• Nenhum resultado encontrado

Lendo Antan d’enfance: a irrupção da oralidade na escrita

Capítulo III: Antan d’enfance: uma obra crioula em prisma

3.2. Lendo Antan d’enfance: a irrupção da oralidade na escrita

Exemplo incisivo de texto culturalmente marcado, a narrativa autobiográfica Antan

d’enfance (1990) traduz não só a realidade – e profusão – cultural dos antilhanos, como os

anseios de um autor que busca a consolidação da crioulidade, empenhando-se em reavivar-lhe as tradições e a história. Escrita em terceira pessoa, para a surpresa do leitor, a narrativa apresenta o universo crioulo não por meio de uma descrição estéril de suas paisagens – o que poderia conferir-lhe um tom exótico, do qual Chamoiseau procura se desvencilhar –, mas da riqueza da vida cotidiana, aflorada a partir das relações da criança com o mundo: na primeira parte da narrativa (Sentir), o négrillon explora o mundo pelos sentidos, no interior de sua casa; na segunda parte (Sortir), ele deixa o ambiente doméstico, para vivenciar as experiências do mundo exterior.

Desenvolvendo, pois, sua própria construção da infância, “período refeito e filtrado pelo adulto testemunha”44 (CROSTA, 1998, p. 118), Chamoiseau deixa explícito que é nesse espaço do cotidiano que se articulam os princípios da crioulidade e de onde o homem antilhano extrai tudo aquilo que lhe define: seus meios de subsistência, sua sabedoria, seus provérbios e expressões, sua poesia e sua visão de mundo.

Veiculando uma ideologia de resistência aos valores franceses, a obra traz o crioulo como língua materna – sendo Man Ninotte, a mãe do négrillon, seu maior expoente –, tanto mais que é ele o propagador dos valores antilhanos: “Se o francês é respeitado, é definitivamente o crioulo que é valorizado como língua materna, tanto mais que ele veicula seus sentimentos e sua cultura”45

(CROSTA, 1998, p. 142).

44 Tradução nossa do original: “période refaite et filtrée par l‟adulte témoin”.

45 Tradução nossa do original: “Si le français est respecté, c‟est en définitive le créole qui est valorisé comme langue maternelle, d‟autant plus que celle-ci véhicule ses sentiments et sa culture”.

Nessa perspectiva, sem prescindir de sua função de marqueur de paroles, Chamoiseau busca na tradição oral subsídios para seu projeto literário de reconstrução da identidade crioula – “a oralidade é nossa inteligência, ela é nossa leitura deste mundo”46 (BERNABÉ; CHAMOISEAU; CONFIANT, 1989, p. 33) –, transformando o que seria apenas uma narrativa das memórias de infância em um espaço privilegiado de expressão da memória coletiva.

No intuito de transpor para o texto literário a oralidade própria do crioulo, Chamoiseau se utiliza de recursos linguísticos específicos, os quais serão explicitados a seguir, forjando, como já dissemos, uma linguagem literária própria, tal como ratifica Hazael-Massieux (1993, p. 235-236):

[...] o autor constrói uma língua particular para a narração, um certo francês regional que não aparece senão nas sequências narrativas, ao passo que as trocas entre os personagens são feitas seja em francês padrão, seja em francês oral (oralidade tradicional, se assim podemos dizer, em todo caso emblemática, mas não especificamente antilhana), seja em crioulo (traduzido, então, em nota)47

Em Antan d’enfance, são abundantes os mecanismos utilizados pelo autor para revivificar, na escrita, a oralidade dos velhos contadores de histórias, reafirmando assim seu enraizamento na tradição oral. Dentre esses recursos, destacamos:

a) Léxico ou sentenças em crioulo

“baboule” (p. 25); “yen-yen” (p. 29); “kalazaza” (p. 75); “bankoulélé” (p. 145) “Eti man te ké pwan lajan pou trapé loto-a?” (p. 23)

“La Syrie siguine siguine andiète...!” (p. 42)

46 Tradução nossa do original: “l'oralité est notre intelligence, elle est notre lecture de ce monde”.

47 Tradução nossa do original: “[...] l‟auteur construit une langue particulière pour la narration, un certain français régional qui n‟apparaît que dans les séquences narratives, alors que les échanges entre les personnages se font soit en français standard, soit en français oral (oralité traditionelle si l‟on peut dire, en tout cas emblématique, mais non spécifiquement antillaise), soit en créole (alors traduit en note)”.

