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O leitor-tradutor e a competência intercultural: um breve interlúdio

Capítulo III: Antan d’enfance: uma obra crioula em prisma

3.1. O leitor-tradutor e a competência intercultural: um breve interlúdio

Entre os autores que se propuseram a estudar mais detidamente o ato de leitura, parece haver um consenso no que diz respeito à importância dos conhecimentos de mundo do leitor – enfatizando-se aqui o leitor-tradutor – no processo de construção de sentidos (KLEIMAN, 2000; SOUZA, 2003; KOCH, 2003, e outros). Assim sendo, a leitura de textos, e mais especificamente a leitura de textos em língua estrangeira, doravante LE, solicita ao sujeito- leitor não somente competências linguístico-textuais – capacidade de identificar e distinguir categorias gramaticais, de reconhecer a organização morfossintática do texto, de classificá-lo do ponto de vista de sua estrutura etc. – como seu repertório sociocultural ou, em outros termos, seu conhecimento de mundo. É a conjugação desses fatores, e não a utilização de uma ou outra competência, que possibilita ao leitor construir um sentido para o texto (KLEIMAN, 2000); de outra forma, produz-se apenas “leituras precárias” (PIETRARÓIA, 1997, p. 91).

Nessa perspectiva, é lícito afirmar que o sentido de um texto está alicerçado em grande parte nos conhecimentos de mundo do sujeito-leitor, uma vez que, “além de ser uma construção”, o sentido “é também uma representação diretamente ligada às vivências e experiências” desse leitor (PIETRARÓIA, 1997, p. 102). Jouve (2003, p. 24) corrobora essa asserção ao postular que o texto, quando fora de seu contexto de origem, se franqueia a uma infinidade de interpretações, isto é, a novos sentidos, visto que “cada leitor novo traz consigo sua experiência, sua cultura e os valores de sua época”, dos quais é difícil se dissociar. Ponto de vista análogo verifica-se também em Souza (2003, p. 97), segundo o qual “o leitor, ao construir o sentido do texto, o faz baseando-se em seus valores sociais, seus conhecimentos prévios e suas experiências de vida”.

Em textos culturalmente marcados – caso específico de Antan d’enfance, que escolhemos traduzir – os conhecimentos de mundo são mais frequentemente requisitados, dadas as dificuldades de penetrar a cultura do outro e de apreender-lhe as significações e os recortes da realidade tão somente pelas marcas formais aí presentes. No entanto, embora o conhecimento de mundo ou enciclopédico seja elemento fulcral no processo de construção de sentidos, Mary Kato (1982), citada por Pietraróia (1997), atenta para o perigo de o leitor apoiar-se demasiadamente nesse conhecimento, uma vez que tal postura pode resultar em interpretações não validadas pelo texto:

Da mesma forma que abordar o texto apenas do ponto de vista formal abstrai-nos perigosamente de seu sentido global explícito e implícito, procurar depreender o sentido do texto sem uma interpretação criteriosa de sua forma pode levar-nos a imprecisões, distorções e equívocos igualmente indesejáveis (MARY KATO apud PIETRARÓIA, 1997, p. 98).

Diante do choque cultural, e da complexidade linguística, sintática e semântica de alguns textos, sobretudo aqueles nos quais as marcas de determinada cultura são mais contundentes, uma outra tendência do leitor é recorrer aos elementos de sua própria cultura e aos do seu grupo de referência, na tentativa de suprir a lacuna que o separa de uma realidade extralinguística distinta da sua. Nesse sentido, Pietraróia (1997) afirma que, se os leitores apresentam dificuldades com o vocabulário, não reconhecendo uma palavra ou um grupo de palavras, ou, ainda, dificuldades com a sintaxe, “eles podem ser incapazes de confirmar ou rejeitar suas hipóteses e, consequentemente, só podem entender a história por intermédio de sua cultura” (PIETRARÓIA, 1997, p. 87). Ancorados nesses argumentos, podemos afirmar então que os textos culturalmente marcados estão entre os que mais frequentemente obrigam “o leitor a duvidar de sua capacidade de deciframento” (JOUVE, 2003, p. 22), situação

resultante do estranhamento do leitor diante do desconhecido ou, ainda, da tensão que se estabelece entre o eu e o Outro.

