• Nenhum resultado encontrado

LEITURA ESCOLAR: ARQUICOMPETÊNCIA, TRABALHO DE TODOS E ELEMENTO DE FORMAÇÃO.

LEITURA: CONCEPÇÃO E ENSINO-APRENDIZAGEM

2.4. LEITURA ESCOLAR: ARQUICOMPETÊNCIA, TRABALHO DE TODOS E ELEMENTO DE FORMAÇÃO.

Uma possível explicação para toda esta complexidade da leitura pode ser encontrada na matriz do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Lá, a leitura é considerada uma arquicompetência, em decorrência de seu caráter interdisciplinar. Por ser uma arquicompetência, ela exige do aluno-leitor um esforço especial. Bortoni-Ricardo, Machado e Castanheira (2010 p, 16), a este respeito, afirmam que:

O caráter sintetizador da leitura e a importância do conhecimento multidisciplinar de mundo a que o leitor precisa

recorrer para compreender efetivamente o que lê explicam os baixos escores que nossos alunos obtêm nos sistemas nacionais ou estaduais de avaliação.

O fato é que a leitura está presente em todas as áreas de conhecimento. Para aprender qualquer assunto na escola (e na vida), o aluno precisa ler. Isto não é bom ou ruim em princípio, é apenas um fato; o lado ruim do fato é a não percepção disso por parte dos professores de outras disciplinas: parece ainda existir a ideia de que ensinar a ler é tarefa exclusiva do professor de português. Parece não ser responsabilidade do professor de História, por exemplo, ensinar o aluno a fazer inferências, a acionar seu conhecimento de mundo, a estabelecer conexões com outras áreas do saber, enfim, a buscar estratégias para a construção dos sentidos do que está sendo lido. Se o aluno não entende um texto de História, isto deve ser problema da aula de português.

Para Bazerman (2006), a sala de aula é o espaço privilegiado para que os educadores de letramento possam trabalhar e contribuir, efetivamente para o desenvolvimento da sociedade e de seus membros. Educadores de letramento, segundo o autor, e não professores de português. Parece-me claro que esses educadores de letramento são todos aqueles que fazem uso da língua para trabalhar seus conteúdos, portanto, todos os professores. A consciência dos aspectos envolvidos na produção de sentidos de um texto pode contribuir diretamente para a formação de um cidadão mais autônomo e crítico. Letrar significa, pois, desenvolver a capacidade de uma leitura crítica, autônoma e engajada do mundo e dos textos que o mundo produz, e esse desenvolvimento é tarefa de todos os educadores, não só do professor de português.

Como todos na escola interagem por meio do texto escrito, cabe a todos o esforço de ensinar a ler de forma eficiente. Obviamente, há uma diferença, pois como já foi mencionado há alguns parágrafos: ao passo que a leitura é uma ferramenta de acesso ao conhecimento em outras áreas; na aula de português, ela é o próprio objeto de ensino por excelência. Isso não exime, entretanto, outros professores de sua responsabilidade na formação de bons leitores, afinal, um bom leitor é aquele capaz de ler com autonomia e eficiência qualquer texto, sobre qualquer assunto, com maior ou menor esforço, evidentemente, dependendo de seu conhecimento prévio e de outros fatores, tais como: conhecimento linguístico-textual, conhecimento interacional.

É importante entender que dotar o aluno de autonomia não significa reduzir, de modo algum, a importância do papel do professor no processo de ensino- aprendizagem de leitura na escola, mas sim, de redimensioná-lo. O professor deixa de ser o portador da interpretação correta do texto para ser o mediador da relação entre autor x texto x leitor, isto é, o professor se torna um facilitador da construção de sentidos, auxiliando a aluno a acionar suas estratégias de compreensão textual. Em vez de caminhos prontos, o professor ensina a construir caminhos. Ensina a elaborar hipóteses, a inferir, a contrastar, comparar, a pesquisar; ensina, enfim, o aluno a ser agente de sua leitura e não mais receptor de informação.

Resta saber, entretanto, se nossos cursos de formação de professores de português estão propondo espaços para reflexões desta natureza, pois sem refletir sobre os caminhos e descaminhos de se ensinar leitura, corre-se o risco de formar professores que vão repetir modelos engessados em suas memórias, isto é, professores que vão, em situações reais de ensino, recorrer às suas crenças sobre o que significa trabalhar com a leitura de textos em sala de aula.

Paralelamente ao conceito de leitura, o próprio conceito de língua se modifica em decorrência da posição do sujeito leitor. Esta leitura, na qual o sujeito leitor é agente, atribuindo significados ao que lê, corrobora a concepção de língua como lugar de interação, à qual, segundo Koch (2002, p. 15) “corresponde a noção de sujeito como entidade psicossocial, sublinhando-se o caráter ativo dos sujeitos na produção mesma do social e da interação”.

