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A leitura é uma forma de gestualidade

Parte I A leitura como problema antropológico

2. Sobre o conceito de leitura: as práticas da leitura

2.3. A leitura é uma forma de gestualidade

Num terceiro plano, Barthes e Compagnon falam da leitura como forma de

gestualidade, afirmando o facto de ainda hoje parecer natural ver na leitura uma

“técnica incorpórea”, o que faria com que a escrita fosse ainda manual e a leitura mental, “abstracta”. Uma seria mais passiva e a outra mais activa:

Codificar (criar) teria mais valor que descodificar (consumir); durante séculos a leitura foi uma actividade forte, na qual o corpo estava, por estatuto, empenhado. […] Lia-se com os lábios, a escrita voltava a passar pelo corpo, e através da parte especialmente sensível do corpo que é o aparelho oral (Barthes e Compagnon, 1987: 185).

A leitura era “teatral”: ler era sinónimo de dizer o texto com todos os gestos do actor. Mas, mesmo que hoje exista um certo esquecimento da leitura em relação a estas

práticas de gestualidade, associando-se esta de um modo mais evidente ao sentido da visão, o acto de ler continua a estar associado à posição do corpo. Enquanto leitor, ao ler, quer em silêncio quer em voz alta, envolvo-me e entrego-me ao poder desse corpo que sou32. Sendo a carne do meu próprio existir no e com o mundo, o corpo não é expressão de uma razão abstracta, mas sim, de uma razão encarnada e sensível, de um eu concreto imerso na vida. De um ser corpóreo que sente, vive, ama, envelhece, sofre. A minha relação (que é leitura) com o outro (homem, mundo, texto, ecossistema) passa, necessariamente, pelo meu corpo. Ao lermos um texto (qualquer manifestação de mundo à nossa volta), o corpo está envolvido numa trama complexa de relações, num

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Ora, se é importante pensar o corpo quando se trata o tema da leitura (porque somos um corpo e não nós e o nosso corpo), não é menos importante ver a forma como tem sido tratado. Na modernidade o corpo foi objecto de uma desconfiança antropológica, de um sentido dualístico e de uma racionalidade totalitária. É o que reconhece Eugénia Vilela no seu livro Do corpo equívoco, quando pensa a questão da equivocidade do corpo sob uma modernidade dualista e o seu desencadeamento numa visão cindida do próprio homem. Uma separação interior-exterior, corpo-alma, homem-corpo, remetendo o ser humano para uma lógica da exclusão. A visão moderna pensou o mundo como se o corpo não fizesse parte dele; o corpo como uma construção simbólica e epistémica. Como se o corpo humano se reduzisse a um corpo físico. Portanto, não reconhecendo esse excesso de sentido, de viver encarnado (a própria corporeidade do existir). É nesta linha que a autora afirma: «tradicionalmente, o sensível e o inteligível fundam-se em espaços divergentes de sentidos incomunicação. […] Entre o inteligível e o sensível impende uma comunicação impossível. É como se o sensível, fechado no lugar absoluto da desordem, não possuísse lógica alguma, situando-se na periferia de um qualquer sentido, e o inteligível apenas fizesse uso do corpo para representar a lógica do existente, mantendo uma estranheza surda face ao corpo. […] Na modernidade, a natureza antropológica do corpo defina-se sob as coordenadas de uma natureza epistemológica pela qual se determina a possibilidade ou a impossibilidade de verdade. […] O corpo possui, assim, sob a forma narrativa epistemológica da modernidade, um sentido secundário. […] A confiança epistemológica concebia, violentamente, uma imagem antropológica cindida: o homem era, essencialmente, razão. Os domínios do desejo, da subjectividade, do individual, eram circuncidados do existir humano, já que o único sentido que lhes era atribuído era, precisamente, o de não o possuírem. O diâmetro da experiência humana abrangia apenas um único projecto – o projecto racional – concebido disjuntivamente a nível antropológico, sob o paradigma de uma razão igualmente disjuntiva, a nível epistemológico» (1998: 102;124;179).

O conjunto das experiências do corpo desde a modernidade está fragmentado sob dois redutos, também eles irreconciliáveis entre si: «o reduto do conhecimento em que o corpo se concebe na figura rígida de corpo epistemológico (o corpo perspectivado como objecto anatómico, orgânico, social) e o reduto da vida em que o corpo se expõe como corpo existido (o corpo vivido da angústia, da morte, do nascimento, do esquecimento)» (1998: 165-166).