Nesse sentido, para que a leitura de textos em LE seja profícua, é preciso que o leitor desenvolva uma competência intercultural ou, em outros termos, uma capacidade de distanciar-se da sua própria cultura, de maneira que lhe seja possível “aceitar outros „recortes‟ da realidade, reconhecendo como legítimos outros pontos de vista, outros valores [...]” (PIETRARÓIA, 1997, p. 312). O trabalho de Almeida (2008) vem corroborar a importância da competência intercultural no processo de construção de sentidos, bem como a necessidade de se promover um distanciamento da cultura de origem para que se possa, efetivamente, reconhecer e internalizar o patrimônio cultural do outro. Segundo a autora, faz-se necessário, então um

distanciamento da cultura onde se foi socializado para que, por um lado, o indivíduo seja auto-reflexivo em relação à sua própria cultura e, por outro, chegue a compreender o ponto de vista de outras culturas (ALMEIDA, 2008, p. 45).

Tal movimento em direção ao desconhecido se revela essencial, na medida em que “supõe uma incursão no imaginário cultural do outro” (ALMEIDA, 2008, p. 131), permitindo ao leitor desconstruir os estereótipos enraizados em sua percepção de mundo. São muito frequentemente esses estereótipos que impedem o leitor de textos em LE de compreender o Outro em todas as suas especificidades e de abarcar a totalidade dos textos a partir dos marcadores culturais aí presentes.

Diante do desconhecido e cedendo, pois, aos imperativos das representações mentais cristalizadas, facilmente convertidas em estereótipos, o leitor é levado muitas vezes a atribuir um caráter exótico a tudo aquilo que se contrapõe radicalmente à sua própria cultura. No entanto, longe de ser um fator de aproximação entre culturas, “o exótico é geralmente percebido como algo exterior, em que se trava conhecimento sem se entrar em contato com a

„alma‟ ou intimidade de um povo ou de uma cultura” (ALMEIDA, 2008, p. 51). Daí a importância, aqui ressaltada, do desenvolvimento de uma competência intercultural que faculte ao leitor a compreensão crítica da alteridade, de forma que ele seja capaz não somente de interpretar adequadamente os marcadores culturais presentes nos textos em LE, como também de administrar as situações de incongruências e de conflitos culturais.

Visto que “toda diferença implica dificuldade e potencial impedimento da intercompreensão” (AUBERT, 2003, p. 152), podemos afirmar, ancorados nos argumentos acima expostos, que a competência intercultural é condição fulcral para que se possa transpor as barreiras impostas pelas diferenças linguísticas e extralinguísticas. É essa competência que permite ao leitor de textos em LE:

[...] reconhecer que a cultura de origem influi nas observações empreendidas, nas interpretações e no comportamento; aprender a lançar um olhar empático para as culturas, estando consciente de que os critérios utilizados estão determinados culturalmente, de que nosso modo de ver o mundo não é o único possível [...]; manter uma atitude crítica aprendendo a enfrentar a dificuldade, o que implica manter o equilíbrio entre a empatia e a distância emocional [...]; habilidade para se tornar mediador entre as culturas por meio da negociação de significados [...] (ALMEIDA, 2008, p. 127)

Explicitados, pois, alguns pressupostos teóricos pertinentes à questão da leitura de textos culturalmente marcados, bem como à competência intercultural necessária ao leitor- tradutor, salientamos que tais propostas nos fornecem subsídios para que pensemos a tradução não como uma mera transposição entre línguas, mas como um exercício de alteridade social e cultural. A partir daí, estaremos mais atentos aos entraves linguístico-culturais presentes na obra Antan d’enfance e mais conscientes das nossas escolhas tradutológicas, para as quais o tópico a seguir também nos servirá de alicerce.

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