Pensando língua como espaço de interação, vale voltar ao conceito de leitura, agora, com a contribuição do que postula Orlandi (2010, p. 47). Segundo a autora “a leitura é o momento crítico da constituição do texto, pois é o momento privilegiado do processo da interação verbal”. É, portanto, a leitura, talvez mais que qualquer outro elemento, o espaço de maior autonomia do aluno, de ele se fazer realmente sujeito de seu aprendizado, isto é, de ele ter voz, de ele interferir, de fato, naquilo que está aprendendo, de testar hipóteses, de propor ideias e se tornar importante de verdade para a construção do seu conhecimento. A leitura possibilita, pois, a emancipação do aluno ao status de leitor, isto é, de dono de um saber e, portanto, de colaborador real de todo o processo. Tudo isso pode ser perdido, entretanto, se o aluno, por um lado, não tiver o devido espaço para construir sentidos para o que lê e se, por outro, não entender que sua leitura, embora importante, não é a única. Considerar o aluno como sujeito de seu saber não significa acatar toda leitura dele como adequada. Há de se entender que nem toda leitura de um texto é apropriada, que o texto tem seus limites interpretativos, que há leituras inadequadas, isto é, interpretações baseadas em aspectos que o texto, em princípio, não propõe. Não erradas, mas menos apropriadas, digamos. Claro que, se o aluno conseguir argumentar e provar que sua interpretação é também possível, baseando-se no que o texto sugere, esta passa a ser uma leitura válida e, mais válido ainda, é o interesse

do aluno em se fazer entender, em se apropriar daquilo que acredita e defender seu posicionamento.

Nosso aluno do curso de Letras também escolhe o que vai ler, como ler, quando e com que fim, dentro do que é possível, considerando as leituras fundamentais do curso. São essas escolhas que revelam seu caráter de agente no processo de leitura e são essas escolhas também reveladoras de suas crenças. A particularidade que merece atenção, nesse caso, é a formação desse jovem como futuro professor de português. Alguns aspectos se fazem presentes, como a concepção de leitura e de ensino-aprendizagem de leitura desses alunos, sua concepção de bom leitor, do papel da leitura na vida social do aluno, sua forma de entender o que significa avaliar a leitura de alguém. Estes são pontos que esta tese pretende discutir, a partir das informações obtidas pela aplicação dos instrumentos de coleta de dados.

De volta à escola, contexto de atuação de nosso futuro professor de português, é preciso, como dito anteriormente, que ela admita o fim de sua supremacia como fonte de informação e assuma a necessidade de conhecer os interesses e as necessidades reais de seus alunos. Geraldi (in: CINTRA 2008, p. 13), a este respeito, postula que “a escola deixou de ser um lugar de informação. A informação está noutro lugar, não está mais na escola [...]”. A ela cabe ser o lugar de sedimentação da informação, de sua transformação em conhecimento. Tal transformação só pode acontecer com a participação efetiva do sujeito aprendiz por meio de interação, gerando e gerindo conhecimento, como algo a ser feito e não como algo pronto.

O aluno contemporâneo, este de quem venho falando há alguns parágrafos é, essencialmente, um comunicador e, dependendo do veículo de tal comunicação, ele

se comunica com mais frequência e competência do que o próprio professor de português. É inviável e ingênuo, portanto, desconsiderar o conhecimento que esse aluno tem sobre os usos de sua própria língua quando ele está na escola. É necessário, pois, redefinir o papel do professor, bem como, do próprio ensino de português. Ensinar língua materna a quem a usa diariamente precisa de uma urgente remodelação (CARVALHO et al 2008, GERALDI 2008).

Nesse sentido, é fundamental olhar para nossos cursos de formação de professores e pensar como essas questões estão lá emergindo e sendo trabalhadas. Como estamos formando nossos professores de português, que um dia trabalharão com leitura na educação básica e estarão, sem dúvida, lidando com o tipo de aluno adolescente descrito acima? Quais crenças estamos corroborando com nossas ações e quais estamos pondo em xeque? De que forma estamos repetindo, na universidade, o que eles já viveram na escola? Desprezo pelo seu repertório textual, supervalorização de uma concepção de leitura centrada no código, foco no produto e não no processo de construção de sentidos. Em outras palavras, uma série de ações, talvez até inconscientes, de professores formadores de professores que acabam por reforçar concepções questionáveis de ensino-aprendizagem de língua portuguesa em geral e de leitura em particular. Certamente, este trabalho não se propõe a responder todas essas questões, o que seria inviável. A ideia é levantar questões e propor que se reflita sobre elas. O objeto não se esgota, pelo contrário, acredito que cada pesquisa abre espaço para novos trabalhos e que é, na/pela soma de vários estudos, que a sociedade avança e que os problemas podem ser mais bem entendidos e, quiçá, resolvidos.

2.5. A ESCRITA X O ESCRITO: IMPLICAÇÕES PARA A LEITURA