Estas considerações são testemunho da necessidade de um pensamento sobre o corpo desde o seu interior, no sentido de desconstruir as narrativas da modernidade sobre o corpo e de desencadear uma reaprendizagem do próprio corpo. A ideia é superar o dualismo, esse mundo de separação; ou seja, desconstruir estas formas tradicionais de olhar e aventurarmo-nos numa ontologia profunda do existir encarnado, desconstruindo a ideia de uma cisão moderna sujeito-objecto. Para que possamos aceder a essa reaprendizagem tal como a autora no-la dá a pensar, é necessário uma «reflexão crítica sobre a razão pedagógica, [que] permite pensar a pedagogia – para além dos contornos da modernidade – sob uma forma de perspectivar a configuração da razão. A razão pedagógica distancia-se, então, de uma razão excessiva, quer ultrapassando a racionalização característica das estruturas de verdade que definem os estados de dominação, quer transfigurando o espaço pedagógico enquanto lugar de dominação, para se construir desde o interior de uma racionalidade aberta» (1998: 177-178). Portanto, uma racionalidade aberta que se constitui como nexo das diversas manifestações da razão (incluindo aí o corpo), uma racionalidade que recupera esse sentido trágico da finitude humana».

excesso de sentir e de sentido. Quando actua no palco, o corpo do actor está empenhadamente envolvido nos seus gestos. O seu corpo revela a carne de seu verdadeiro pensar. Lê e (re)escreve no mundo através da sua linguagem corporal. Uma linguagem gestual (um dizer poético) que tem a força de uma palavramundo. Numa linguagem que é história, tradição e nascimento, somos lançados no movimento do jogo onde o corpo é acontecimento da leitura. Corpo que, como nos diz Eugénia Vilela, «não é um fenómeno mudo; ele é, simultaneamente, actor, texto, cenário – história onde representa e existe o sentido plural da realidade» (1998: 166).

Nestas circunstâncias, Barthes e Compagnon reconhecem que «a leitura faz sempre parte de uma situação do corpo: lemos sentados, deitados, de pé (era antigamente a postura correcta: o clérigo lia em frente de uma estante, hoje em dia lemos no metropolitano, e a maior parte das vezes em locais fechados)» (1987: 185). Ou seja, o corpo é o motor do mundo. Não vivemos nele. Somos um corpo. É o que afirma Ítalo Calvino:

Leitora, agora és lida. O teu corpo é submetido a uma leitura sistemática, através de canais de informação tácteis, visuais, olfactivos, e não sem intervenção das papilas gustativas. Até o ouvido desempenha seu papel, atento como está aos teus arfares e ás tuas vibrações. Não é só o corpo que em ti é objecto de leitura: o corpo conta enquanto parte de um conjunto de elementos complicados, nem todos visíveis e nem todos presentes mas que se manifestam em fenómenos visíveis e imediatos: o enevoar dos teus olhos, o riso, as palavras que dizes, a maneira de prenderes e soltares os cabelos, o modo de tomares a iniciativa e de te retraíres e todos os sinais que estão na margem entre ti e os usos e os costumes e a memória e a pré-história e a moda, todos os códigos, todos os pobres alfabetos através dos quais um ser humano julga em certos momentos estar a ler outro ser humano. (2000: 184- 185).

Como temos vindo a salientar, estas práticas de leitura vêm sofrendo alterações ao longo dos tempos e dos espaços. Santo Agostinho é uma das personalidades medievais defensora da leitura em voz alta em detrimento da leitura silenciosa33. A leitura silenciosa é, tal como a leitura em voz alta, uma prática muito antiga da leitura.

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Santo Agostinho, produto da época medieval em que a leitura em voz alta era um acto dinâmico, não aceitava a leitura silenciosa de Santo Ambrósio. No seu livro As Confissões, Santo Agostinho, no capítulo dedicado ao trabalho de Santo Ambrósio, afirma: «mas, quando lia, os olhos divagavam pelas páginas e o coração penetrava-lhes o sentido, enquanto a voz e a língua descansavam. Nas muitas vezes que me achei presente – porque a ninguém era proibida a entrada, nem havia o costume de lhe anunciarem que vinha – sempre o via ler em silêncio e nunca doutro modo. Sentava-me e permanecia em longo silêncio – quem é que ousaria interrompê-lo no seu trabalho tão aplicado? –, afastando-me facilmente. Imaginava que, neste curto espaço de tempo em que, livre do bulício dos cuidados alheios, se

«Até à Idade Média e durante este período, os escritores partiam do princípio de que os seus leitores ouviriam o texto, e não apenas o veriam, da mesma forma que eles próprios proferiam as palavras em voz alta ao escrever. Visto que poucas pessoas sabiam ler, as sessões de leitura em público eram habituais e os textos medievais reportavam repetidamente a audiência a “dar ouvidos” a uma história» (Manguel, 1998: 59).

A expressão clássica scripta manet, verba volent – que nos nossos dias acabou por significar que o que está escrito permanece, e o que é dito esvai-se no ar – era utilizada para exprimir o contrário, isto é, foi cunhada em louvor da palavra dita em voz alta, que tem asas para voar, em comparação com a palavra silenciosa na página, que é imóvel e morta.