encontra a literatura é a transmissão linguística e seu cumprimento na leitura» (1977:256). É neste sentido que, no horizonte gadameriano, colocamos o acento na escrita enquanto algo fundamentalmente “estranho” e “estimulante” para a compreensão.34 Pois, para Gadamer, não há nada que represente uma marca tão pura do espírito – e que esteja vinculado ao espírito que compreende – como esse poder misterioso que a escrita nos dispõe. Assim, na

34

decifração e interpretação ocorre um milagre: transformar um sentido morto, estranho, num sentido familiar e vivo. A escrita abre-nos, assim, a uma verdade que atravessa os tempos:

Nenhum outro género de tradição que nos venha do passado se parece

a este. As relíquias de uma vida passada, os restos de edificações, os instrumentos, o conteúdo dos sepulcros, sofreram a erosão dos vendavais do tempo que passou por eles; a tradição escrita, entretanto, desde o momento em que é decifrada e lida, é de tal modo espírito puro que nos fala como se fosse actual. Por isso, a capacidade de ler, a capacidade de ser entendido em escritos, é como uma arte secreta, como um feitiço que nos solta e nos ata. Nela o espaço e o tempo parecem suspensos. Quem sabe ler o que foi transmitido por escrito atesta e realiza a pura actualidade do passado (Gadamer, 1977: 261-2).

Como mais adiante teremos oportunidade de ver – através do conceito de

experiência (parte II do trabalho) –, sendo o texto e a sua interpretação um dos objectos

da hermenêutica, ele não se reduz, nem a uma pura estrutura, nem a uma subjectividade pura. O texto joga com a própria auto-compreensão humana, com a antecipação de sentido. Abre-nos a fusão de horizontes.

3.

A leitura como refúgio: o valor terapêutico da leitura