b) Repetição estrutural

“[...] pour elles qu‟il se fit captureur de mouches [...]. Pour elles, qu‟il emprisonna dans des bocaux mille peuplades de moustiques [...]. Pour elles, il vécut l‟oeil rivé à la poussière des persiennes [...]” (p. 30)

c) Onomatopeias e interjeições

“tiouf” e “flap” (p. 29); “hamg hamg hamg” (p. 106); “Pipipipipinaise” (p. 177) “hébin!...” (p. 55); “oh quel fer!” (p. 46)

d) Criações lexicais (verbos, substantivos, advérbios, adjetivos)

 simples: "surnommeur” (p. 40); "horlogeait” (p. 85)

 justapostas: “caisses-morue”; “marron-caca-poule” (p. 38); “koulis-coulirous” (p. 75); “marchandes-poissons-frits” (p. 75); “légumes-soupe” (p. 85)

e) Verbos compostos

“prit-courir” (p. 45); “faire-cuire” (p. 85); “descendre-chercher” (p. 85); “aller-voir-au- marché” (p. 85)

f) Expressões idiomáticas crioulas

“[...] cet enfant-là prend la vie pour un bol-toloman [...]” (p. 107)

g) Acumulação ou enumeração

“[...] les gâteaux, les sikdôj, les filibos, les torsades colorées fondantes sur la langue, les macawon, les lotchios câpresses, les la-colle-pistaches” (p. 90)

h) Marcadores conversacionais

 pré-posicionados: “Héé, qu‟est-ce qu‟il y a pour la gorge?” (p. 81 – grifo nosso)  pós-posicionados: “C‟est quoi, han?” (p. 136 – grifo nosso)

i) Redundância

“Je me souviens de l‟icaque/

j) Supressão do pronome “il” impessoal

“[...] y‟a pas pièce loup ici” (p. 154 – grifo nosso) “Y‟a un problème, manman a dit” (p. 155 – grifo nosso)

k) Negações sem a partícula “ne”

“J‟ai pas bien compris” (p. 154) “Je sais pas” (p. 155)

l) Sentenças curtas e gramaticalmente simples

“Il fermait les fenêtres une à une./

Chaque fermeture était saluée comme un exploit d‟Hercule./ La salle perdait lentement de sa lumière./

L‟ombre instillait un silence relatif dans un hoquet des respirations” (p. 170)

m) Elementos da literatura oral (contos, mitos etc.)

“diablesse” (p. 75); “dorlis” (p. 75); “Manman Dlo” (p. 125); “cheval-trois-pattes” (p. 175)

n) Estruturas de gêneros orais tradicionais (pequenas canções ou “comptines”)

“Chocolat-première-communion/ l‟écrire c‟est saliver/

y penser c‟est souffrir/

communier c‟est chocolat” (p. 93)

Ao exame mais sistemático de Antan d’enfance, percebe-se que a narrativa, longe de ser construída tão somente por elementos próprios de uma linguagem escrita ou por coloquialismos, apresenta um continuum48 entre as duas modulações, de maneira que a oralidade ocupa espaço na composição do texto escrito não somente como recurso construtor de sentido, mas como parte do processo de transposição do mosaico linguístico antilhano.

48

Retoma-se aqui a expressão que Marcuschi (2001, p. 35) utiliza para referir-se à “relação escalar ou gradual em que uma série de elementos se interpenetram, seja em termos de função social, potencial cognitivo, práticas comunicativas, contextos sociais, nível de organização, seleção de formas, estilos, estratégias de formulação, aspectos constitutivos, formas de manifestação e assim por diante”.

Nessa perspectiva, as marcas da oralidade manifestam-se a partir da composição híbrida do texto, que une a tradição oral e a cultura escrita, num processo de amálgama linguístico bastante singular. O resultado desse processo é a inscrição, no texto, de uma incisiva opacidade – própria do crioulo –, que torna obscuras e impenetráveis certas palavras, expressões ou mesmo sentenças inteiras. Ao tradutor cabe, pois, a tarefa de identificar os elementos característicos do texto, preservando-os, quando possível, como será analisado mais detidamente no tópico a seguir.

Documentos relacionados